É sempre interessante observar como alguns artistas conseguem usar a internet para catapultar a sua arte. Se, 3 anos atrás, a maioria das pessoas achava que Doja Cat seria apenas um meme que logo cairia no esquecimento, a a recepção positiva do álbum Hot Pink! e o posterior sucesso comercial do single ‘Say So’fez com que ela alcançasse em pouco tempo o status de uma diva pop, com todos os méritos e polêmicas que o termo é associado.
Entretanto, algumas dessas polêmicas, como os vídeos em supostas chamadas com supremacistas brancos, ou o breve atrito com Nas, fizeram com que Amala Dlamini – seu verdadeiro nome – gradativamente se tornasse uma persona non grata no Hip Hop, mesmo colaborando com artistas de alto calibre como Nicki Minaj e The Weekend. Há de se admitir que outro motivo pela rejeição que ela sofre é decorrente do machismo que permeia o próprio movimento – que ainda se escandaliza quando rappers femininas assumem papéis de dominância – mas é perceptível que a sonoridade dela tem se distanciado cada vez mais do rap convencional.
Num geral, Planet Her não amplia essa distância, pois boa parte dos instrumentais ainda segue as tendências do trap atual, mas também não se propõe a encurtá-la com versos mais contestadores ou introspectivos, preferindo ao invés disso explorar a versatilidade de Doja no transitar entre a palavra rimada e a cantada. Dessa forma, temos um trabalho razoavelmente coeso que reafirma seus talentos, mas não faz muito esforço para contornar suas limitações.
Isso já é perceptível em ‘Woman’, que além de contar com um afrobeat genérico, ainda introduz o conceito do disco com tamanha superficialidade que retira qualquer expectativa de maior desenvolvimento nele. ‘Naked’ e ‘Get Into You’ conseguem ser mais marcantes por apresentarem adlibs grudentos e boas variações de flow, principalmente nos versos mais rimados, mas ainda soam muito próximas do estilo de braggadocio de Nicki Minaj. Não são faixas ruins, mas são as que mais destoam da coesão sonora encontrada no resto do projeto.
A partir daí, os méritos começam a se sobressair. ‘Payday’, por exemplo, usa e abusa dos adlibs melódicos durante o refrão e os versos, fazendo uma ótima transição entre a performance de Doja e os vocais quase infantis de Young Thug. ‘Need to Know’ também usa os adlibs para dar mais camadas ao instrumental carregado de sintetizadores, e ainda conta com uma boa sequência de metáforas sexuais em seu primeiro verso. A artista pode não ter a maestria de criar punchlines memoráveis como alguns de seus contemporâneos, mas a oscilação de tons que ela alcança com aparente facilidade garante seu espaço.
What’s your size? (Size)
Add, subtract, divide (‘Vide)
Daddy don’t throw no curves (Curves)
Hold up, I’m goin’ wide (Wide)
e could just start at ten (Ten)
Then we can go to five (Five)
I don’t play with my pen (Pen)
I mean what I writе
As collabs com Ariana Grande e The Weekend (em ‘I Don’t Do Drugs’ e ‘You Right’, respectivamente) também se mostram bastante frutíferas na performance. Se, na primeira, temos uma competente exploração do paralelo entre um relacionamento e o consumo de ilícitos, na segunda é a química entre as vozes que consegue tornar um tema tão batido quanto a infidelidade em algo provocador. Também é válido comentar a habilidade de Doja em criar pré-refrães que sejam cativantes ao ponto de tornarem até o mais simples refrão numa pequena catarse para a faixa.
Essa catarse, entretanto, não consegue compensar o cansaço de algumas composições. Como já desenvolvido até aqui, a maioria das faixas são (ou pelo menos se vendem como) lovesongs, mas a falta de um conceito e a evidente busca pelo próximo hit fazem com que qualquer performance menos inspirada evidencie as descrições genéricas que ela faz sobre relacionamentos, seja nos felizes, nos dramáticos ou nos descompromissados. O pré-refrão e o refrão de ‘Love to Dream’, por exemplo, são de uma mediocridade que já não é esperada de uma artista neste patamar.
I know what you mean, you don’t fuck with randoms
I got everything, everything but real love I got in my head,
I bet you could get me back out
Or you could leave me there, ‘cause
We just love to dream
I fell asleep when you woke up, oh
It’s not you, baby, it’s just me
I don’t believe what I just lost
Chegando na reta final, os momentos do álbum começam a caminhar numa linha tênue entre manutenção da coesão e falta de inventividade. ‘Been Like This’ apresenta um soturno instrumental com uma agradável distorção durante o refrão, mas é desperdiçado pela entrega vocal muito semelhante ao que Rihanna já entregou no passado. ‘Imagine’ parece um pastiche dos insípidos singles do começo da última década, que inseriam autotune nas vozes das cantoras para que elas soassem mais ‘tecnológicas’; e apesar de ‘Alone’ ser, desde o começo, ambientada num desinteressante loop de violão, a track daria uma conclusão bem mais ousada para o projeto do que ‘Kiss Me More’, que, mesmo tendo uma agradável contribuição de SZA, ainda soa como uma tentativa de reproduzir o sucesso de ‘Say So’ (com moderado sucesso, visto que a track já figura entre as 10 mais ouvidas na Billboard)
São nesses momentos em que o apelo comercial de Amala parece trabalhar contra ela: quando seu inegável talento parece direcionado em quebrar o próximo recorde de streamings, e não em entregar um trabalho que apresente, explore e amarre cada uma de suas facetas musicais. E o fato de ela estar obtendo grande sucesso nessa empreitada pode acabar desequilibrando ainda mais a balança.
Dessa vez, porém, o saldo se mantém positivo. Não é possível terminar a audição sem reconhecer a sua habilidade em encorpar instrumentais com a própria voz, seja variando o tom, adicionando bons adlibs, potencializando seus refrães – ou fazendo tudo isso ao mesmo tempo. Doja Cat pode alcançar a excelência algum dia, mas para isso, será necessário um comprometimento temático que, aqui, ela abriu mão sem nenhum remorso.
Melhores faixas: Payday, Need to Know, I Don’t Do Drugs e You Right.