Review: DonCesão – Ego

Ascencio aqui. DonCesão tinha algo novo a dizer e, sendo um MC que atrela sua arte tão fortemente a conceitos, esta é a força motriz para o surgimento de um novo projeto e inevitavelmente foi o que aconteceu. “Ego” é seu terceiro trabalho solo e quebra um intervalo de nove anos, tempo mais do que longo quando se considera a distância entre “Primeiramente”, seu primeiro trabalho, de 2008, e “Bem Vindo ao Circo”, o segundo, de 2011. O que motiva o MC a sair de sua inércia ou, se preferir, a abrir esta porta, está, principalmente, na maturidade desenvolvida aos longos destes anos, catalizada pelo nascimento de seu filho, Don.

 

 

Como presumido, há um conceito bastante estabelecido: o eterno conflito do “eu”. Mas, para além de se prender a uma reflexão puramente filosófica ou psicanalítica — o que seria massivo demais — os desenvolvimentos desta temática surgem para os propósitos do artista. Uma nova geração do público de rap veio conhecer de fato Cesão com a ascensão meteórica do Damassaclan na primeira metade da década de 2010, em uma época de extrema autoafirmação e linhas de braggadocious. Sendo assim, o mais novo álbum de estúdio do artista busca ressignificar o seu perfil enquanto MC, utilizando-se de elementos vistos em seus primeiros trabalhos e os atualizando ao seu momento de vida atual. A ideia é negar um “eu” antigo para trazer um novo.

A primeira metade do álbum tende ainda a mergulhar o ouvinte numa visão do passado, porém não isenta de críticas e reflexões. “Cesar” é a intro com produção de Pizzol, recorrente colaborador não só deste álbum como de boa parte dos projetos de Don, com um boombap simples de sample bem recortado e loopado. O MC de São Paulo começa apresentando uma caneta de rimas interessantes e boas metáforas. Quem bate à porta se autodenomina Cesar, a pessoa despida da persona do MC, para encontrá-lo, mal humorado, lá dentro, querendo apenas dormir.

“Ref/R.A.P” em muito lembra as propostas mais antigas de DonCesão, quando o rapper se propunha a escrever versos que girassem em torno de uma temática específica e delimitada, desafiando sua composição. Ao longo da faixa Don e Pizzol, que agora chega rimando, discorrem sobre suas referências artísticas, explorando esse lugar comum de choque de gerações entre nova e velha escola. Apesar de não por nada de muito técnico em suas rimas, o dono da casa demonstra adaptabilidade ao transitar pelas duas faces do beat de CESRV e Go Dassiti que segue essa mesma dicotomia. Na primeira, há a estética atual de um trap de bateria mais sincopada que pede por uma entrega acelerada; na segunda, o oposto representando o clássico, um boombap mais espaçado e desacelerado.

Depois de se autoafirmar particularmente, na primeira faixa, e de vangloriar sua bagagem artística, na segunda, as inseguranças surgem em “Transtorno de Estresse Pós Traumático (TEPT)”, produção dos já frequentes Pizzol e CESRV, onde um piano dá a atmosfera frenética que a temática sugere, juntamente de uma bateria de elementos passadistas bem demarcada e forte. A voz do MC é distorcida em tom mais graves e, seguindo essa mudança, Don assume uma nova personalidade autoconsciente de seus traumas e pronta para tocar em suas feridas familiares do passado, em contraposição à nova família que criou agora. Seu flow é sujo e consistente, com boas articulações e comparações de ideias.

Quando cortaram a luz, aprendi a brincar na sombra

Pra ajudar ligar de volta, aprendi que ninguém sobra

Conheci um agiota antes de saber fazer conta

Bateram na minha porta e levaram a Caravan branca

Em sua negação inicial ao “eu”, “Ego (Eu não preciso)” surge como a primeira colagem (interlúdio) do projeto, no instrumental saudosista de Coyote, sampleando jazz e recortes em scratch. A montagem se vale de falas de diversos artistas referenciando Cesão, que agora demonstra não apenas ter, mas ser referência. Basicamente, Don diz não precisar inflar seu ego, porque já o fazem por ele, sejam parceiros ou rivais.

Findando a primeira parte, “Homem de lata” é a track mais comercial do trabalho e vai tratar do consumismo, atrelando superficialidade e prazer. Chave Beats coloca em jogo um trap mais leve, propício a uma entrega cantada de métricas mais ondulares e prolongadas. Cesão chega com tune pontual e solta suas notas. A levada embala o ouvinte com variações, tendendo à primeira linha ser curta e a segunda se esticando para incorporar mais tempo de loop, o que garante um bom swing. Hot e Oreia surgem na participação para questionar de forma mais incisiva estes valores fúteis, o destaque vai para o melhor verso da faixa, de Oreia, natural, fluído e inteligente.

“Vamos Ser Honestos Por 1 Minuto”, com produção de Thiago Prodigo, é o segundo e último interlúdio do projeto e rompe em definitivo com esse lado mais inflamado do rapper, para dar início a uma segunda metade mais introspectiva, que apenas germinava nas inseguranças apresentadas até aqui. Esta é aberta desenvolvendo o uso das drogas para amenizar as atribulações do dia a dia. Em “+1 (Haters e Baseados)”, Pizzol volta com uma produção smooth cheia de graves e sintetizadores, ditando a distância de alguém alto pela cannabis. O rapper traz novamente o auto-tune em uma letra lenta cheia de repetições flertando com essa estética de anestesia, relacionando de forma criativa haters e baseados (numa mesma toante de racistas e nikes).

A temática amorosa amarra as distintas “Pagodinho” e “Bêbados Falam de Amor (pt. 2)”. Distintas porque a primeira é o que se autointitula, um pagode, que serve para dar um ar ao clima pesado da segunda metade, apesar de não fugir das introspecções. A melodia é de um projeto antigo de Laudz, ao que se acrescenta novamente a produção de Pizzol — coroando aqui sua versatilidade atrás da mesa. Cavaquinho e pandeiro ditam o ritmo e Cesão apresenta agudos e melodias inéditas em sua carreira, contando ainda com Clara Lima preenchendo os refrões e Smile interpolando na saída. A segunda em definitivo é a melhor do álbum, uma valsa que respira à estética. CESRV entrega uma melodia cativante de apenas duas notas que entra na mente de quem ouve, a alternância destas já coloca o ouvinte em seu balanço, completo pela bateria e grave nos versos. DonCesão apresenta um flow em ascensão muito bem feito que contribuiu para o groove proposto, com Smile chegando bem nas dobras. Tasha e Tracie completam a track com um belo diálogo que sintetiza a ideia da faixa, uma desconstrução final e definitiva do ego, principalmente no que diz respeito a relacionamentos, algo necessário para uma vida mais leve e livre.

Para fechar, “DON” trás uma linda e clássica produção de El Lif Beatz com seu loop de piano, remetendo, em certa medida, a uma atmosfera em que o MC rimava no início de sua carreira. Sem uma bateria, Cesão possui mais liberdade para suas rimas, coloca algumas internas e elabora melhor outras com calma e paciência. Fala sobre sua família, novamente contrapondo a antiga, muito presente em seu debut “Primeiramente”, e a nova que surge com a chegada de seu filho, a quem dedica o título da faixa. Uma bela track que aborda esse lugar comum constituinte do processo de desenvolvimento artístico de todo MC que se torna pai. A ideia serve para fechar o que foi dito lá no início, sobre evolução e amadurecimento com mudanças de perspectivas e renovações de valores que só a paternidade pode propiciar, surge assim um novo “eu”.

Meu pequeno príncipe me ensinou

Que é loucura odiar todas as rosas porque uma me espetou

É sobre amor, pegou a visão?

O essencial é invisível aos olhos e só se vê com o coração

32 anos pra aprender uma lição

Pra aprender a lição

Já fui aquele DonCesão, mas…

Já fui aquele DonCesão, mas…

Já fui aquele DonCesão, mas hoje não

Dizer que este trabalho falha em execuções técnicas não é uma verdade, a caneta é mediana com bons momentos, a entrega é boa o suficiente e a produção bem feita. Melhor é dizer então que poderia ter sido mais, principalmente quando se coloca em perspectiva seu antecessor, o ambicioso “Bem Vindo ao Circo” e sua total capacidade criativa que seria fundamental se expandida aqui, principalmente em pontos chaves, como a curta e de grande potencial “TEPT”.  Já que o perigo de ser introspectivo é não o ser suficiente e dar espaços demais para as superficialidades que se busca combater, um deslize recorrente deste tipo de proposta.

Contudo, “Ego” passa a mensagem de amadurecimento do já experiente MC, visível e fiel ao momento de vida em que se encontra. É preciso dar os méritos ao empresário da poderosa Ceia Ent por, sendo agora pai e estando em um lugar confortável e bem sucedido, voltar à frente do microfone e por um bom material na rua. Ter no rap um registro sincero como este é sempre importante porque desmistifica MCs em seus pedestais e holofotes. O foco agora é em outro Don, o de ser pai.

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