Quando um ouvinte começa a se aprofundar no rap, é muito comum ir atrás dos clássicos. O que define um clássico – e quem além do tempo pode defini-lo como tal – é uma questão muito complexa, cujas respostas se atualizam na mesma medida que o próprio gênero. Mas esse tipo de nuance não brota na cabeça de alguém, do nada. Para quem acabou de chegar, é quase impossível distinguir um trabalho que serviu de referência para toda uma geração de um projeto vindo de um artista influente o bastante para vendê-lo como uma obra-prima. E, há 10 anos atrás, Lil Wayne era esse artista.
Para efeito de comparação, ignore o pouco inspirado Dedication 3. Ignore os fracassos experimentais que foram Rebirth e I Am Not a Human Being. Ignore a saturação cada vez mais nítida que seus inúmeros featurings estavam causando. Ignore tudo isso, pois Tha Carter III tinha sido um clássico. E não um clássico cult, que só é devidamente valorizado pelos entusiastas do rap, mas um clássico cujo número de vendas na primeira semana continua sendo o quinto maior de toda a história do gênero. Mesmo estando em má fase, Wayne ainda tinha muito prestígio. E, sendo C3 uma continuação dos também elogiados C2 e do C1, era natural que houvesse um C4.
Nesse meio tempo, foi lançada a mixtape No Ceilings, trabalho bem quisto pela crítica e que serviu como uma alternativa ao nem um pouco bem recebido Rebirth, lançado poucos meses depois. Mas o povo aguardava por Tha Carter IV. E o tempo foi passando, o prometido foi atrasando, Wayne ficou 8 meses preso, e a relação com o seu mentor e empresário Birdman começou a desmoronar, a ponto de ser lançada uma mixtape repleta de farpas chamada Sorry 4 The Wait, no começo de 2011. O que antes era hype se transformou numa dramática espera, que só foi encerrada no dia 29 de agosto.
E o resultado foi… controverso. Se comercialmente o projeto conseguiu emplacar 964 mil cópias vendidas em sua primeira semana, a crítica e posteriormente o próprio fandom não conseguiram um consenso acerca da qualidade dele. Mas o sentimento que mais prevaleceu após o lançamento de Carter IV, e que talvez o assombra até hoje, é o de decepção. Não apenas por ele não atingir o brilhantismo que, outrora, seu criador atingia com tanta facilidade, mas também por ele ser o grande carimbo de que Dwayne Michael Carter Jr. não iria atingi-lo novamente.
Mas o que deu errado no disco? Ou, para ser mais preciso, o que dava certo antes e, ali, já não funcionava mais?
Antes de responder a pergunta, é importante ter uma noção do que fez o Weezy já ter sido chamado de “melhor rapper vivo” – por alguém além dele mesmo. Convenhamos que, dentre os nomes mais cotados como os melhores da história, ele sempre foi um dos mais limitados tematicamente. Mencione ‘Georgia Bush’ ou ‘I Feel Like Dying’ quantas vezes quiser, mas a crítica e a introspecção ocupam um espaço muito pequeno no catálogo do rapper e, mesmo assim, ele conseguiu entregar alguns dos melhores discos dos anos 2000. Então, o que Wayne tinha de especial?
Lábia. Quando se tratava de convencer o ouvinte sobre ser o melhor, Wayne era o melhor. Ele era produtivo, pois até o lançamento do C3, já havia lançado mais de 20 projetos, entre EPs, mixtapes, álbuns solo e colaborativos. Ele era criativo, pois conseguia encaixar os mais variados flows e as mais grudentas punchlines nos inúmeros remixes que ele gravava. Mas, acima de tudo, Wayne era um rapper extremamente competitivo. E, de 2005 a 2009, ele foi o mais dedicado nessa empreitada. Pode não ter sido o mais inovador ou o mais subversivo de seu tempo, mas sua escalada até o topo permanece como uma das mais impressionantes da história (e uma das poucas quase inteiramente disponíveis na internet).
Assim, chegamos em Tha Carter IV.
O projeto começa bastante promissor em sua ‘Intro’, com uma potente trompa e hi hats acelerados comandando a batida, que novamente dá as caras em ‘Interlude’ e ‘Outro’. Essa estratégia já havia sido usada previamente nos Carters 1 e 2, mas convidar outros nomes de peso para rimar em cima do instrumental acabou sendo uma forma interessante de validar o próprio trabalho, ainda mais considerando o estilo autorreferencial de Wayne. O problema se encontra na sua execução, pois o flow do anfitrião não muda; e não apenas nesse começo, mas em praticamente todas as faixas que o sucedem. Há alguma variação no tom de voz e nas pausas entre as barras, mas até a chegada de ‘6 Foot 7 Foot’, já é sensível a falta de energia do MC na entrega das suas bangers. E, por mais que soe estranho dizer isso de um disco do Lil Wayne, é assim que ele abre.
Partindo para ‘6 Foot 7 Foot’, temos o melhor aproveitamento de linhas de todo o projeto. Mesmo tendo algumas punchlines passáveis, a maioria é tão boa e tão memorável que faz qualquer um ignorar a semelhança de seu sample e sua bateria com a da igualmente icônica ‘A Milli’, também produzida por Bangladesh. Há também um ótimo uso de aliterações na participação de Cory Gunz, que aliás teria um verso no hit anterior, mas acabou sendo cortado para, aqui, ter sua chance de brilhar. Pode não ser nem de longe a faixa mais ambiciosa do rapper – ou talvez seja exatamente por não ser-, mas é uma das que melhor comprova como o seu carisma e raciocínio rápido o faziam se destacar dos demais “liricistas”.
“Paper chasing, tell that paper, “Look, I’m right behind ya”
Bitch, real G’s move in silence like lasagna
People say I’m borderline crazy, sorta kinda
Woman of my dreams, I don’t sleep so I can’t find her
You niggas are gelatin, peanuts to an elephant
I got through that sentence like a subject and a predicate”
O porém é que, a partir daí, alguns vícios na sua lírica já começam a ser notados. Apesar de ser argumentável que certas linhas suporte sempre fizeram parte de seus trabalhos, e que algumas até sejam bem aproveitadas, aqui elas vão se repetindo tanto que se tornam distrativas, para não dizer formulaicas e a baixa quantidade de faixas com uma temática mais específica não ameniza a questão. De todos os suportes usados no C4, os que mais se fazem presentes são: punchlines referenciando a famosa ‘Life’s a Bitch’ (if life is a bitch, then mine a gold digger); definições para o “F” de seu antigo vulgo (Weezy F baby and the F ain’t for “Flaw”); e acima de tudo, trocadilhos com os dois sentidos de fuck (You’re fucking with a nigga who don’t give a fuck). Esse último, inclusive, continua sendo massivamente usado até hoje.
A produção, no entanto, é competente. Nos momentos em que ela quer retomar o clima de grandiosidade que inicia o projeto, faz um bom uso de pianos, violinos e outros instrumentos orquestrais. Quando ela quer transpor algum tipo de introspecção, o protagonismo é dado a algum loop mais suave ou a sintetizadores mais soturnos. E se o mote da faixa for apenas um braggadocio livre, as apostas são feitas no mesmo minimalismo encontrado nas melhores tapes de Wayne. Dizer que os beats são dignos de um clássico seria exagero, porém é inegável a coesão instrumental do projeto, fruto do trabalho de inúmeros beatmakers – incluindo alguns colaboradores de longa data do rapper, como Cool N Dre, Streetrunner, Detail e Infamous.
Infelizmente os elogios diminuem conforme o anfitrião vai desperdiçando os beats, seja pela falta de temáticas interessantes ou métricas e esquemas de rima mais inventivos. Faixas como ‘Nightmares of the Bottom’, ‘How to Love’ ou ‘President Carter’ não só mereciam como também precisavam de uma construção mais atenciosa em seus versos, para que o intimismo delas pudesse dar a devida substância ao épico do restante do álbum. Sem isso, a segunda metade vai se tornando menos convincente e mais cansativa, mesmo ela tendo bons momentos aqui e ali. A única faixa que consegue fazer jus a toda a pompa do disco é a ‘Interlude’, não por acaso rimada apenas por Tech N9ne e Andre 3000.
‘John’ ainda é um dos pontos altos do projeto, apresentando ao lado de Rick Ross um ótimo back-and-forth, mas o fato de seu refrão e seu beat serem idênticos aos de ‘I’m Not a Star’ tira um pouco de seu brilho. O mesmo poderia ser dito sobre o excelente verso de Nas vir logo antes da tediosa entrega de Shyne em ‘Outro’, no que seria a última chance do disco se encerrar luxuosamente.
Chega a ser engraçado ouvir Busta Rhymes afirmar que ‘Tha Carter IV’ era um clássico, enquanto o que mais o define são melhores momentos que ora provém de terceiros ora são reciclagens do que já havia dado certo no passado; e que frequentemente são sucedidos por um acúmulo de braggadocios e trocadilhos de qualidade duvidosa. Ou, para simplificar: um disco que acreditava ser um clássico, mesmo não se dedicando para chegar lá.
Hoje em dia ele é lembrado com mais carinho por conta de seu sucesso comercial – e também pela baixíssima qualidade que alguns dos discos posteriores apresentaram -, mas o amargo na boca sempre virá quando for posto ao lado de seu antecessor. Tha Carter V pode ter conseguido elevar novamente a moral de Wayne, mas sua hiper produtividade e sua falta de senso crítico (dentro e fora do estúdio) continuam se mostrando grandes adversárias na hora de entregar algo sólido. Mais cedo ou mais tarde, ‘Tha Carter VI’ será lançado, e o risco desses excessos tomarem o disco não poderiam ser mais reais.