Review: Kant – O Inferno de Kant

É como se tudo nesse projeto fosse feito para que o rapper parecesse mais descolado, sem levar em consideração as nuances que um álbum precisa ter para que funcione.

As batalhas de rima mudaram muito nos últimos anos. Se, há 10 ou 15 anos atrás, elas eram vistas como um rito de passagem para qualquer aspirante a MC, hoje se tornaram um universo independente, na qual as mais famosas empilham milhões de visualizações a cada confronto. Mesmo que seja discutível o apelo e o público que algumas delas dão espaço para que continuem movimentando dinheiro, é inegável a importância que as rodas têm para a carreira dos que, nela, se destacam. E Kant é um deles.

Entre os méritos que fizeram o MC alcançar a popularidade que tem nas batalhas, são dignos de nota seu raciocínio rápido para montar punchlines e sua extremamente característica mistura de flow acelerado com muitas e muitas rimas internas. Para um público sedento por sangue, ele tem o ideal,  mas isso não se aplica ao criar um disco fechado. Pelo contrário, se um rapper ficasse por 51 minutos empilhando braggadocios juvenis sobre ser o melhor e respondendo ataques vindos de lugar nenhum, seu disco seria terrível. Infelizmente é isso o que define O Inferno de Kant.

O projeto não possui nenhum foco. Com exceção da primeira e das duas últimas faixas, todas as demais poderiam ser embaralhadas, e o saldo seria o mesmo. Na verdade, as únicas coisas que dão algum senso de coesão entre elas são a performance repetitiva do MC e a produção tão pouco inspirada quanto. A fórmula geral é muito simples: batidas bem minimalistas de trap – com hi hats e graves amplificados sobretudo nos refrãos – e versos com pouquíssimas pausas, sempre carregados de punchlines e multissilábicas que vão do aceitável ao completamente forçado (Me sentindo vital, que tal um cristal? Uh, toma help/ Meu drip surreal, letal, ilegal, uh, como Thomas Shelby). Uma vez essa fórmula rapidamente percebida, o resto da experiência se torna ainda mais incômodo.

Também é válido comentar sobre a enorme influência que  Eminem ainda exerce sobre o estilo do Kant. Seja no speedflow, nas referências de mal gosto (Usando mais droga do que a Amy Winehouse) ou no delivery desnecessariamente agressivo conforme o instrumental acelera; chega a assustar como o “Demônio da Aldeia” só consegue se inspirar no que há de mais datado e desinteressante no rapper de Detroit. Esqueça qualquer momento de autocrítica ou introspecção, pois o modus operandi do Kant, no que se refere a responder críticas, se resume a mandar seus supostos haters praticarem sexo oral nele, como em ‘Purgatório’,’Click Clack Bum’, ‘Aquaman’ ou ‘BBB’.

E isso já nos leva às love/sex songs do álbum que, além de não funcionarem por sobrepor o braggadocio a qualquer tipo de abertura emocional, ainda são recheadas de linhas no mínimo questionáveis quanto ao retrato das mulheres. Nas faixas que não possuíam foco, versos como “Minha vida tem sido tão foda agora/ que tô estreando meu documentário no XVideos” até poderiam passar batido em meio ao rappity rap que as permeia, mas em ‘Crazy Love’, por exemplo, o sexo é descrito de um modo bem mais objetificante, o que arruína a melhor progressão instrumental de Chiocki no disco. Já em ‘Milfs’, a falta de tato do MC consegue fazê-lo cuspir barras ainda piores que o seu speedflow monótono.

Cheio de MILF gritando ‘vem pras tia!’

Eu sou um amor pras tias

Principalmente pr’aquelas que já fizeram mamoplastia

Las ticas

Solteiras e sem lástimas, elásticas

AKs, tão eficientes quanto metralhadoras semiautomáticas

O uso de drogas também é outra estranha obsessão temática do rapper, destacável sobretudo nas faixas ‘Droga Na Chuva de Capa’, ‘Vida Digna’ e ‘Hard Times’. E, por mais que a romantização de seu consumo não seja um problema exclusivo dele, não deixa de ser enfadonho ouvir linhas tão genéricas como “me falta tempo pra quem não bafora” ou “drogas e motéis me perseguem”, sendo proferidas como se fossem muito arriscadas e subversivas. Também não ajuda o fato de muitas dessas linhas forçarem rimas em inglês, como na dolorosa ‘Tyler’, onde ele recicla mais duas rimas ruins de seu catálogo.

Sério que você se achava o Eminem?

Devia tá mais drogado que a Amy Winehouse

Cocain te serviu de Whey Protein

Você era como um herói pra mim… Rain Man

As participações, entretanto, conseguem trabalhar a favor do disco, como na já referida ‘Click Clack Bum’, onde Nog também entrega um verso pastiche do que o Eminem fazia em sua juventude, mas, pelo menos, com algum equilíbrio na técnica. Mikezin e Krawk também entregam boas passagens em ‘Best Friends’, em especial pelos seus flows melódicos, que dialogam bem com a batida soturna e ainda criam pequenos contrastes nas suas ocasionais interrupções. ‘Dança’ conta com participação de MC Guimê e, por incrível que pareça, é a faixa com a melhor dinâmica anfitrião/convidado, tanto pela intercalação entre os versos de cada um, como pelas rimas serem bem espaçadas ao redor do loop de cavaquinho. Se Kant, no geral do trabalho, desse mais espaço entre as barras e as entonasse com uma variação semelhante ao que foi mostrado aqui, seus esquemas de rima e punchlines soariam muito melhor.

 

Partindo para a reta final, temos ‘Depressão Pós Arte’, que também tem o seu punhado de linhas pretensiosas, mas consegue fazer o disco se encerrar dignamente por apresentar uma espécie de conclusão do fluxo de consciência  iniciado em “Purgatório”, desperdiçado em todas as tracks que a sucederam. Assim como na faixa inicial, o instrumental é conduzido por um loop de piano, o que é uma escolha bem óbvia para faixas introspectivas, mas que consegue ser efetiva pela honestidade nas barras e por ter um desprendimento lírico que, de muitas formas, faltou nesse álbum. 

Esse é o maior dos problemas de “O Inferno de Kant’‘: ele nunca soa realmente honesto. Para cada linha minimamente confessional, há uma sequência de autoafirmações e referências vazias. O próprio nome do projeto acaba por ser uma referência vazia, já que o mais próximo que ele chega do poema épico de Dante Alighieri é se comparar a um demônio. É como se tudo nesse projeto fosse feito para que o rapper parecesse mais descolado, sem levar em consideração as nuances que um álbum precisa ter para que ele funcione, prova disso é ter um remix de “Click Clack Bum” logo após um dos únicos momentos em que o rapper não deixou o ego falar mais alto.

Que o “Demônio da Aldeia” sabe quebrar as sílabas para montar rimas não usuais, qualquer um percebe. Mas, a falta de um equilíbrio na hora de exibi-las faz com que seu maior trunfo nas batalhas seja a sua maior limitação no estúdio. No fim, essas 17 faixas acabam sendo um dos mais absolutos e não intencionais exemplos do quão próximas são a técnica e a mediocridade. E, enquanto Kant não se desprender das suas referências, dos seus fãs e dos seus inimigos imaginários, ele vai continuar sendo um rapper que não sabe o que dizer quando não tem quem rebater.

Melhores Faixas: Purgatório, Dança, Best Friends e Depressão Pós Arte

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