Review: Edgar – Ultraleve

A criatividade em buscar falar sobre o futuro sem se esquecer do seu passado torna Edgar único na cena, unindo fruto e raiz

Raízes e frutos são lados opostos de uma árvore: as raízes seguem em direção ao solo enquanto os frutos miram o céu, e ambos têm suas funções bem definidas, o que importa é a existência de vida em cada parte da planta. Na música de Edgar, rapper de Guarulhos, as raízes e frutos se retroalimentam de maneira orgânica num só ciclo. Depois de alcançar maior destaque com Ultrassom, seu terceiro trabalho lançado em 2018, o MC retorna agora com Ultraleve.

Repetindo a parceria de sucesso com Pupillo, produtor do disco anterior e ex-baterista do Nação Zumbi, a sonoridade do projeto novamente mergulha em um mar de influências ancestrais misturado a um desbravamento tecnológico, dando a esse disco um tom de continuação (representado inclusive na nomeação dos últimos dois projetos do artista), repetindo conceitos do álbum anterior (ainda que apresentados de forma diferente) com uma sonoridade extremamente similar. ‘Sem Medo’, uma das faixas destaque, mistura um slow jazz com sintetizadores e música progressiva. Já ‘Manifesto do Azulejo’ mescla de forma animada elementos de guitarrada com funk carioca e afrobeat em uma faixa cujo único defeito é ser repetitiva. Edgar não desperdiça o bom beat, falando sobre sociedade moderna de maneira criativa e, diferente do seu último disco, no qual o artista falava sobre a ótica de um profeta, aqui ele é Edgar, falando de forma direta sobre o mundo que ele vê. 

Em ‘A Teologia da Violência’, o MC mistura flows, entonações e sotaques num beat complexo e com padrões diferentes de linhas de baixo e percussão, mas que dá espaço para que a capacidade lírica do MC possa se sentir livre. Outro bom exemplo está na incrível ‘Que a Natureza Nos Conduza’, única track com participação de outro rapper, Kunumi MC, que aproveita o beat com fortes sons de guitarra e instrumentos de sopro para lançar dois versos: um em português, falando sobre a luta dos povos indígenas e com uma mensagem de união entre oprimidos, e outra em guarani, representando o rap indígena brasileiro. A capacidade poética do anfitrião o impede de desperdiçar o beat por completo, mas, às vezes, acaba se virando contra ele, fazendo com que soe pregador demais. 

A diversidade sonora não se resume somente a influências fora do rap. Assim como ele aborda as raízes musicais brasileiras, também se aproveita dos seus frutos recentes: na faixa ‘Também Quero Diversão’, o MC pula por percussões que vão e voltam do funk ao trap, com hi-hats e sintetizadores potentes. Na caneta, Edgar fala sobre diversidade, violência policial e repressão, ora com rimas criativas (como a súbita frase “estamos voltando de novo a 64”, enunciada de forma explosiva em meio a referências de funk), ora com outras nem tanto (como o trocadilho entre “diversão” e “diversidade de gênero” no refrão).

O ponto mais alto do disco é sem dúvida a track ‘O Último Peixe do Mundo’, uma faixa surpreendente do começo ao fim. O baixo potente e repetitivo (mas sem soar enjoativo) e as melodias 8-bits, que lembram uma trilha de vídeogame, ganham vida quando mesclado com um pouco de samba na percussão, e a mudança no beat, que passa para um sequência de hi-hats de trap enquanto um coral canta até o encerramento da música, dá o tom grandioso. Além da incrível performance de Pupillo no instrumental, vemos aqui também a melhor demonstração da caneta de Edgar. Com seu flow disparado, ele passa por assuntos como violência do estado, privilégio, racismo, festas, e capitalismo valendo-se de linhas críticas e criativas, sempre misturando referências em suas rimas (“Joga pro alto, com a mão pra cima e repara que todo produto é um assalto”).  Uma das linhas mais fortes vem em uma crítica à cena musical:

Estamos a venda, estamos vingados, artistas na promoção

Viramos a lenda de não ter deixado ideologia em liquidação

Tá todo mundo no mesmo barco e o naufrágio é exceção

O problema é simples, tá do seu lado querendo que a música só tenha refrão

 

Uma das constâncias da lírica do MC se repete em Ultraleve: suas diversas referências à computação em linhas de terror tecnológico. Em ‘A Procissão dos Clones’, o rapper fala sobre espaçonaves, humanidade e problemas sociais, como visto na rima “atualize o seu sobrenome, é muito bonito mas não mata a fome”. O instrumental remete ao rock industrial de Nine Inch Nails com curtos interlúdios de boom-bap, enquanto os vocais de Elisapie, responsável pelo refrão, lembram as vozes das cantoras de Warpaint.

Porém, quando essas referências não acertam, soam relativamente forçadas. Em ‘Saia da Máquina’, por exemplo, a frase “cuidado para não perder o seu software” soa simples quando posta ao lado da mais criativa “passa os plugin pra mim”. Na track ‘Mentes Mirabolantes’, um dos momentos mais cansativos do disco, o rapper exagera no uso de modulação vocal para simular uma voz robótica, fazendo com que o refrão pareça mais longo do que realmente é. Por ironia, ela é a faixa mais curta do disco, com 3:19 minutos, enquanto as outras ficam próximas da marca dos 4 minutos.

A criatividade em buscar falar sobre o futuro sem se esquecer do seu passado torna Edgar único na cena, unindo fruto e raiz. Com algumas falhas e muitos acertos, Ultraleve é uma continuação do trabalho bem feito da união entre o rapper paulista e o produtor pernambucano, permitindo mais uma vez que visitemos esse espaço instigante e abrasivo que eles criaram dentro do hip-hop.

Músicas favoritas: Que a Natureza Nos Conduza, Sem Medo, O Último Peixe do Mundo

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