Ser um artista à margem da arte dominante não significa apenas ir contra a correnteza. Em um livro, as notas, comentários e observações que o leitor faz na margem das páginas – também conhecidos como marginálias – não necessariamente vão contra o que está originalmente escrito, mas também podem complementar o trabalho de uma forma que o escritor original nunca pensou antes. E, enquanto o rap brasileiro é um livro que tem em suas páginas grandes nomes fazendo sons que se encaixam no mainstream, Murica segue rabiscando em suas margens. Depois da boa recepção de Fome e Sede, seus dois primeiros discos, lança agora o EP O que restou da Marginália, trabalho que estende o catálogo de influências do rapper ainda mais.
Mesmo na sua época de batalha de free em Brasília, Murica nunca foi distante da música que sempre quis fazer. Em parceria com Prs e Ronchi, integrava o Puro Suco, grupo que explorava o leque sonoro imenso do Brasil, com rimas ferozes, politizadas, métricas e também vocais suaves que passeavam pela tropicália e pelo samba, sem nunca perder a sua essência hip-hop. Enquanto o grupo se aproximava com inocência de todas suas influências, foi na carreira solo que o rapper começou a aperfeiçoar o seu trabalho. E a qualidade – e brevidade – desse EP, deixa claro que ele é apenas um impulso para um salto ainda maior do MC.
Com apenas 5 faixas (e 4 músicas de fato, já que a primeira é uma intro sem rimas), o disco não chega aos 11 minutos. Quem conhece a carreira do rapper sabe que isso não é novidade, já que seus dois trabalhos anteriores tinham pouco mais que 20 minutos. Uma outra coisa que se manteve, desses projetos até o atual, foi a produção quase que completamente nas mãos de MK, parceiro de longa data de Murica. E não é por menos, com a ajuda do produtor, ele criou essa complexa colcha de retalhos sonoros do Brasil em forma de boombap que vem se repetindo em sua discografia.
Os samples do produtor brasiliense conseguem ir do abstrato ao mais direto, passando por diversos campos da cultura brasileira logo na abertura ‘O Silêncio e a Batucada’ Seja na poesia de Clóvis Campelo ou no discurso inflamado de Paulo Leminski, o que é sampleado reflete a energia do disco, sempre adicionando mais uma camada ao que vai ser dito. Juntos, MC e beatmaker estão tão conectados em sua caminhada musical que o único beat não produzido por MK, um boombap clássico pelas mãos de Iuri Rio Branco, destoa principalmente pelo sample mais soturno (fugindo dos samples mais quentes) e na forma que a percussão é utilizada (é possível notar uma maior integração entre o baixo e a bateria nos beats de MK, principalmente pela influência da música brasileira dos anos 70 e 80 na sua produção).
Assim como os beats, os versos presentes no EP esbanjam qualidade. Murica é filho das batalhas e prova isso também no estúdio. Seu flow e métrica são certeiros por todo álbum com linhas carismáticas e livres, que circulam por todo beat buscando se encaixar em cada parte dele. Apesar disso, algumas rimas do disco são focadas exageradamente em fazer referência a outros artistas que parecem não se encaixar (são diversas linhas aleatórias que falam sobre estar ouvindo algum artista brasileiro, coisa que o MC traz desde o começo da sua trajetória). Outras são tão simples que, quando não estão inseridas num contexto maior para ganhar força, passam despercebidas.
Todas as quatro músicas contam com alguma participação especial que não desperdiçou o convite. O manauara Victor Xamã é feat na faixa inteligentemente batizada de ‘Coral e Cascável'(referência a músicas de Xamã e Murica, respectivamente). Em ‘Kung Fu de Rua’, o paulista Vietnã rouba a cena com um ótimo verso. Seu flow agressivo e linhas que chamam a atenção (“Se tiver no caminho vai sobrar nenhum / Oferecendo um brinde a todos meus rivais / No decorrer dos dias caem um por um / Todos os amigo faixa preta em artes marginais”) ao casarem bem no beat que mistura diversos sons remetentes à Ásia.
‘Guerrilha Urbana’, com o carioca Daniel Shadow, não chama tanta atenção nas rimas quanto as outras faixas, mas também não decepciona. Talvez por ser a única faixa que não foi produzida pelo MK, a forma com que o flow de Murica é moldado com perfeição chama mais atenção do que o que está dizendo. O encerramento, ‘O Fino da Bossa’, é uma parceria de sucesso com Davzera. O flow inflexível e desanimado do rapper baiano se complementa bem com a musicalidade e fluidez do flow do rapper brasiliense
No fim, O Que Restou da Marginália é tão curto que o projeto não tem espaço para erros graves. Ao mesmo tempo, o potencial de Murica é tão grande que esse EP não parece ser o ápice do artista, que ainda se escora em algumas sonoridades já abordadas em discos anteriores e a uma quantidade grande de referências. Entretanto, é um puta de um passo na direção certa.
Melhores faixas: “Kung Fu de Rua” e “O Fino da Bossa”