10 Anos de Emicídio: Quando o Rap se perguntou “E agora?”

Após mais de uma década mantendo-se como o nome de maior destaque do Rap Nacional, Emicida atravessou todas as tendências estéticas e mercadológicas deste período, construindo sua própria narrativa e universo criativo. Esse ano, por exemplo, o artista deu início ao projeto “AmarElo Prisma”, que expande e cria uma experiência imersiva em torno de seu último álbum, tratando de assuntos como a relação corpo e mente, alimentação e saúde mental. Trabalhos como este são consequência de uma carreira sólida, carregada de representatividade e provida de uma liberdade artística conquistada através de uma longa caminhada percorrida por Leandro, onde ele criou seus próprios parâmetros para produção e venda de sua arte. No entanto, para que possamos compreender a sua grandiosidade, devemos considerar toda a sua trajetória. Dessa maneira, vamos ao quase início, e, a partir da sua segunda mixtape, “Emicídio”, iremos mapear um pouco da relevância musical do Zica da Rima.

Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, é fruto de iniciativas pretas e periféricas, construídas por meio de um esforço coletivo, que, na maioria das vezes, são feitos única e exclusivamente por amor ao Rap. Natural da Vila Zilda, bairro do distrito de Tremembé localizado na zona norte de São Paulo, lapidou seu talento e nome nas batalhas de Mc’s, em uma época que elas ainda não alcançavam milhões de visualizações no YouTube e viralizavam nas redes sociais. Mesmo assim, o artista aproveitou o crescimento e advento da internet, tornando-se um dos mais conhecidos improvisadores de seus tempos de freestyle. A batalha de MC’s da Santa Cruz e a Rinha dos MC’s funcionaram como celeiros de onde saíram grandes representantes do Hip-Hop, entre eles o próprio Emicida, que, por meio da vivência nas calçadas, da espontaneidade de improvisos e distanciamento das demandas predatórias do mercado musical, ganhou sua força.  

Com o intuito de apresentar perspectivas renovadas a respeito do que o cenário musical entendia como o posicionamento do Rap enquanto elemento cultural, nasce “Emicídio”. Um ano após “Pra Quem Já Mordeu Cachorro Por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe”, o objetivo era manter o fogo aceso com novos direcionamentos e ideias, mas sem deixar o independentismo de lado. Para isso, Leandro adapta seu discurso e estética a uma nova realidade, a qual sua música encabeçou os programas da “finada” MTV e rendeu parcerias com artistas já inseridos no mainstream. Assim, vemos um novo patamar de produção que casa com o status alcançado por Emicida, perceptível no aumento da qualidade técnica das batidas, mix/master e captação de voz. 

Fazendo uma comparação despretensiosa, “Emicídio” seria o “Late Registration” de Leandro, nascendo após uma grande estreia recheada de experimentações e incertezas representada pelo “College Dropout” (este como “Pra Quem Já Mordeu Cachorro(…)”). Aqui há uma criação mais grandiosa, cinemática, sólida e direcionada, aproximando-se da indústria de maneira intencional e regada de identidade. O valor de R$ 5,00 cobrado pela tape e estampado na capa é extremamente simbólico neste quesito, apenas para justificar o valor agregado ao trabalho, mas sem se afastar de para quem foi feita a expressão artística.   

No entanto, para compreender melhor esta empreitada, precisamos voltar mais ainda no tempo. Em janeiro de 2003, o Hip-Hop foi golpeado com um de seus episódios mais trágicos, a morte de Sabotage, assassinado a tiros na zona sul de São Paulo. Na época, o MC despontava como o principal artista do Rap, o que lhe rendeu participações nos filmes “O Invasor” e “Carandiru” e o status de clássico a seu álbum “Rap é Compromisso”, gravado no selo Cosa Nostra, o mesmo responsável pelo lançamento de “Sobrevivendo no Inferno” do Racionais Mc’s. Após estes acontecimentos, a cena foi assolada por um grande período de luto, visto em seu afastamento da grande mídia e um esgotamento psicológico perceptível após a perda de Mauro Mateus (Sabotage). Mesmo assim, ao contrário do que muitos pensam deste momento, o underground continuou em constante atividade, buscando novas alternativas temáticas e estéticas para dar continuidade ao legado de Sabota e, como sempre, levar a cultura adiante. Apesar deste triste limbo, a década passada foi umas das mais prolíficas do Rap, grupos como Quinto Andar, Subsolo, Elo da Corrente, ContraFluxo, Simples e Pentágono foram fundamentais e responsáveis por manter vivo o respirar dos amantes da cultura. 

Sendo assim, a experiência com a rua é extremamente presente nas composições de Emicida, seja através das batalhas de rima, na influência dos mestres predecessores ou no contato com os outros elementos do Hip-Hop. Sua primeira mixtape, “Pra Quem Já Mordeu Cachorro Por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe”, é uma exibição desta estética underground das rodas, desde a construção das batidas, passando pelos versos recheados de punchlines, até as transições entre as músicas e a celebração do ato de rimar como nas faixas, “Pra Mim… (Isso é Viver)”, “Ainda Ontem” e “Hey Rap!”. Porém, este trabalho demonstrou a fome de um Emicida para alçar grandes voos, o que lhe fez alcançar na época um patamar há muito tempo não visto. Vendendo sua mixtape por R$ 2,00, conseguiu, no primeiro mês de lançamento, distribuir mais de 3 mil cópias físicas em todo território nacional. Desta forma, a Laboratório Fantasma se demonstrava um divisor de águas no que se compreende como direcionamento empresarial feito por pessoas pretas e da periferia, no intuito de gerar um retorno comunitário para quem vive cotidianamente nesta realidade, sem deixar de agregar os princípios da cultura Hip-Hop e os elementos que a compõem. Além de alcançar estes grandes objetivos, serviu como uma nova brisa de esperança no Rap após uma década iniciada de forma tão triste, mas que se finda com um novo norte apontado por um artista concebido nas raízes da música que representamos e tanto amamos.

 “Triunfo, se não for coletivo, é do sistema” (verso de Emicida em “O Céu é o Limite”)  

 

Com isso entendemos a responsabilidade que este segundo trabalho carregava, entretanto, Leandro tratou isto da melhor forma possível, não como um fardo, mas sim como uma possibilidade. Emicida tornou realidade um discurso muitas vezes encarado como utópico, mas que acompanha quem dispõe-se a estar na vanguarda. Este comportamento autêntico é o pontapé inicial de “Emícidio”, visto em sua primeira faixa, “E agora?”, título que representa um questionamento simultaneamente feito pelo movimento e público do Hip-Hop. O áudio na voz do DJ Nyack representa o espanto inicial e o entendimento nem sempre imediato de quem na época se deparava com um acontecimento único na música brasileira. Após isso, em seus versos, o MC passa a justificar sua posição e estabelece o caminho que irá percorrer dali em diante. Por mais que ainda responda alguns pontos levantados por quem não credita seu nome dentro do jogo, “E agora?” é um esclarecimento rápido e despreocupado ao dar continuidade a um debate que não saía (e ainda não sai) do nível mais raso acerca do fardo social e artístico carregado pelo rap. A faixa deixa para trás algumas perspectivas arcaicas, e abre espaço para que Leandro construa o universo da mixtape por meio de narrativas que vão além do sofrimento do povo preto, pobre e periférico, mas ainda sem deixar de lado a consciência dos espaços onde o artista se formou como pessoa. 

Tal noção do seu eu político e pessoal é fundamental em todo o conceito da tape. Mesmo que numa visão mais purista, uma mixtape seria uma compilação de músicas que não necessariamente relacionam-se entre si, mesmo assim “Emícidio” ainda é norteada por uma ideia central nascida no autoconhecimento de Leandro. O renascimento relatado por Emicida no decorrer do trabalho abre espaço para novos elementos, porém, sabe quais fatores manter atrelados ao teor criativo de suas rimas. Por mais que estruturalmente o MC estivesse preocupado em demonstrar outras concepções de sua vivência e de seus semelhantes, alguns aspectos inerentes ao seu contexto social não foram apagados, e sim tratados com a seriedade, direcionamento e espaço que merecem.  “Cê Lá Faz Ideia?”, “Só Mais Uma Noite” e “Avua Besouro” estão distribuídas em lugares estratégicos da tracklist, sendo retratos pontuais, porém fortes, dos autores desta história que vem desde antes do surgimento do Hip-Hop. Entretanto, estas faixas não são pautadas apenas na dor e agonia, mas fazem parte de uma gradual vitória que está expressa não apenas de forma literal e declamada nos versos, como também em tudo que Emicida carrega neste trabalho. 

“Mixtapes de mão em mão pelas esquina

Se alastra entre os irmão mais que a gripe suína

Os gambé quer mais não pode me pôr algema

Cês esperavam que eu roubasse tudo, menos a cena” (“Avua Besouro”)

 

A capacidade de expor todas as facetas de seu cotidiano é um dos pontos mais fortes de Emicida, mas na maioria dos casos ele vai além disso, sabendo o momento certo de falar sobre determinados assuntos. Aproveitando toda a expectativa acerca do lançamento que viria após sua estrondosa estreia, Leandro usa esses holofotes para pôr em evidência seu amor ao rap e sua relação com a cultura Hip-Hop. Em um movimento muito perspicaz, o MC se vale do espaço conquistado por sua arte para dar voz a um setor da música há muito tempo escanteado pela grande mídia. É incrível e de um valor sem igual pensar que o clipe de uma faixa tão provocativa, numa esfera que ultrapassa o jogo do Rap, como “Então Toma” ganhou tanto destaque em programas de TV. O relato tão visceral e singelo de “Rua Augusta” também é outro exemplo da cultura Hip-Hop derrubando as barreiras levantadas por um status quo que não o permitia estabelecer-se como arte, quando leva consigo a história de várias mulheres invisibilizadas e marginalizadas nos becos e vielas de todo país. Por meio de um esforço coletivo, Emicida e Laboratório Fantasma conseguiram abrir portas para o Rap, tendo como sua principal arma e discurso, o próprio Rap. 

A plataforma que nasce com a Lab alavanca o Hip-Hop para outro patamar prático e representativo e “Emicídio” é o grande responsável por este empreendimento, quando Leandro o concebe como um grande guia por meio de sua vivência com as rimas, b-boys e grafiteiros. Abraçando todos estes componentes culturais e unindo-os através do conhecimento, Emicida escreve um capítulo muito bonito na história recente da música brasileira, demarcando de forma definitiva o espaço de sua música e de quem seguiria seus passos. “Isso Não Pode Se Perder”, “Rinha (Já Ouviu Falar?)”, “I Love Quebrada” e “Santa Cruz” são demonstrações de uma ascensão baseada numa linguagem que não apenas se liga à essência, mas que também se alia a uma estética renovada e a uma lógica de mercado onde o foco principal está na arte e em seus criadores. Esse movimento acabou reverberando fortemente não só na carreira do Emicida, mas na cena nacional como um todo, mostrando as diversas perspectivas narrativas que o Rap poderia adotar. Esta com certeza foi a consolidação de um Hip-Hop mais livre, que agora permite-se contar novas histórias e alcançar novos locais e públicos, mas sem deixar de lado suas raízes. 

Por ser preto e periférico, a carga política do Rap é muito forte (como muitos sabem, ou pelo menos deveriam saber), acarretando em uma ótica muito particular quando o enxergamos ao lado de outros setores da música. Leandro soube muito bem pautar suas decisões artísticas e empresariais para que este espectro de sua arte não fosse deixado de lado e, além disso, soube fazer com que um sistema que o marginaliza e deixa de lado trabalhasse em seu favor. “Emicídio” é uma carta aberta do MC para celebrar seus iguais, para entrar de vez no mercado e mostrar toda sua originalidade artística ao não abrir concessões que deixariam de lado sua verdade. É aquilo que o próprio diz, usa os meios, sem deixar ser usado por eles.  

A Inverso é um coletivo dedicado a cultura Hip Hop e o seu lugar para ir além do comum.