Ascencio aqui. A verdade é que este é um álbum complexo demais para qualquer abordagem mais superficial. O projeto traz a expansão de todo o potencial latente da MC visto em sua “Mixtape Lado B”. “Bivolt” possui relevância nas suas duas principais frentes: a estética e a conceitual. Respectivamente, em uma, a produção diversa aliada às entregas em alto nível da MC promovem um bom leque de opções; na outra, há um cuidado extremamente bem vindo e em falta na cena atual.
Os extremos do álbum se conectam de forma inédita e são o centro de coesão desse projeto, entendê-los é entender sua proposta. “110v”, no início, e “220v”, no encerramento, são tracks independentes que, quando juntas em um play simultâneo, constituem uma “experiência imersiva” criada por Bivolt e NAVE (também produtor de boa parte do trabalho).
“110v” é melódica, não traz nada de muito complexo do ponto de vista de sua estrutura individual, seja em letra ou produção. Sua atmosfera é calma e distante com uma bateria de poucos elementos que ecoa. A melodia do teclado traz um quê tecnológico de uma trilha sonora cyberpunk, no clipe, essa estética é reforçada, por exemplo, com a presença de um VR. Ainda falando do audiovisual, é louvável como o cuidado conceitual existe em vários signos que irão reforçar a dicotomia com a sua track irmã (e, consequentemente, com o clipe desta também), como a palheta de cores em azul. Além de tudo isso, como intro do álbum (o que está sendo realmente analisado aqui), é misteriosa e convidativa.
Sua irmã, “220v”, é complexa e agitada. A produção é mais ao trap e a letra constrói uma mensagem completa. Bivolt rima sua emancipação vitoriosa sobre um cotidiano cansativo e também nocivo. Trazendo novamente a contribuição do audiovisual muito bem trabalhado, o cyberpunk é reforçada pelas cenas de exploração corporativista e ganha estética vaporwave com elementos como computadores ultrapassados (além da presença do niLL atuando). A cor da vez é o vermelho. Tratando-se da análise, como encerramento, fecha de forma coesa tanto conceitual quanto estruturalmente o projeto.
Juntas, em “⚡ (Bivolt)” (pode-se entender como uma bonus track), a simplicidade e calmaria melódica da primeira atua como segundas linhas de vocal e produção, mais ao fundo; a complexidade e agitação da última fornece a estrutura geral da fusão e dita o seu ritmo de progressão. O vocal de “110v” já trás seu canto desde o início, quando dropa de fato, perde a compreensão inicial por uma pequena parte de sua audição, porque cai em cima da bateria quando o beat vira para o refrão. Fora isso, é uma experiência sonora original, nunca antes feita por aqui. A junção ocorre de forma inteligente e é enriquecedora, todos os elementos são aproveitados na criação de algo novo. Tematicamente, onde consiste sua maior contribuição, é muito interessante a ideia de serem duas faces opostas (até mesmo espacialmente no disco) de algo único: uma mais calma e outra mais ativa. Juntas, demonstram que Bivolt procura transparecer não só em si mesma, mas também em sua arte, um equilíbrio virtuoso. Quanto às cores, a junção das duas, azul e vermelho, dá no roxo presente na capa do projeto.
Esse jogo de duas voltagens delimitando lados ao mesmo tempo opostos e complementares é a chave interpretativa das demais tracks. O álbum tem faixas “ligadas no 110”, onde a variedade performática de Bivolt tem seu ponto alto e brilha nas entregas melódicas, como por exemplo em “Me Salva”, sua versão de “Alô Alô Marciano”, música imortalizada por Elis Regina. A ótima guitarra (recorrente no álbum) junta ao baixo formam uma atmosfera gostosa, principalmente quando o refrão bate com os sintetizadores. Bivolt dança na produção de NAVE, adaptando-se perfeitamente aos diversos nuances do beat. “Mary End” também está nessa mesma voltagem, nela, o instrumental inicia puxando mais ao acústico tendo o violão como elemento principal. A MC, de forma suave, acompanha essa atmosfera para, logo após, utilizando-se de extrema sensibilidade na sua entrega, se graduar mais firmemente quando a belíssima bateria chega puxando ao jazz, em uma das diversas provas de sincronia entre a rapper e o produtor. Outro ponto forte desse lado mais brando é o R&B de Filiph Neo em “Tipo Giroflex” com participação de Jé Santiago. O produtor merece destaque pelo instrumental de classe com uma pontual linha de piano e graves, além de usar a própria voz do MC da Recayd como elemento do beat. Bivolt e Jé funcionam bem juntos, tanto que compartilham o refrão. O convidado demonstra mais uma vez fineza e técnica entregando em dois versos apenas duas rimas.
Mas também existem as tracks “ligadas no 220v”, nestas ocorrem, por exemplo, “Você Já Sabe” e “Murda Murda” (dois boombaps) e “Hipnose” (um trap), aqui as produções tendem a ser mais ativas e fortes, com a MC colocando sua caneta para jogar. Na primeira, referência ao som homônimo do grupo RZO, Bivolt cospe suas linhas em uma cadência alta, ocupando com suas palavras todos os espaços possíveis, isso lhe dá liberdade para ultrapassar o beat de Vibox sem cair fora deste, permitindo, dentre outras coisas, que ela dobre suas métricas utilizando a mesma rima. Na segunda, em um beat que remete a ares mais clássicos do gênero, a dupla convidada, Tracie e Tasha Okereke, domina a faixa, seja por estarem em dois dos três versos mais refrão, seja por desempenharem mais técnica. Já na última, o trap que antecede o encerramento do disco, faz-se mais visível a ausência de recursos na escrita da rapper, fator presente em boa parte desse recorte do projeto. A caneta de Bivolt, salvo em raros momentos, não erra porque não se arrisca, tendendo mais a mediocridade. No caso da track em questão ― que por ser um trap comumente não pede por nada muito complexo, é verdade, mas, se quiser um boombap com o mesmo problema, existe “Susuave” ― temos o excesso pelas rimas em “ão”. Lucas Boombeat, na participação, não fica atrás e entrega várias rimas com verbo. Isso firma “Hipnose” como a única faixa mais passável do compilado, estando ali, estruturalmente, apenas para fazer uma transição de sonoridade para a finalização do trabalho.
Obviamente, isso é pouco quando comparado aos pontos altos do álbum, que são muitos. A começar por “Cubana”, a track de mais personalidade do projeto. NAVE e Douglas Moda entregam uma das melhores produções do álbum. Na falta de um termo para classificar, pode-se dizer sobre um trap-salsa caribenho que, lá pras tantas, bebe até do funk. A faixa é animada e dançante, teclado, trompete e violão característicos da estética são os principais elementos. Bivolt sabe variar seu flow da melhor maneira possível, transitando pelo refrão, versos mais trap, e, ainda mesmo, quando vira funk. A história é de um flerte que almeja uma musa inspiradora latina e funciona muito bem, assim como todo a proposta.
Seguindo pelos acertos, há “Peixinhos” que, diferentemente da já mencionada “Hipnose”, é o trap que Bivolt deveria investir. Ótima som que pede por um certo swing em sua própria melodia. Uma faixa mais curta, apostando seu replay value em um embalo cativante. Como já demonstrou antes, a MC prova saber o lugar correto de estender sua métrica, além de contar aqui com bons adlibs, autotune no ponto e pausas pro beat respirar.
Outro destaque vai para a sequência do trio que firma a viagem pelo caribe feita pela produção executiva do álbum. “Sigilo” disputa o trono de melhor track do projeto com uma produção mais eletrônica e novo realce para os riffs de guitarras, a pegada da produção lembra, em certa medida, o Reggaeton. Bivolt tem uma das melhores se não sua melhor performance com dobras belíssimas. A entrada para o refrão, onde a MC constrói uma transição muito bem feita, garante aquele momento onde o ouvinte é convidado a se mexer, sendo impossível ficar parado. “Nome e Sobrenome”, indo para o lado inglês das Antilhas, traz o Dancehall com destaque para o ótimo refrão de Xênia França, sua voz é doce e aconchegante de se ouvir, progredindo calmamente junto com o beat. Por fim, imerso nessa atmosfera, “Freestyle”, que conta também com Tropkillaz na produção, encerra a ótima sequência com Bivolt em seu melhor desempenho nas letras. Mesmo que rapidamente, temos rimas bem demarcadas na terceira tônica, aliteração de vogais internas e pequenas multissilábicas. A contribuição característica de Dada Yute é bem a calhar e valida o som.
No saldo final, Bivolt entrega um álbum de extrema personalidade. A sonoridade da produção varia tanto quanto a capacidade performática da MC, ambas sem deixar o nível cair. Track após track, o ouvinte pode contemplar estéticas exemplares capazes de estimular diversos gostos musicais. Tudo isso muito bem amarrado por uma esfera conceitual coesa, em um tempo onde álbuns mais se parecem com playlists, nesse sentido, aflora sua originalidade. Não se enganem, “Bivolt” é um forte candidato a disco do ano.