25 anos de Reasonable Doubt: o storytelling na estreia de Jay-Z

Por oferecer um pedaço da experiência nova-iorquina  de um período, ele continuará a viver por muito tempo nos corações e ouvidos daqueles que representa e inspira.

Era 1995 e Jay-Z se encontrava perdido. Após o lançamento do single ‘In my Lifetime’ em 94, e algumas participações em singles de outros artistas, Shawn Corey Carter não tinha nenhum acordo para um projeto solo com alguma gravadora, então o jeito era fundar sua própria. A Roc-A-Fella Records nasceu em 1995 para que Jay Z debutasse , e assim, em 25 de Junho de 1996, nossos ouvidos foram premiados com Reasonable Doubt. A trajetória do rapper do Brooklyn se tornou essencial no contexto nova iorquino dos anos 90, onde Ready to Die de seu amigo Notorious B.I.G. e Illmatic de Nas reinavam, e a necessidade do seu espaço ficou urgente e obrigatória. A produção do álbum, que conta com beats de DJ Premier, Ski Beatz, Clark Kent, Irv Gotti, e do antigo parceiro de Jay, Jaz- O, complementa a crônica gráfica, massiva e gângster, como a trilha sonora perfeita  de um filme de máfia passado no Brooklyn. 

Durante a gravação do álbum, Jay Z estava imersivo na vivência de rua, em inúmeras entrevistas sempre deixou explícita sua vida no tráfico de drogas e a violência que o cercava no Brooklyn dos anos 70, 80 e 90. Essa conjuntura foi o ponto principal para que o álbum fosse se estruturando, uma grande crônica de todos os eventos que aconteceram em sua vida e seus testemunhos de fatos ao seu redor, é assim que podemos resumir Reasonable Doubt, que com muita finesse descreve contos das ruas do Brooklyn, mesclado ao universo da máfia e da vida de gângster. Para que seu discurso fosse direto, Jay se personificou como um grande narrador de uma história constante, talento que vem da sabedoria de quem ama a cultura hip hop e de sua ascendência, ligada à tradição africana da oralidade e aos contadores de estórias, onde há todo um processo narrativo presente em todas suas formas culturais resultantes da afro-diáspora. 

Enunciando sua história, este álbum detalha a vivência das ruas, mas de uma forma onde o Jay hustler não é tão diferente do Jay rapper, suas experiências trazem uma profundidade extrema onde ambos se fundem na narrativa. Grande parte dos versos de Jay insistem em uma condição do escrito autobiográfico, essa literatura do “eu” confere um tom do poeta que visa de forma descontraída poetizar o cotidiano do Brooklyn, retomando suas lembranças mesmo que metaforicamente. Apesar disso, ao fazer audição do álbum é criada uma distância entre o que é real e o que é ficção, entre o que é poesia e o que é vida privada, entre o que é autobiográfico e o que é puro fingimento poético. Isso encaminha a audição para o âmbito pessoal e firma os dizeres poéticos como tais. A linguagem estética e a escrita fundem-se, uma sustentando a outra, tornando o empreendimento autobiográfico evidente e colocando o ouvinte no plano do confidente inestimável. Nesse ponto de vista, o diálogo autobiográfico é estabelecido, espontâneo e íntimo. Os versos repletos de um relato cotidiano e a primeira pessoa em foco tornam a sinceridade de Jay-Z irrefutável. 

I never prayed to God, I prayed to Gotti

That’s right, it’s wicked – that’s life, I live it

Ain’t askin’ for forgiveness for my sins, ends…

A primeira faixa do álbum, ‘Can’t Knock The Hustle’, com feat de Mary J. Blige, é um grande exemplo do exercício autobiográfico somado à ficção. Hova usa sua vivência do tráfico para criar a linguagem de sua lírica, mas de uma maneira metafórica, pois a mesma se refere à indústria do hip hop e à necessidade de ser rentável tanto na música como no tráfico. A narrativa contínua fica explícita em todo álbum: ‘Politics As Usual’ se liga diretamente a ’22 Two’s’, articulando múltiplos discursos nesse mesmo universo gângster, conferindo uma coerência lírica a Jay, e demonstrando sua excelência e talento como rapper de freestyle. Além de ‘Can I Live’ ter uma segunda parte que fecha o álbum majestosamente. 

Administer pain, next the minister’s screamin’ your name

At your wake as I peek in, look in your casket

Feelin’ sarcastic, “Look at him, still sleepin…”

Faixas como ‘D’evils’ e ‘Can I Live’ já se distanciam da personificação e da ficção, trazendo uma vibe mais densa e analítica. Durante as faixas, um Jay-Z reflexivo testemunha sua crônica em seu formato mais cruel, onde ele apela por sobrevivência e ao mesmo tempo transparece a ética que opera dentro do tráfico. O puro relato retrospectivo que Hov faz da sua própria existência nestes versos, colocando ênfase em sua vida individual e, em particular, na história de sua persona como rapper. 

Well, we hustle out of a sense of hopelessness

Sort of a desperation

Through that desperation, we become addicted

Sort of like the fiends we accustomed to servin’

But we feel we have nothin’ to lose

So, we offer you, well, we offer our lives, right?

What do you bring to the table?

O que o álbum mostra é o estabelecimento de uma identidade através de uma história, a complexidade linguística que o rapper constrói para compor sua lírica desenvolve muito bem o conceito de “passar a visão”. A representação em sua máxima de como um jovem rapper saiu do underground detalhando os problemas éticos que ele tinha consigo mesmo, usando seu território como o espaço de sua narrativa. A produção é o complemento perfeito para que o sentido não se perdesse, com uma finesse indiscutível e a potência do boombap noventista. Faixas como ‘Dead Presidents ll’ se tornaram inesquecíveis e representantes do auge da estreia de Jay-Z no mainstream, e sempre retornam em discursos distintos e novos na cena. 

Hoje, este disco se tornou uma referência de conversas sobre os maiores álbuns de rap de todos os tempos, à medida que gerações novas e antigas reconhecem seu status clássico. Por oferecer um pedaço da experiência nova-iorquina  de um período, ele continuará a viver por muito tempo nos corações e ouvidos daqueles que representa e inspira. “O álbum inteiro é uma música, é um pensamento incrivelmente completo”, disse um dos produtores, Clark Kent. Quando você ouve Reasonable Doubt, entende porque Jay é um bilionário: ele teve aquela mentalidade de hustler desde o primeiro álbum. Ele abriu os olhos para alguém que poderia ter sido ignorado, e nunca saído do underground. Mas também, para os novos ouvintes, permite que saibam como ele chegou onde chegou hoje. 

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