É muito fácil qualquer tipo de conversa burra surgir nas redes sociais. Afinal, são as redes sociais: ou estamos falando sobre coisas extremamente importantes ou coisas extremamente inúteis. E uma das tantas discussões que surgem dentro do hip-hop é que alguns elementos dessa cultura estão mortos, como o boombap. Obviamente, o boombap não morreu. Ele está vivo e, com o perdão do trocadilho, tirando um ótimo cochilo nas mãos de SonoTWS.
Natural de Jundiaí, o produtor já vem há um bom tempo mostrando o seu valor e talento pelo underground e Otra Fita é um trabalho que, mais do que mostrar a capacidade de Sono, cimenta o seu nome como um dos melhores beatmakers da cena. O que era originalmente uma beat-tape a convite da YourID há pouco mais de 2 anos atrás, acabou virando um palco brilhante para uma reunião de ótimos MCs brasileiros de diferentes momentos do nosso rap, e que, junto do lançamento nas plataformas digitais, também foi lançado até em vinil.
E isso não é uma simples escolha mercadológica. A sonoridade boombap do projeto é fortemente baseada em sample, com todos os instrumentais criados numa SP-1200. Com a magia que ele faz na sua sampleadora, Sono consegue criar uma sonoridade perfeita para cada convidado. Em ‘Inversão’ o sample de violino soa assustador, alinhado a um baixo e percussões mais simples, formando um beat classudo pra que Zorack, do lendário Ascendência Mista, pudesse rimar sobre morte e caminhada.
O sample de instrumentos clássicos também se repetem em ‘Extra Extra’, dessa vez dando uma ideia de grandiosidade, com um loop propositalmente escolhido para levantar a energia sempre na virada da contagem do beat. Supperbiro, MC com longa história no underground paulista, aproveita o instrumental para lançar ótimas rimas:
Os branco e os preto já se gosta
e não gosta de Skol
Alô classe C, eles não gostam de você
Opinando num prédio onde não entra luz do sol
Em ‘Bom Senso’, o sample acelerado de piano ajuda a criar uma energia para uma track que é, no fundo, uma música sobre contemplação e dar voz aos seus próprios pensamentos. A incrível participação de Zudizilla traz também criatividade para a forma com que a música segue pelo seu flow e pelas suas rimas (destaque para o ótimo uso de repetição da palavra “mais” em um dos esquemas do MC). Mesmo em ‘Enredo’, que é um dos pontos mais baixos do disco (mais pela participação irregular dos MCs da Avante O Coletivo do que por qualquer falha no instrumental), algumas linhas falam justamente sobre a importância do sample dentro do hip-hop, como “ressuscito cultura, igual o sample do vinil”.
Apesar disso, o produtor não se apresenta no disco como um “resgatador de culturas” dentro do hip-hop, mas a música de Sono tem esse poder apenas por ter esses elementos como base. Não é só o boombap sampleado que Otra Fita exalta, mas também a cultura do grafite. Afinal, existe um bom motivo para o TWS no seu vulgo: a sigla (em inglês) significa “Os Meias De Lã”, grupo voltado para o grafite do qual o artista fazia parte.
Em ‘Sai Fora Pé Frio’, Bonsai usa o nome pra fazer referência ao real significado de TWS, falando sobre muros pixados e comentando sobre coisas que só quem já sentiu o cheiro da tinta saindo do jet e marcando os muros vai se identificar. O beat é simples, mas agradável e permite que o refrão cantado não soe muito distante da música.
Já ‘Irmãos de Tinta Parte 2’, com Jamés Ventura, uma das melhores músicas do projeto (e que o nome obviamente faz referência ao grafite) é muito mais energética na hora de tratar esse assunto. O loop de contrabaixo extremamente proeminente é quem guia a melodia, enquanto suaves toques de piano preenchem os vazios da track, dando maior profundidade para o instrumental. Na faixa, continuação de uma música antiga do MC convidado, ele cria cenas vívidas e psicodélicas de momentos vividos na atividade, junto de ameaças bem colocadas (“Eu vou pixar o seu muro / Você vai ver o meu vulgo / Em toda sua quebrada”).
Na primeira track do disco, ‘Um em um Milhão’, Tiago Frúgoli brinca com o nome do coletivo de grafite e do produtor para também falar sobre riscar muros, com linhas como “Beat do Sono / TWS leva as lata / Contorno preto / Preenchimento prata”. O beat, apesar de ter majoritariamente um contrabaixo e piano que puxa a música para uma vibe mais jazz (principalmente em seus segundos finais), também tem leves toques de brasilidade, às vezes lembrando o piano de Sérgio Mendes.
Por se tratar de um disco que depende tanto das participações, é esperado que elas não façam feio no beat. Em alguns momentos, porém, parece até apelação do produtor. ‘Sem Sono’, ponto altíssimo de Otra Fiat, tem a participação de Kamau e Matéria Prima, que, como esperado, em nada decepcionam com a caneta. Combinando com o título da faixa, os MCs rimam sobre sonhos (literalmente e metaforicamente) em um beat etéreo, com pequenos efeitos de fundo dando profundidade enquanto o sample de piano se repete erraticamente pela melodia. O refrão é cantando em conjunto pelos rappers e, como se já não fosse o suficiente, a música termina com scratches de clássicos do rap (como ‘NY State of Mind’, de Nas). Destaque para as rimas iniciais de Kamau, que brinca com as sonoridades com maestria.
Algumas outras faixas flertam rapidamente com outros ritmos dentro do guarda-chuva do hip-hop, justamente pela forma como o convidado transforma a música com sua voz. ‘Aurora Boreal’, com participação de Rodrigo Brandão, lembra o trip-hop do grupo americano Lovage ao misturar sua voz extremamente grave com o beat calminho, enquanto outras tracks possuem sonoridades mais clássicas do boombap dos anos 90, como ‘Espelho’ que soa ainda mais divertida com a presença de Laylah Arruda, a artista trabalha com extensivas rimas internas e um flow cantado, lembrando os trabalhos mais clássicos de Lauryn Hill.
Em outros momentos o disco mistura o experimental com o mais clássico. ‘Espiritual’ mostra um produtor capaz de trabalhar padrões diferentes de bateria, com samples que não se encaixam dentro dos 4 toques padrão que os MCs usam pra se guiar na hora de rimar. A participação do clássico grupo Elo da Corrente talvez tenha trazido um flow clássico demais para o instrumental mais ousado, mas também não fazem feio.
‘Bicho Papão’, com a brilhante escolha de sample do desenho infantil Charlie e Lola (“Eu não estou com sono e não vou dormir agora”), fecha o projeto com chave de ouro. Como uma canção de ninar, Nill canta no refrão como se colocasse alguém para dormir. A sua caneta de rimas simples mas significados complexos e profundos (“os monstros não virão / porque o barulho do fogão / atrapalhou o sono do bicho-papão”) brinca com o sample, como se fosse uma conversa.
Em um trabalho que troca a versatilidade sonora pela criatividade musical e o aperfeiçoamento de um estilo, SonoTWS entrega tudo o que era esperado e foi além, com instrumentais incríveis para que MCs já consagrados pudessem mostrar a força da sua escrita. E, para calar qualquer discussão de internet, Otra Fita deixa bem claro: a cultura do boombap, do sample e do grafite não vai morrer e se um dia o fizer, o Hip Hop vai junto.
Melhores faixas: Sem Sono, Irmãos de Tinta Parte 2, Bicho Papão