Coé rapaziadaaaaa! Shaq por aqui e chegou a minha vez de colaborar com a review desse clássico. “2001”, álbum de Doutor André , aka Dr. Dre, foi responsável pela pisada com pé direito do rap da Costa Oeste no novo século. O ano era 1999, já não tínhamos mais Tupac há três anos e Biggie há dois, a era de ouro estava se esvaindo com a consolidação de Jay e Nas do lado de lá, e, com a morte de Pac e o fim do NWA, não havia nenhuma grande figura do lado Pacífico (nem tanto) da América. Talvez esse nome fosse Snoop Dogg, mas, com a sua ida para a gravadora No Limit de Master P, a sua nova sonoridade não casaria com a proposta Californiana de fazer rap.
No marasmo desse vazio, Dr. Dre anuncia que retornaria ao jogo lançando um disco que tinha também a proposta de apresentar novos artistas, como feito em seu primeiro projeto, “The Chronic”. Nascia aí o que viria a ser “2001”, um projeto de 23 faixas e que, com pouco mais de uma hora de execução, teria de tudo: interlúdio, intro, outro, faixa com mulher gemendo e MUITAS posse cuts. Sendo um retrato dos anos 90 com uma sonoridade que viria a ser a dos anos 2000, o tipo de coisa que se faz necessário de fato um doutor para a execução.
Com toda sua responsabilidade musical por ser quem é e por ter participado do que é conhecido como um dos maiores grupos da história do rap, Dre nos entrega, além de um retorno para responder todas as questões que ficaram em aberto na época, um trabalho sólido que possui música para diversos temas e ocasiões, produções excelentes e flexibilidade para os co-autores trabalharem. Durante as faixas, vemos o anfitrião rimar (o que escreveram pra ele) sobre violência, dinheiro, fama, inimizades entre outros temas, sendo o pacote completo. Sem dúvidas, atrás da mesa, Andre é inquestionável, e pode-se dizer que superou as produções memoráveis de seu disco anterior. Aqui, as tracks possuem uma aura mais especial, talvez por nessa era termos tido mídias muito mais consolidadas para o rap e que as colocaram em evidência de uma maneira que “The Chronic” jamais poderia ter sido colocado. Criando uma atmosfera que faz com que, por exemplo, só de ouvir o início de “Still D.R.E”, em qualquer lugar que você esteja, vai se lembrar dos Cadillacs pulando e festas na praia.
A track recém citada, juntamente com “Forgot About Dre” e “The Next Episode” – os singles do disco e (não atoa) as musicas mais conhecidas pelo público geral – são extremamente diversas na sua forma de composição, por terem sido escritas por outros MCs que, na época, estavam em uma evidência, porém ainda não haviam conquistado o mainstream. Ao longo do disco, estes convidados fizeram sua versão do que seria um verso do Dre sob suas perspectivas. Um exemplo disso é “The Message”, que é a mais destacada da temática geral do disco, onde o artista rima ao lado de Mary J Blige em homenagem a um amigo falecido numa track mais introspectiva, mas que foi escrita pelo Royce da 5’9”; temos também um Dre mais agressivo e respondendo às questões de sua ausência para cena, dessa vez municiado por um Eminem ainda não muito conhecido em “Forgot About Dre”. O fato de Andre sempre ter usado ghostwriters não impacta na qualidade nem na originalidade do processo criativo, pois quando você não obedece o Ice Cube (ouça “No Vaseline” para sacar essa referência), é bom mesmo trazer reforços para seus projetos e realçar sua maior qualidade que é a produção. Isso não afeta a experiência do ouvinte, já que como vemos hoje em dia nos mais diversos estilos musicais, um álbum, per se, é um projeto e leva diversas mãos ao seu processo de construção. Em “2001” (e também no mais recente “Compton”) o artista usa sua influência para trazer esses nomes e os integra de maneira única, seja como participação ou como escritor.
Uma das coisas que mais surpreende até hoje no play é como as transições de uma produção para outra se dão de forma totalmente harmônica, o que não era uma tendência em 99. Dr. Dre praticamente conversa com a audiência por mais uma camada, nos guiando entre as histórias narradas pelos mais de 20 MCs presentes no projeto, com destaque maior para o fim da “Still D.R.E” com aquela progressão que ficou marcada: se ouve no fim um barulho de helicópteros e o tempo cai, num loop parecido, mas totalmente diferente, mudando o ambiente de festa para um tom mais ameaçador e Dre começa com “I got mo’class than most of em” em “Big Ego’s” e em seguida, nesse mesmo clima, a track termina em uma ligação que cai na caixa postal, fazendo referência a um verso anterior em “Fuck You”.
O Doutor nos deixa claro que essa consulta é de fato algo a mais que uma experiencia auditiva, tudo aqui foi arquitetado para funcionar junto. Os versos, as transições, os beats, a atmosfera e as histórias, até a “Pause 4 Porno” faz a sua função. Andre nos entrega, em três atos, uma aula de como viver na Southside LA, contando crônicas das ruas de Compton a Long Beach, onde pode-se fazer um paralelo com o filme Friday (lançado quatro anos antes) e o game Grand Theft Auto: San Andreas (lançado cinco anos depois) que se complementam e contam histórias parecidas. Por exemplo, durante todo o álbum o eu lírico do artista é perseguido por uma “senhoura” casada, que enche a caixa postal do telefone de mensagens, engana seu varão e tem versos dedicados em “Fuck You”, “Whats The Difference” com sua saga concluída em “Ed-Ucation” por meio de um monólogo maravilhoso do comediante Eddie Griffin. Apesar de serem mídias diversas, contam historias de arquétipos já conhecidos nas quebradas nesse recorte temporal, abordando muita violência e crime que era (e ainda é, infelizmente) recorrente em áreas de baixo investimento, o famoso gangbangin que perdurou por toda a década de 1990. Um fato curioso é que o disco não faz nenhuma menção direta a Crips ou Bloods, apesar de vários dos MCs participantes terem afiliações com os mesmos.
O fato do Doutor refazer os cortes de samples organicamente fazem toda a diferença no processo de composição e no resultado final. Podemos observar que os loops soam como as faixas do The Eminem Show (2002), enquanto as complementações, instrumentos e progressões de baixo enriquecem-as e dão uma cara da nova West Coast que nos acostumamos a associar a artistas como Snoop Dogg, Tha Dogg Pound e, em trabalhos mais recentes, Ice Cube. Além disso, possibilitam a construção de um clima, que facilita o setup de cenários. Por exemplo, no segundo ato do disco, temos um novo capítulo em “Bar One” que culmina nos eventos de “The Bomb”, todas essas faixas formam um microcosmo dentro do próprio álbum, tal qual um subplot de sitcom, que ajuda na resolução da trama principal do episódio.
Dre se focou no aperfeiçoamento do G-Funk e na produção do filme , com suas transições homogêneas, escolha dos MCs para compor parte das histórias aqui contadas e isso tudo toma muito tempo, portanto, para escrever a sua parte foi atrás dos maiores e melhores, tendo, para complementar as produções do Doutor, versos do Snoop Dogg, Eminem, Jay Z, Nas, The D.O.C., Hittman e outros. Estes participaram não só do disco, como também da maior turnê de rap da história, a “The Up In Smoke Tour” em 2000. Essa foi, de certa forma, uma consequência e uma continuação natural desse álbum, que teve como feitos reunir o artista com Ice Cube, introduzir Eminem à costa oeste e consolidar a parceria Snoop x Dre. Sem contar que as versões ao vivo das tracks (não só de “2001” mas também de “The Chronic”) são de outro mundo.
Passados mais de 20 anos do lançamento desse compilado de produções lindas e memoráveis e versos mais ainda, podemos afirmar que “2001” foi a força motriz responsável pela nova West Coast e pela consolidação do estilo SoCal do rap. Além disso, mostrou ao mundo as variações do G-funk e do estilo mais laid back de rimar que posteriormente nos dariam clássicos como “The Doctors Advocate” e “To Pimp a Butterfly”, que compartilham a influência desta sonoridade e tem em comum um Dr. Dre que é genial não só na produção, composição rítmica e construção orgânica do que entendemos como música rap, mas também no tratamento e mixagem dessas músicas.
Este projeto foi um divisor de águas que setou (aliado ao que estava acontecendo à época) todo um comportamento e uma forma de agir no início do século, comportamentos esses que são hoje um dos muitos pilares que sustentam a cultura pop, além de ainda servir de influência para muito do que ouvimos. Dr. Dre de fato nos entregou uma masterpiece, que equilibra entrega, produção, ritmo e cadência e é uma aula de coesão e continuidade que deve ser levada como exemplo. “2001” é inquestionavelmente um clássico.
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