O que torna um álbum bom? Eu poderia também perguntar o que é que torna um álbum importante. Mesmo assim, ainda não seria bem a questão onde quero chegar, e nesse momento o vocabulário é bem escasso de possibilidades viáveis: por exemplo, o que torna um álbum incrível? Ou então: o que torna um álbum maravilhoso? E marcante? E decente? E, para além de tudo, ruim, o que poderia torná-lo ruim?
E tudo isso pois – já colocando a carroça na frente dos bois – nada neste texto é mais importante do que qualquer áudio que está presente na faixa Baleia. É claro, esse é um review com uma nota 4,5 de 5 de um dos melhores álbuns do rap nacional do ano passado. E mesmo assim, pouco importa, a grandiosidade desse álbum não cabe neste texto. Por demais, esse é o álbum mais rap que aconteceu em 2019.
Foi no final do ano passado que o Rap Plus Size lançou o “A Grandiosa Imersão em Busca do Novo Mundo”. O primeiro disco, homônimo, lá em 2016 mostrava um duo, formado por Sara Donato e Jupi77er, incrivelmente apaixonado pelo bom e velho rap, dos belos clássicos boombap, que rimavam com o talento de poucos e soavam assim de modo bem tradicional. Nesse novo trabalho temos a volta desse belo jeito de rimar, mas sem deixar de soar musicalmente contemporâneo – o que por si só já é um resultado único.
A Grandiosa Imersão é um trampo repleto de camadas e mais camadas, a mais exterior, com toda certeza seu conceito, é extremamente bem amarrada a cada passo do disco, sem nenhuma parte sobressalente. Além das referências faixa a faixa, o conceito vem também habitar detalhes menores ao longo dessas e acompanhar toda uma jornada marcada por um universo e personagens bem delimitados. A produção vem no ponto também, com uma identidade musical muito bem trabalhada e requintes de uma delicadeza bárbara assinada por Vibox (instrumentais e a mixagem) e Malka (masterização).
De um ambiente menor, o aquário, a faixa assim denominada consegue feitos belíssimos: nos introduz a um universo e nos coloca em uma jornada, tudo sem deixar perder-se em sua metáfora de mundo, desta forma colocando de forma clara as mensagens que nos depararemos ao decorrer da obra. A presença de Luz Ribeiro, na intro com um poema e no refrão, adianta uma característica forte do álbum: os feats são todos acertados e acrescentam positivamente a cada inserção. Musicalmente vemos nosso duo muito confortável em seus deliverys, demonstrando uma maturidade no rimar totalmente agradável aos ouvidos.
Nessa primeira metade do álbum, que focará em dinâmicas mais individuais da experiência, a segunda faixa, Pipeline, trará Djonga para uma parceria na criação de um verdadeiro hino em manifestação contra a polícia. Em um beat muito bem feito, com as linhas de baixo marcantes e com um final extremamente empolgante, seguem denunciando a violência do Estado sem perder de vista as Macroestruturas de Poder, ou seja, em nenhum momento é um denúncia inocente ou que se mostra despreparada diante do mundo. O refrão, um dos pontos altos da música, vem referenciando o clássico “Fuck The Police”, mas o traduzindo devidamente ao contexto brasileiro.
Seguindo no caminho natural, temos a quebra da grande onda em Quebra Mental, uma faixa mais tímida e curta. Mesmo sendo um pouco mais sutil que as outras faixas, trazendo hi hats mais marcados, ainda segue sendo uma faixa na medida, com bons momentos sonoros e uma mensagem precisa, colocando nos holofotes a relação corpo-mente. Fôlego vem na sequência para nos dar uma mudança de ares, tal qual um verdadeiro fôlego. A faixa, que conta com a presença de Ingrid Martins, promove um encontro incrível de influências do reggae com as religiões de matrizes africanas.
Chegamos a Espelho, última track dessa primeira metade. O agradável beat repleto de funk acompanhará a música cuja temática já está estampada no refrão que a abre, “Desconstrua o gênero/ Quebre o cis-tema”. Para isso, Jupi77er, uma pessoa não binária transmasculina, ao lado de Sara são acompanhadas pela travesti Danna Lisboa.
A transição para a segunda metade é feita por Baleia. Esta é a grande faixa do álbum, não necessariamente a melhor ou a mais bem feita, mas a faixa mais importante do disco. No acumulado, nosso duo chega a esse som que coloca toda as experiências individuais em contato com um apoio externo, tal qual uma amiga, um amigo. Essa dinâmica encarna muito nas situações pessoais da dupla e como conseguiram apoio nesse encontro que formou o próprio Rap Plus Size. Para completar, se o início foi um olhar para trás na carreira, a track é encerrada com mais de 3 minutos de declarações do quão importante foi o grupo na vida pessoal de diversas pessoas. Esse é um dos raros e belos momentos que só o rap pode proporcionar na nossa vida: nos resta agradecer.
A segunda metade chega com energia de sobra na “intro” pertencente ao grupo de maracatu Omo Omí na faixa Cardume, marcando o encontro com a coletividade na vida. Além do grupo, temos também a presença da banda curitibana Mulamba, que participa da música com um excelente verso e com o melhor refrão do álbum. Cardume, já distinta desde a entrada, é a faixa com os resultados sonoros mais interessantes do álbum.
Submarino não deixa a energia se esvair. Monna Brutal é o feat da vez em uma agressiva faixa mais puxada ao trap, com o brinde de testar os graves das corajosas caixas de som. Um detalhe da faixa que foge aos ouvidos no devido momento é seu ambiente totalmente submergido, mostrando mais uma vez quão bem calculado a produção fora no disco. Abissal nos direciona para o final. Uma faixa bem mais sentimental, motivadora e que vem nos mostrar a luz na escuridão da profundidade do mar.
Nascente é a penúltima track. Se buscávamos uma luz, agora temos uma faixa sobre o próprio Hip Hop. Kamau e Cris Snj chegam nos feats para homenagear toda uma era enquanto os samplings e scratchs os acompanham muito bem. De toda forma, sim, “o hip hop é foda”.
A conclusão épica de nossa jornada é o Novo Mundo, um elegante instrumental que não deixa a unidade musical do disco ruir, mas que entrega um final um pouco mais permissivo a atitude do ouvinte.
A Grandiosa Imersão em Busca do Novo Mundo é um disco conceitual belíssimo, repleto por inteiro de detalhes. A evolução do Rap Plus Size tanto na qualidade das rimas e seu conteúdo, quanto no resultado sonoro geral é tremenda, muito distinta na cena atual. Nesse álbum, os diversos estilos, que vão desde linhas de baixo do Hardcore até o envolvente maracatu, vem realmente acrescentar e proporcionar uma experiência de audição rica. E além de tudo, sabem ainda conduzir feats ao longo de mais de metade do disco. As mensagens vão direto em enfrentamento à gordofobia, à transfobia, ao patriarcado e outras estruturas de poder, enquanto demonstram muito preparo e estudo para isso, sem, é claro, deixar as metáforas do conceito do disco de lado. Os defeitos e falhas, quando ocorrem, são tão pontuais e fugazes que acabam como meros deslizes que escapam em meio ao fluxo. De fato, este é um dos melhores álbuns lançados em 2019. E como o álbum grandioso que é, este review falha em falar e falar sobre tantos detalhes. No mais, sou grato por ouvi-lo.