Mais um texto meu, Ascencio. Estou matando minhas pendências de revius nessa fase do meu isolamento enquanto, longe da cidade grande, permaneço na terrinha de meus pais. Agora, saindo um pouco de artistas nacionais, vou falar do segundo álbum de estúdio, denominado “Big Conspiracy”, do jovem e promissor rapper britânico J Hus.
Um pouco do background que, como se verá, reflete no álbum. Em 2018, J foi preso e condenado a 8 meses de prisão por portar uma faca em local público, isso, com toda certeza, foi um balde água fria para todos os entusiastas do trabalho do MC, que tinha acabado de dropar, um ano antes, seu primeiro álbum de estúdio “Common Sense”. Sua experiência em cárcere serviu de certa forma para desabrochar um olhar mais maduro e reflexivo no rapper, neste novo trabalho vemos linhas que abordam assuntos mais complexos e de impacto social mais desenvolvidos, o que não é trabalhado no projeto de 2017 na mesma intensidade. A diferença de lá pra cá é notória.
Nessa toada, “Big Conspiracy” serve para nos mostrar, acima de tudo, amadurecimento em vivência, em pensamento crítico e religião (no caso, o Islã — talvez seja algo com os Jays). Seja qual for o assunto em voga, principalmente na primeira metade do álbum (de 17 faixas e 44min), Hus apresenta uma escrita em duplo sentido, nunca se fala apenas sobre o que as palavras denotam, há sempre um espaço para dúbias interpretações, como se a própria escrita do MC tivesse sua conspiração, uma trama em segundo plano que enriquece os versos. Esse recurso se torna mais espalhado na segunda metade, onde o álbum renova o seu gás, mas ainda se mantém aqui e ali.
Em termos de produção, temos muitos nomes sendo TSB, iO, JAE5 e TobiShyBoy os que mais se destacam. A variedade de mentes criativas nesse aspecto rende um trabalho muito plural, perdendo alguns pontos em coesão; no entanto, a qualidade do que é entregue transforma isso em riqueza, em ganho. Quem der play no álbum vai escutar elementos de trap, boom bap, grime, dancehall, reggae, jazz, R&B; ou seja, é bem improvável que você passe pelas 17 faixas sem pelo menos guardar duas ou três em sua playlist.
O álbum abre em faixa homônima “Big Conspiracy”, cartão de entrada que estabelece a toante do projeto. Hus discorre sobre a real identidade das coisas, diferente do que elas possam parecer ou soar, como se o julgassem e o marginalizassem, seja por sua cor ou seu estilo musical, por algo que ele de fato não é. Em grande medida, referencia-se à sua experiencia carcerária, ou como ele próprio diz, em duplo sentido, sobre ser um leão livre ou um leão em um circo. A produção de TBS soa orgânica e dá maturidade ao assunto com um violão, metais e uma boa linha de baixo.
A segunda track “Helicopter” segue fria e desconfiada, J coloca dinamismo em sua entrega junto a um beat dark. O ambiente perfeito para por em prática toda a conjectura negativa que o homem negro tem diante da polícia e claro, sempre com boas rimas e jogos de palavras bem colocados:
Shaitan in police uniform
Feds in a helicopter
I seen pigs fly but I never seen a unicorn
Tryna find cover on somebody’s front lawn
I see an undercover and he had his gun drawn
Didn’t like me ‘cause I’ll never conform
O duplo sentido dá aulas no afrobeat de “Play play” track com um belíssimo feat do nigeriano Burna Boy. A ideia aqui, vou ter que cunhar um nome pra isso, seria um love song bélico, fala-se de mulheres e armas, com referências que se cruzam o tempo todo, demonstrando um caneta afiada por parte do rapper de Stratford.
‘Cause you got a body shape that I can’t forget
The way I make you drip when I’m talkin’ slick
I’m ashamed ‘cause when I came, I was bustin’ quick
That’s why this time I came with the banana clip
Além de Burna, temos em “Repeat” outra participação a se destacar: Koffee que, assim como o J, é mais um jovem talento. A cantora fez jus à sua fama e ao grammy de melhor álbum de reggae ganho em 2020, e dominou a faixa. Hus, que aparentamento desconhece a regra máxima sobre nunca ser engolido em seu próprio trabalho, fica em segundo plano, relegado apenas ao refrão.
E, já que estamos no assunto participações, na balada que mescla Jazz e R&B de “One and Only”, Ella Mai brilha nos refrões de uma das melhores e mais melódicas produções do projeto.
Em faixas como “Fight for Your Right”, “Reckless ” e “No Denying” muito se fala sobre vivência e cada qual em sua proposta explora a bagagem mais madura do rapper em seu desenvolvimento pessoal pós prisão. Respectivamente na ordem em que as citei, a primeira diz sobre ser fiel aos seus princípios e reconhecer seus erros, fala sobre valores; na segunda, de produção bem característica com sintetizadores, Hus demonstra uma espécie de imprudência que, no limite, flerta com sua autenticidade de estilo de vida; já na última temos uma das melhores, senão a melhor, produção na mão de TobiShyBoy: samples, do que eu acredito serem trombones latinos, numa roupagem de grime criando um ambiente perfeito para barras onde o MC deixa bem claro a realidade de estar além de seus “opps” (os quais agora possue maturidade suficiente para distingui-los, como mostra na sua afiada caneta de “Must Be”). Sempre demonstrando levar um estilo de vida que não se descola da marginalidade que lhe garante prestígio.
Me and you are different calibres
Every day, wake up, manifest
Say you shot a man, but I’m not impressed
My new girl is on house arrest
Baby girl, I wish you all the best
I’m on the roadside, but I’m playing chess
Niggas all the same, more or less
You know I hit man, you a hit and miss
Everyone I don’t like, could write a list
But a fisherman needs a bigger fish
Antes de fecharmos, é necessário falar sobre o que se passa da medida. Geralmente, o que destoa de toda a atmosfera do álbum, que venho tentando demonstrar, soa meio que “passável”, é o caso de “Triumph”, por exemplo. Além desta, “Fortune Teller” é uma faixa de produção e entrega exaustivamente repetitivas, com rimas que se apoiam muito em acentos, uma escolha estética que não combina também com a proposta.
Big Conspiracy é um álbum moderno e além disso, ciente de sua contemporaneidade. Todo o amadurecimento de J Hus encontra fruto principalmente em suas duas faixas finais. Em “Love, Peace and Prosperity”, o titulo já se explica, temos um som de emancipação onde se vive o que se canta. Essa realidade, por sua vez, culmina em “Deeper Than Rap” a forma correta de se terminar um álbum onde a ideia de evolução é impressa.
I wanna fix the world, don’t know where to begin
They ain’t see me in so long, they like, “Where have you been?”
I was fresh from a war but it was internal
Every day I encounter another hurdle
Why they wanna take my manhood and strip search me?
When I think about my life, it’s been a long journey
It was a snow storm but I stood firmly
All the time you wasted, you gotta reimburse me
I had to play dumb, just to blend in
Then go to Africa for spiritual cleansing
Demonstrando-se realmente ser algo mais profundo do que rap, aqui a distribuição padrão é transgredida, há um único verso, sem refrão, cuspido num dark piano que depois se encontra com a bateria. Nele, Hus coloca todos os seus devaneios, reflete sobre sua vida, sociedade, prisão, racismo, religião e conflitos internos num nível nunca antes visto em sua carreira. Um promissor novo caminho, resta-nos aguardar.