Ascencio aqui. Victor Xamã elevou sua barra ano passado. Depois de “Janela” de 2015, um clássico do undergroud nacional, “V.E.C.G.”, trabalho de dois anos depois, que sofre o mal de ser um compilado de qualidade mas subsequente a um debut muito acertado, o MC manauara resolveu fazer o caminho oposto do que geralmente ocorre. A estratégia de alguns costuma ser molhar a ponta dos pés em projetos usando EP’s e, depois de entender as demandas do seu público, arriscar algo mais longo com álbuns. Mas, após dois destes abrindo sua discografia, o MC resolve trazer o afiadíssimo “Cobra Coral”, de 2020, e lançará “Calor”, ambos EP’s.
O que se demonstra ser esse caminho inverso diz muito literal e também metaforicamente sobre as escolhas e características artísticas que VXamã dispõe. Ir na contramão de um cenário extremamente saturado é louvável e se você puder fazer isso tentando encontrar a melhor forma de apresentar a sua arte, por que não? Sendo assim, “Calor” continua o que parece ser uma prolífica experiência do MC no mundo dos Extended Plays.
Iniciado pela faixa-título, “Calor”, o EP se apresenta desta forma, cuspindo fogo, ao mesmo tempo que tematiza com as temperaturas elevadas da região norte do país, em muito intensificadas pelas queimadas clandestinas. Nic Dias, talento bruto paraense, acrescenta à demanda de respeito vinda do Norte a causa preta e feminina, o que amplia ainda mais o alcance da track. No lado técnico, a MC sabe contar suas barras muito bem obrigado, casando-se com facilidade ao beat. VXamã Goldfinger, em seu turno, demonstra mais uma vez a excelência de sua caneta. Seu diferencial está em saber rimar também suas consoantes, por vezes quase apagando as vogais, mais sonoras, para deixar as explosões e chiados de sua voz se aliterarem em um repleto cardápio de rimas raras, o que lhe dá um diferencial sonoro e rítmico também. Tudo isso em um beat sujeira de lvksound, dono de uma bateria downtempo marcante e um sample de piano suave, quiçá lo-fi, perfeito para balançar a cabeça com a cara enrugada.
As altas temperaturas se espalham pelo EP de diversas formas, em “Contraste” há o calor humano da produção com mais uma bateria de viradas vivas e bons hihats na condução, além de sax, guitarras e um pontual piano, tudo muito orgânico e trabalhado nessa mistura de jazz e blues do próprio Victor. “Balas e Canivetes” traz o calor noturno selvático de Neguim, em um fundo sonoro ininterrupto de natureza, esse elemento criativo dá uma nova atmosfera para um trap de cordas com graves nos kicks (o bumbo), já muito explorado no cenário, renovando-o enquanto se aproxima da proposta do trabalho.
Ambas as tracks mencionadas também contam, cada qual separadamente, com as participações de Froid e Baco, respectivamente. As comparações são inevitáveis, dado o recente histórico de “treta” entre ambos. Enquanto Froid pouco inova seu repertório, priorizando sonoridades mais plásticas para que, entre gemidos e deslocadas rimas em inglês, abdique da coesão, Baco resolve pular no trap com linhas mais longas, buscando encaixar algumas metáforas que nem sempre acerta ao mesmo tempo que, vez ou outra, cai fora do beat. Na disputa, ganha o MC de fora do eixo rio-sp que não busca modificar sua arte para se adequar ao público deste, ou seja, o próprio VXamã que, quando no jazz hop, junto com Gabi Farias que flutua melodicamente no beat, demonstra possuir também groove e ótimas noções de ritmo, valendo-se de pausas geniais ao dar a entrega necessária para track, ora cantando ora rimando. Já no trap, enxuga suas linhas, mas acrescenta agressividade a elas, fazendo com que batam forte com pouco material.
Em mais uma prova de autenticidade, “Manaus Delírio” é um fluxo de consciência a qual o nome se propõe. Performaticamente é irretocável, Victor acompanha suas referências musicais, uma mescla jazz, mpb, com percussões mais alternativas em uma bateria e linha de baixo lindíssima; canta com proficiência e rima a bel prazer no auge técnico do trabalho, uma aula de beatdrop, encaixe métrico, multis e rimas internas além de metáforas criativas. O que amarra tudo é a ideia frenética e intrigante em um verso único de delírios de sua vida e seus espaços.
Achei a peça do quebra cabeça que faltava
Agora é bater a beça a cabeça pra montá-la
Do jeito que eu tento ainda não tentaram
Esse amor atrevido é ímpar
Algo parecido ocorre em “Admiração”, a produção acelera com o sample de piano e elementos sonoros de drill, como por exemplo os pratos mais na cara e o 808 característico. A tentativa de flertar com a nova sonoridade, o que praticamente o cenário todo está fazendo, é até bem feita, porém muito simples para o nível de produção que o projeto apresenta e não chama muito atenção, sendo uma queda nesse quesito para o EP. Xamã tenta correr ao redor da temática título, mas às vezes se distancia um pouco demais, o que não é muito comum em propostas como essas para o MC, de forma que chega, em certo momento, a parecer um arranjo de versos diferentes.
Com a dupla “Cobra Coral” e “Calor”, o MC manauense parece ter encontrado um formato muito perspicaz de agregar ao seu trabalho mais alternativo, regional e extremamente intenso um alcance maior e, consequentemente, um apelo popular mais forte, sem abrir mão de suas características. Espera-se e é necessário, dada sua qualidade, que o MC ganhe mais espaço para sua arte, pois tem trabalhado para isso. Se uma possível sequencia de EP’s continue, ou, se a recente dupla deles esteja preparando terreno para algo maior, uma coisa é certa a essa altura, Victor Xamã está construindo uma sólida discografia diante de nossos ouvidos.