Salve, gente! Aqui é o Gustavo na voz (ou na escrita), sou do Portal RND e fui convocado no feat, nessa semana de Classics Reviews. Em agosto de 2008, um mais jovem, mas já experiente, Marcus Vinicius aparentava ter em mesma quantidade certezas e dúvidas. Lançando seu primeiro álbum solo, “Non Ducor Duco”, Kamau dava seu maior passo na jornada como um lobo solitário dentro do rap, ou como sua alcunha propõe, um “guerreiro silencioso”. Possuindo uma das mais duradouras caminhadas no hip-hop, passou por grupos como Simples, Consequência, Quinto Andar e Subsolo. O MC já chegou a dedicar sua vida às ciências exatas e podemos perceber toda sua bagagem artística e pessoal em sua masterpiece. No que diz respeito aos problemas da vida e da arte, Kamau constrói um manual para quem quer saber viver e rimar.
Definir o que é ou não um clássico é uma tarefa ao mesmo tempo simples e complexa. As características que estabelecem um trabalho nesta posição são perceptíveis. Podem ser a atemporalidade, a criatividade e inovação ou simplesmente a maior exibição de qualidade possível. Porém, nem sempre atribuir este tipo de juízo a uma expressão artística é fácil, mas quando esta produção cumpre todos os requisitos citados é impossível não considerá-la uma obra essencial. “Non Ducor Duco” cumpre bem este papel, representando desde seu título, que significa “Não Sou Conduzido, Conduzo”, um Kamau prolífico na escrita e na produção, além de extremamente consciente de todos as variantes das equações do rap e da vivência.
Um dos componentes mais presentes em todo álbum são as colagens/scratches e, através delas, o rapper transmite sua carga de conhecimento e ética de trabalho. Adotando-as como recurso estético principal, bebendo de fontes como Gang Starr e dando continuidade a esse recurso já utilizado em seu antigo grupo, o Consequência , Kamau consegue revisitar grandes obras do rap nacional e orquestrá-los de forma a adaptarem-se às suas produções. Esta escolha demonstra seu imenso respeito aos ícones responsáveis por pavimentar toda a história que o precede, como também celebra sua própria caminhada. Na intro do disco, “(Escuto) Vozes”, produzida pelo próprio MC junto de DJ William, é montado o quebra cabeça que contém a trajetória e questionamentos de Marcus Vinicius. Sobrepondo trechos de músicas de Racionais MC’s, SP Funk, Xis, SNJ e Simples somados às perguntas a respeito de sua carreira e às incertezas pessoais de largar a faculdade e dedicar sua vida totalmente à arte. Kamau monta o panorama onde irá versar sobre seu amor ao rap e a vida e como os dois entrelaçam-se em sua visão.
As respostas que Kamau poderia dar à curiosidade alheia acerca de suas escolhas são várias, e dentro dessa infinidade algumas conclusões são construídas. Fazendo uso da polissemia, o MC elabora esquemas de rima matematicamente bem medidos. A primeira faixa propriamente dita, “Só”, que acabou tornando-se um hino para todo artista independente, é um dos exemplos da faceta “engenheiro das palavras” apresentada pelo rapper. Lidando com uma nova perspectiva ao seguir carreira solo, tendo que lidar com todos os percalços que acompanhavam um MC underground no Brasil na década passada, ele encontra vários horizontes para espelhar-se.
Só, preciso aprender a ser só
A me manter só
Me fortalecer só
Porque eu quero viver e não sobreviver só
Mas não guardo rancor aqui eu guardo amor só
Brincando com os significados do título da faixa, o artista expõe, com a ajuda de suas skills, motivações, inspirações e posicionamentos. Expandindo os horizontes utilizando os diversos significados de uma pequena palavra, Kamau faz a letra em uma métrica impecável. Assim como num projeto matemático, cada uma das sílabas é colocada no local certo, proporcionando um festival de rimas internas e aliterações. O uso mais cru e cuidadoso da língua portuguesa, quase que num primor científico.
Escreva, expresse o que o coração sente
Inspiração na frustração, infelizmente
Mas eu sigo em frente não quero que tenham dó de mim
Talvez seja melhor que eu me mantenha só assim, por um tempo
Auto suficiência, ânimo, paciência
Só experiência não garante eficiência
Inspiração, visite-me
Frustração, evite-me
Paz me acompanhe
Cobrança não irrite-me
Encarando a realidade de que talvez tenha que construir sua caminhada de forma solitária, sabe o quão importante é buscar fortalecer-se como pessoa e rapper, numa constante evolução. Tal entendimento também perpassa a noção de que a arte é construída através de identificação e relevância na vida de quem a consome, fazendo com que esse caminho percorrido não seja tão esquivo. Estas trocas entre artista/público, criação/criador, pergunta/resposta fazem-se presentes em todo o trabalho. “Só” figura no que seria o primeiro ato de “Non Ducor Duco”, onde o rap é o elemento que dita algumas resoluções da vivência e logo depois troca de posição no segundo ato, mostrando-se apenas um dos elementos desta existência.
Todas as peças da engrenagem que formam o álbum têm seu devido lugar e motivação. Se a primeira música era pautada no esforço, dedicação e talento do MC, a seguinte tem a missão de esclarecer a origem destas características. “Evolução na Locução” é a representação viva do quinto elemento do hip-hop de um estudioso Kamau. Quando vida e arte se confundem, o desejo de progresso reflete na sinergia entre estudo e resultado. O MC acaba sendo o retrato de seu aprendizado e a busca por ele, gerando uma personalidade criativa e pessoal. Sob um beat e riscos do DJ Suissac (do grupo Mzuri Sana), as referências diretas e indiretas tornam-se o foco, fazendo-se muito presentes nos versos, que seguem numa métrica semelhante da primeira faixa onde o flow é perfeitamente encaixado à batida. Nesta track, as maiores escolas do rapper são explícitas, sua biografia e Racionais Mc’s. Interpolando em meio a letra trechos de “Vida Loka Pt. 1” e “Capítulo 4, Versículo 3”, Kamau demonstra que seus professores sempre estiveram juntos a si em sua jornada evolutiva. Representando seu crescimento de forma propriamente dita, o segundo verso é construído com os títulos das canções de seu primeiro trabalho, o EP “Prólogo”.
Mas se eu busco evolução desde antes d’eu tá chegando
Então eu vou parar por que? (Em?) Se eu tenho uma missão
E a cada dia, queira ou não, aprendo uma lição
No vício que me inspira, informação, conhecimento
Fica evidente que “Non Ducor Duco” é um trabalho voltado para um processo de amadurecimento e a demonstração de uma nova identidade pessoal e artística. Tal desenvolvimento seria impossível desacompanhado, então as participações do disco são os responsáveis por representar de maneira simbólica e prática esta parceria. “Por quê Eu Rimo?” reúne as perspectivas sob as motivações de Rashid, Stefanie, Emicida, Rincon Sapiência e Kamau, num beat feito pelo próprio anfitrião. Sem refrão, colagens e scratches, só barras e mais barras, onde cada MC contribui relatando suas particularidades e experiências. Mesmo com direcionamentos próprios e totalmente diferentes, os artistas conseguiram chegar a um ponto comum, a relevância que a música tem na existência de cada um e o efeito catalisador que ela possui. Entretanto, os pontos em comum são igualmente evidentes, a vivência como artistas negros e a responsabilidade de carregar um legado cultural. Stefanie talvez seja a que conseguiu transmitir de maneira mais verossímil este sentimento. Seus versos e sua entrega casam muito bem em uma das performances mais sentimentais e verdadeiras do álbum. Sem mencionar a obviedade de que as minas já estão há muito por aí fazendo um barulho e a gente não pode negar com um exemplo desses.
Inspiração é tudo que afeta ou me completa
Cada um tem sua missão e Deus já deu minha meta
Capacidade pra alguma coisa todo mundo tem
De tudo que já fiz, isso me fez sentir bem
A partir desse momento, temos uma virada no direcionamento do trabalho. Enquanto antes o rap seria o elemento principal que motiva as vivências, daqui em diante a vida ganha o destaque principal como a real motivadora das inspirações e expressões. Este conceito tem seu início na belíssima “Vida” com participação de Rael e concebida na dicotomia entre nascimento e morte, através do relato da perda de alguns entes queridos de Kamau. Mesmo em meio ao luto, encontra-se alento na luz e lembranças de quem dividiu a vida com o artista. Apesar do assunto, a canção não se apresenta como lamento, mas sim como uma bela celebração, que em muito se deve ao belo refrão de Rael e ao beat produzido por Munhoz ( do grupo Ascendência Mista). A atmosfera mais chill cria um direcionamento bastante esperançoso, propício para tamanha sensibilidade exposta. É uma peça bem rara de vulnerabilidade, numa época que o rap nacional dava os primeiros passos para tratar de assuntos como depressão e saúde mental. Mesmo estando exposto aos maiores perigos da realidade de um jovem negro, como os relatos da música, um novo horizonte sempre pode estar adiante, simbolizado pelo terceiro verso dedicado a um futuro filho de Kamau. Uma alvorada que não se resume apenas no conceito de “Non Ducor Duco”, mas que reflete no cotidiano do MC. Cada linha é a renovação da fé em novos e bons dias, que alimentam a alma e a arte, a criança não sabe-se quando nascerá e nessa expectativa o artista segue com os olhos numa luz no fim do túnel que é construída diariamente.
Todas serão por você, mas essa é pra você
Especialmente, não sei se você vai entender
Eu tenho muito a aprender até lá
Mas é você e a vida que vão me ensinar
Um dos principais aspectos deste momento do álbum é a simplicidade em que os espectros emotivos do MC são expressados. A maior parte das canções são intituladas com apenas uma palavra, sintetizando não de maneira simplória, mas direta, universalizando os sentimentos ao mesmo tempo que faz um recorte muito particular. O que acaba abrindo espaço para as mais diversas vivências, e claro, para a cena do rap nacional. Em “Equilíbrio”, que conta com vocais de Jeff E, Kamau discorre sobre a relação homem/trabalho, porém adicionando as peculiaridades de quem vive em constante contato com a arte e de lá tira seu sustento. Em mais uma produção do Nave, o MC coloca lado a lado os mais diferentes pontos de vistas acerca de sua própria música. É perceptível o cuidado com o conceito de “Non Ducor Duco” ao deixar explícito os conflitos de cada escolha, suas consequências e tudo que o crescimento proporciona, seja pela evolução ou sacrifícios. Como representante do hip-hop, Kamau sabe da relevância de sua voz, tanto para si quanto para quem o cerca. O que o inspira e o motiva serve de motor para nós que nos encontramos na posição de ouvinte, mas também trata-se de uma edificação que alimenta o próprio rapper. Seu legado é a harmonia de sua arte junto a uma vida notável, onde os dois entrelaçam-se e transformam-se, numa maturação constante e inigualável.
Se eu dividir meu tempo e não me achar no quociente
Agradeço por poder escolher
E ofereço cada linha traçada
Ainda há muito trabalho a fazer
Porque sucesso é caminhada
E não a linha de chegada
É um contraste constante com o qual o MC lida seguidamente, entre aproximar-se do mercado musical e ater-se fortemente às suas raízes. Mesmo este sendo um assunto recorrente e que perpassa todo o álbum ainda que de forma implícita, na “Equilíbrio” Kamau apresenta uma urgência que influência em suas aspirações e sonhos. É aquele rap sobre a cena e sua posição dentro dela, mas com o viés de alguém que é adulto, tem relevância e responsabilidades. O rapper não esconde que tem seu grau de qualidade e importância para os artistas que o cercam, porém ele se vê como mais um representante da cultura hip-hop e tem seu papel de construtor de um caminho que ele mesmo percorreu e pavimenta todos os dias.
Outro exemplo que carrega consigo os fatores mencionados anteriormente é “Dominium”, faixa produzida por Parteum contando também com a participação do mesmo. Narra um pouco mais as visões de dois veteranos no jogo rap, mas desta vez com muito mais entrelinhas. É impossível não se atentar ao subtexto presente em todo o disco: o crescimento de um artista independente que busca uma emancipação como homem negro e representante da cultura hip-hop. Kamau e Fábio Luiz falam exatamente do ponto de vista de quem consegue liberdade por intermédio da arte e para isso utilizam de suas identidades e estéticas. O primeiro com sua métrica cuidadosa e rimas internas, o segundo utilizando de suas referências, metáforas e mostrando seu lado produtor com a batida.
Minha intuição diz que é temporário
E que eu posso bem mais do que imagino
Quanto mais tento mais tenho noção
De que depende só de mim pra traçar meu destino
Pra trilhar meu caminho com a vida na mão
O peso social e percalços vividos pelos dois são fortemente ditados pela cor da pele, fazendo a tarefa de andar na contramão do capitalista mercado musical ser muito mais difícil. Desta forma, a música como trabalho representa apenas um dos campos deste cotidiano e que acaba refletindo em todos os espectros sociais que os dois estão envolvidos. Suas decisões, ambições e desejos são e devem ser pautados pelos mesmos, o domínio que possuem sobre a arte reverbera no dia a dia, garantindo suas posições de liberdade e representatividade.
Essa consciência nasce, como já estabelecido nas faixas anteriores, por meio de estudo e nas vozes de diversos professores. É um grito que foi dado por um pioneiro e que deve ecoar nos ouvintes e aprendizes, e talvez a melhor síntese deste sentimento seja a faixa “Resistência”. Contando com as participações dos mestres Kl Jay e Carlus Avonts (do grupo Potencial 3), a música é o egotrip da sabedoria que vai desde um aviso às novas gerações do rap, como uma celebração de tudo que o estilo musical fez e ainda vai fazer. Resistir vai mais do que estabelecer um padrão de produção e sim criar cada vez mais alternativas que baseiam-se nos princípios do hip-hop. Esta obstinação representa a força de um movimento negro e periférico que prevalece apesar de todos os problemas, tendo na fidelidade às suas raízes a garantia dessa longevidade. De maneira simbólica na faixa, Kamau reúne todos os fatores que constroem o rap e “Non Ducor Duco”, parcerias, colagens e referências. Nada mais resistente do que manter-se fiel a si mesmo e na arte em que acredita.
“Non Ducor Duco” encerra, após outros belos momentos como as faixas “Tambor” e “A Quem Possa Interessar”, com um aúdio de Kamau e Nave. “Homens Trabalhando” dá fim ao segundo ato do álbum e a ele como um todo, apresentando uma resolução simples à alguns questionamentos que foram encontrados lá na introdução do disco, de uma forma bem singela. Tratando-se de um diálogo entre o MC e o produtor acompanhados de um curto instrumental, em poucas palavras, Marcus define sua música como uma perspectiva do presente e do futuro de sua vida. Não há espaço para outro assunto, afinal após escolher a arte como trabalho, o homem entrelaça seu cotidiano a ela.
Nós celebramos e agradecemos pela jornada do guerreiro silencioso, que, com sua voz e perspicácia, cria seus paradoxos e conta seus dilemas. O álbum, além de um clássico, é um registro seminal do rap nacional, um marco no underground e mais do que tudo, um exemplo de sentimento e maturidade até umas horas. Kamau guia, guiado aos passos de seus professores, marcando seu nome ao lado dos grandes do hip-hop e sendo dono de uma das melhores histórias independentes da música.