É normal que, enquanto ouvintes, as músicas de amor sejam capazes de nos transportar para pensamentos e situações de afetos que vivemos ou não. Várias são as reações: choro, roedeira, nostalgia entre outras que podem levar-nos ao extremo: enviar aquela mensagem de madrugada que provavelmente causará arrependimento no dia seguinte. Também é perceptível que os comportamentos humanos reagem a estímulos, numa relação de mão dupla entre impulsos e consequências. Por exemplo, um estímulo sonoro pode ativar uma sensação de desconforto ou relaxamento. Não apenas as letras das músicas resgatam tais situações, as emoções inconscientes comparecem também no que não é dito, ou seja, na forma que soam os instrumentos (sintéticos ou orgânicos) e nos momentos de pausa dos sons. O campo musical é constituído de som, silêncio e escuta. Com essas operações produzidas intencionalmente, o artista e compositor, junto com o produtor, segue necessidades internas de expressão, mas sabe também que compõem para ouvintes, um público alvo, mediador da aceitação ou não da música.
Temos uma frase memorável: “a mente humana se assemelha a um iceberg” (Freud, 1915). A analogia diz que apenas uma pequena parte de nossa mente é perceptível e a maior parte se mantém submersa, e essa parte oculta é o nosso inconsciente. É importante dizer que a experiência é particular a cada ouvinte e pode também mudar a cada escuta de acordo com o nosso emocional. Mas podemos ir em busca de alguns padrões, pois o cérebro mantém atividades pontuais de acordo com cada área, destinadas ao processamento de cada estrutura do som. O que se pode generalizar?
Podemos generalizar que toda pessoa com capacidade de audição é exposta a estímulos musicais (em algum momento da vida todos iremos escutar alguma música, né?) capazes de abrir portas com a vida psíquica, mental. É no lado direito – em particular na frente – do cérebro que, entre outras atividades, acontece a decodificação do timbre, tom e melodia musical; enquanto isso, no lado esquerdo, temos a decodificação da linguagem e raciocínio. Compreender a música é uma habilidade natural que vai se enriquecendo com os valores emocionais e o desenvolvimento biológico, assim como diversos outros processos cognitivos. Uma imagem interessante é o homúnculo de Penfield, uma representação artística de como diferentes pontos da superfície do corpo estão “mapeados” nos dois hemisférios do cérebro.
Então, superando as habilidades biológicas e neurológicas que naturalmente carregamos, partimos para entender as potências das lovesongs. Paralelamente ao que é vivido, há uma vida no nosso pensamento, até a projeção de nós mesmos se diferencia no imaginário. Você já teve a sensação de não saber diferenciar se algo é uma memória ou fruto da imaginação? O que buscamos e pensamos não necessariamente se materializam em nossa realidade física. Sendo assim, vamos falar um pouco como as lovesongs são capazes de induzir movimentos e estimular associações de estados psíquicos com semelhanças de psicanálise e arte! Ambas lidam com as esferas da linguagem, os “estados da alma”, ideias e sentimentos, por exemplo.
As lovesongs contam com significados próprios: construção lírica (letra), assuntos sobre relacionamentos e significados mais amplos no campo do subconsciente – emoções, lembranças e sentimentos. As letras e a melodia alcançam diferentes partes do cérebro (direito e esquerdo), mas fluem em um único efeito: o evento e compulsão que a música de amor causa ao funcionar como um estímulo (ou, se preferir, gatilho). Quando escutamos um R&B em inglês, se não entendemos a letra, a harmonia da música soa como algo romântico e pode acontecer de traduzindo a letra vemos que ali está falando do contrário total, é sobre desapego. A música ‘B.E.D’ de Jacquees é assim.
I know you wanna love
But I just wanna fuck
And girl you know the deal
I gotta keep it real
I know you wanna see
I know you wanna be
In my B.E.D., grinding slowly
O efeito das lovesongs pode ser comparado a um exílio mental, um retorno a um lugar que não é mais o mesmo e até mesmo o retorno a um lugar que nunca foi o ideal. O mesmo sentimento de prazer é evocado criando uma memória que se mistura ao que aconteceu e o que é idealizado. Não é a música diretamente que produz os efeitos, mas o imaginário evocado pelas linguagens musicais ao aparecer na mente diálogos até não admitidos sobre nós mesmos em voz alta, mas que emergem do inconsciente para o consciente. No caso da linguagem verbal, ela funciona como um significante (tem determinado significado e se expressa de certa maneira pelas palavras), acessa sentimentos e emoções, ocupando um espaço vazio através do prazer de lembrar.
Quando uma lovesong é cantada e um refrão, um tom de voz ou até a música toda age sobre o nosso subconsciente e a memórias são resgatadas, esse processo se dá devido a importância do acontecimento antes de virar memória. Essas memórias são lapsos, fragmentos de tempo não cronológico que ultrapassa o que é cantado. Mesmo sendo mais fácil assimilar uma música pelo seu campo instrumental, é no campo verbal geralmente que se encontra o potencial que toca o inconsciente individual de cada um, como se fossem juntos um processo de camadas, a primeira camada, a melodia, inicia a lembrança, mas só com a letra e seus significados a lembrança permanece e floresce junto à imaginação.
A memória preenche um vazio que é suprido momentaneamente pelas palavras, que são ocasionalmente substituídas por outras lembranças, causando sensação de prazer e felicidade que não estão necessariamente pautados no acontecimento mas sim no desejo, no gostar sobre esse desejo. O vazio pode então voltar com o fim da música, e ocasionalmente a felicidade cessa, mas o desejo continua, sendo o prazer uma demanda insaciável.
Dessa forma, o transmissor emite os significantes a partir da associação do caráter discursivo da letra com a melodia, o ouvinte então, cria suas próprias imagens, a partir das demandas pessoais acionadas; assim ambos, ouvinte e transmissor, são excluídos do que estão criando, por não ter o controle sobre as imagens. Quando cantam ‘No seu Radinho’ e ‘Parando as Horas’, Tássia Reis e Flora Matos respectivamente partem de significantes de suas memórias e histórias vividas, mas não há o controle de como a música irá significar para o público e a imagem criada por cada indivíduo. Na lovesong há então a “tirania da palavra” ou seja, criador e ouvinte não estão no controle do que é gerado pela música. Mesmo assim, a música pode ser muito bem aceita pelo público, ao acionar o indizível no ouvinte, tanto para dizer a alguém como se sente pelo que é narrado na música, aproximando pessoas, ou criando ambientações imaginárias para suprir a não aproximação com a pessoa amada, gostada ou desejada.
Digamos que o objetivo do ouvinte é ser amado (se você se sentiu atingido por essa frase, não foi a intenção), o som de amor em questão não só evoca o nome, o cheiro, o rosto de uma pessoa, mas principalmente a condição do sujeito sendo amado numa relação narcisista de se colocar naquele lugar que pode nunca voltar no sentido material. Logo, as lovesongs atingem muitas vezes desconfortos, mas atua em uma área sensível que nunca se esgota, sendo assim, necessária. ‘A Música Mais Triste do Ano’ de Luiz Lins, que alcançou os ouvidos de diversas pessoas em muitos lugares, conta justamente com essa configuração, o alcance dela não se dá apenas por sua letra, como se o locutor estivesse falando de várias memórias, mas o instrumental também se traduz nisso, numa frequência constante que ao fim do canto não cessa.
Postas estas reflexões, é interessante perceber que essas pontes sensíveis são geradas desde os primeiros anos de vida, o amor não apenas se resume no amor romântico, inclusive. É um divisor de águas, na vida humana, quando sensações como ciúmes, afetos e necessidades não envolvem mais o amor parental, num complexo edipiano. Outros amores surgirão ao longo da vida, junto a essas novas necessidades que, no individual, criam o ego. No rap há um o público que consome bastante as lovesongs em oposição à outro que encontra resistência e prefere que os álbuns contenham apenas músicas de ‘bate cabeça’. Talvez seja por receio dessas várias sensações que uma música de amor é capaz de resgatar.
REFERÊNCIAS UTILIZADAS:
MALDONADO, Mauro; DELL’ORCO, Silvia. El cerebro musical: arquitecturas neuronales y partituras musicales. 2010.
VARGAS, Maryléa Elizabeth Ramos. Influências da música no comportamento no comportamento humano: explicações da neurociência e psicologia. In: Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. 2012. p. 944-956.
NASSAR, Pablo Emilio De La Cruz; DE AMAR, Erich Fromm El Arte. Psicoanálisis de la Canción de Amor. Universidad de Concepcion, 2014.
MOREIRA, Márcio Borges; DE MEDEIROS, Carlos Augusto. Princípios básicos de análise do comportamento. Artmed, 2018.