Salve, aka panterinha na casa. Há pouco menos de um ano, Rico Dalasam, natural de Taboão da Serra (SP), lançava o EP “Dolores Dala Guardião do Alívio” e, agora em 2021, agrega ao trabalho o seu segundo álbum, de mesmo nome. O rapper conta com uma bagagem bastante consistente, com 4 EP’s, polêmicas de direitos autorais e o injusto apagamento do cantor no mainstream, o que gerou debates sobre cancelamento virtual.
Hoje, Rico vem lapidando seu espaço a ferro e fogo. Desde o primeiro EP “Modo Diverso” lançado em 2015 e relançado em 2020, muita coisa mudou no seu material tanto visual como sonoro, em um belo processo de reinvenção. Fica claro nos conteúdos recentes o distanciamento progressivo da fórmula do pop, rap e eletrônica. O artista, cada vez mais, prefere ir de encontro a uma sonoridade mais singular e experimental, que só permeia levemente esses gêneros. Definitivamente, DDGA não é um álbum comum.
Ter colocado o EP dentro do álbum com poucas músicas inéditas quebra um pouco a expectativa já que não há tanta novidade, uma estratégia perigosa no sentido do marketing. Mas, como Rico entrega produtos fortes nos quesitos poético e sonoro, espera-se que haja sentido entre as músicas já lançadas e as novas. Com o intuito de fechar uma narrativa já iniciada, aprofundando num arco de redenção, o guardião do alívio aparece com uma meta que perpassa o tempo e os desafios de alguém já bastante calejado, e anseia pela sensação de respiro em olhar para si com sinceridade, cuidado e comunhão. A produção das tracks fica por conta de um time de peso em que a maioria o produz há tempos, isso se torna bastante interessante já que eles aceitam as waves que Rico propõe. O que é visto logo na intro, um prelúdio à intensidade do álbum, começando leve e se tornando mais forte com ajuda principalmente do acordeon acompanhado do piano.
Uma estratégia que está dando super certo em suas músicas é usar as batidas de funk e pagodão em bpms menores, tirando o tom agitado e colocando melancolia enquanto as letras são sempre carregadas de metáforas criativas e satíricas. Apesar do interlocutor falar de dores, decepções, preterimentos, a escrita de Rico tem um quê de engraçado na maneira como coloca as palavras, ao fugir do convencional das rimas e também usando muitas onomatopeias e metáforas. Dentre as faixas, as inéditas compõem o miolo do álbum, reforçando o argumento de que DDGA vêm sendo aprofundado com as mudanças do artista ao longo desse tempo que separa o EP do álbum.
“Expresso Suldamericah”, por exemplo, assim como “Braille” (lançada antes mesmo do EP, como single), mistura questões neocoloniais de uma pessoa situada na américa latina com os dilemas pessoais de Dalasam, que continua expressando seus desencantos e novas visões de mundo latino, preto e tudo o que isso significa tanto de forma subjetiva quanto material, já que os desafios se manifestam em sua realidade artística. A skit “Não é comigo” segue também esse fluxo que denota à experiência do álbum esse vai e vem entre o que é comum e o que é pessoal ao demonstrar as palavras de uma pessoa não assumida em uma relação interracial.
“Você vai peitar 500 anos de uma parada por causa de um amor? Por causa de um suposto amor?”
“Todo ano tenho que cavar, léguas e léguas pra baixo, porque as águas que vêm de baixo são as águas que eu consigo alcançar, porque as águas que vêm de cima não estão disponíveis para mim”
Aliás, não é a primeira vez que sua criatividade permeia esse debate, “Braille” já trazia isso:
Minha mãe diz que eu me fudi
Minha amiga disse assim, ‘cê palmita
Segunda, começo no trampo novo
‘Tô pensando em levar marmita
Rico deixa claro na poesia que passar por situações do tipo interferem na sua arte, preferindo evitá-las ao mesmo tempo que comenta de maneira geral o boicote a artistas negros e lgbtqi+ na indústria musical. O fato de não haver instrumental nessas faixas transitórias, repletas de cunhos poéticos, dão um ar pesado à obra, mas são imprescindíveis para amarrar a narrativa. Na faixa “Última vez” acontece a consolidação dessa amarração, ao trazer uma relação sexual que jura, pelo menos para si mesmo, ser a última.
Me passa feito um Tiktok
Fudendo com meu Tico e Teco
Você fala, eu te ignoro
Você me toca, eu tenho um treco
O trecho é um claro exemplo do tom satírico do artista, coisas simples de grande sacada, ao brincar com o som das palavras e abusar de homônimas e parônimas. A música ainda conta com o instrumental do Chibatinha (Attooxxá) que sempre entrega ótimos beats, mas faltou a guitarrinha característica do produtor para dar uma versatilidade ao instrumental para além de ser um funk/pop, ou, pelo menos, uma acentuação dos instrumentos secundários (inclusive nas cordinhas que se ouvem ao fundo, bem fundo), por trás da percussão também poderiam estar melhores mix e master. Assim, a voz recebe maior destaque, inclusive com uso de falsete, mas deveria ser abaixada um pouco nos locais onde há maior incidência de instrumentos, recursos usados na estrelinha (favorita do público do EP) “Braille” de Dinho e também em “Mudou Como” novamente de Chibatinha junto com Mahal Dita (BayanaSystem, já o produziu em tracks antigas), onde baixo e guitarra são marcantes além de uma das melhores letras de Rico. Com isso, a produção soube exatamente a hora de aproveitar o instrumental sozinho e o uso da voz, e toda a letra é perfeitamente colocada.
No mesmo nível de “Expresso Suldamericah”, se encontra “Supstah”. Estas duas são as que mais se destacam no álbum entre as inéditas, pelo conjunto de realce em letras bem construídas, instrumentos e vozes bem encaixados, melódicos e percussão sincronizados, onde a voz dança com o instrumental bem mixado, tanto que fica bem claro as cordas, o piano e o baixo ao se ouvir. Na primeira, o funk é mais explorado de maneira lenta e na segunda um pagodão misturado com uma viola que deixa a música bem latina/cumbia, mostrando assim a versatilidade do artista nas diversas bases. Uma curiosidade é que ambas são produzidas por praticamente o mesmo grupo de pessoas (Dinho e Moi Guimarães), sendo a diferença apenas que “Supstah” conta também com a presença de NettoGaldino. Além disso, a faixa é mais falada do que cantada, puxando para o lado do rap com um esquema lírico que lembra o boombap sendo mais cantada no refrão, é como se Rico estivesse dizendo que ainda sabe fazer.
O último interlúdio, “Outros finais”, antecede a faixa final “Estrangeiro” e conta com versos emocionantes da mãe do MC ao definir toda a densidade do trabalho:
Djavan chama paixão de cela,
Trevas loucas de um samurai,
Meu fi
Ser encontrado é o pior na guerra
Mas se encontrar é melhor na paz
Por outro lado, “Estrangeiro” não se destaca dentre as demais, sendo a faixa mais fraca, tanto entre as inéditas como entre antigas, age para fechar o disco e demonstrar como Rico se sente, mas, na qualidade técnica da previsível letra e do beat não supera nenhuma das demais.
Dalasam (Disponho Armas Libertárias A Sonhos Antes Mutilados) não precisa estar sempre no mainstream para provar seu talento já que se encontra numa boa fase, explorando diversas vertentes. O resultado disso é conjunto de uma obra bem densa a que se falta classificações, um funk/pop ainda sem nome específico, o que é interessante no aspecto da originalidade e reafirma que a fórmula vem dando certo, ao menos por enquanto. O álbum funciona como um grande bônus, extensão do EP, e é lançado no momento certo como dois atos, sendo o segundo mais arriscado devido à alta performance do primeiro. Porém, no espetáculo geral, ocorrem poucos pontos baixos, e se alcança uma boa simbiose.
“Dolores Dala Guardião do Alívio” carrega o grito do alívio, a volta daquele que sempre deveria estar aqui, é um álbum tocante capaz de atingir diversas camadas sociais e sensibilidades, para além de seus méritos técnicos. O artista é, sem dúvida, um dos maiores atualmente e eleva o nível do game sempre com trabalhos coesos. A disposição das tracks foi bem pensada e as inéditas conversam com as demais, resultando na construção de uma narrativa coerente que ora é pessoal, ora coletiva, e assim, naturalmente política.