Tudo que envolve Kanye West, de uma forma ou de outra, é sempre intenso. Diversas datas de lançamento, três festas de audição lotadas, uma hospedagem dentro de um estádio, uma estética lançada e algumas polêmicas cercaram o lançamento de Donda, álbum que leva em seu título o nome da falecida mãe do artista. Em 2007 Donda nos deixou por conta de complicações em decorrência de uma cirurgia plástica, e Kanye tem sofrido essa perda publicamente desde então. 14 anos se passaram e, centrado na figura dela, o mundo recebe o 10º álbum solo do artista, seu mais longo na carreira e o mais interessante em tempos.
Vindo do pior álbum de sua carreira, o segundo trabalho de ye pós-conversão poderia marcar um ponto final da confiança do público em sua capacidade criar grandes obras. E, por sinal, esta obra é GRANDE: 27 faixas e 1h48min marcam o mais longo projeto de sua carreira, contrariando seus últimos lançamentos, que em 4 dos últimos 5 a duração teve no máximo 40 minutos. Como era de se esperar de um álbum longo, há muito a ser descartado. Mas, como era de se esperar de um álbum de Kanye West, temos material do mais alto nível sendo entregue.
Começando pelo mais simples: não há justificativa alguma para a inclusão das 4 últimas tracks, sendo estas apenas novas versões de faixas já incluídas no álbum. ‘Jail Pt. 2’, para piorar, tem a terrível inclusão de DaBaby e Marilyn Manson, mostrando mais uma vez a frequente relação no mínimo estranha de Kanye com homens publicamente acusados de graves ações ou falas. A situação piora quando os dois são relegados a participações irrelevantes em uma faixa bônus, que em nada supera a versão original. ‘Junya’ é a pior canção de todo o disco e não deveria estar uma vez no álbum, muito menos duas. Além disso, as bônus prejudicam a experiência do disco como um todo, que teria um digno encerramento com ‘No Child Left Behind’.
Para além destas faixas, Donda poderia contar com uma nova salvação de Rick Rubin. Ao longo das 24 tracks que compõe o álbum “de fato”, há um excesso de espaço morto, prolongamentos desnecessários e faixas descartáveis. ‘Tell The Vision’ é um óbvio corte, não servindo bem nem como homenagem a Pop Smoke, além dela, ‘Remote Control’ também não está à altura das demais tracks do álbum, com um refrão de escrita e melodia pobres, um beat no qual só se destaca o assobio de fundo e um bom verso de Young Thug que não é o suficiente para salvar o resto. Outros de faixas como ‘God Breathed’ ou ‘Heaven & Hell’ poderiam economizar alguns segundos, assim como o verso de Baby Keem, que tem um ótimo miolo, mas demora em demasia para entrar no flow e perde (por muito) a hora de parar.
Apesar disso tudo, falando em feats, eles são frequentemente incríveis. Jay-Z abre o disco com uma excelente participação em Jail, um rock de arena onde as baterias nem são necessárias, usando ótimos wordplays e até botando o dedo na ferida do anfitrião (Donda, I’m with your baby when I touch back road/ Told him, “Stop all of that red cap, we goin’ home”). ‘Jesus Lord’, a peça central do disco, tem, além da melhor performance de Kanye, o melhor verso de todo o disco, com Jay Electronica mostrando porque ele é uma figura mística dentro do rap, chegando a seu ápice técnico enquanto não deixa a sua mensagem de lado. ‘Off The Grid’ tem Playboi Carti em casa, domando o beat enquanto mistura uma alta energia com sua baby voice icônica, depois dá espaço para Fivio Foreign destruir a track, segurando-se por quase 3 minutos em um verso energético que dropa barras atrás de barras sem deixar o nível cair. ‘Jonah’ também tem um refrão cativante e singelo de Vory, que também entrega um bom verso antes de Lil Durk falar sobre a morte de seu irmão e a influência de Kanye com escrita e performance emocionais.
Desde College Dropout, vemos os álbuns de Ye darem espaço para que convidados brilhem, elevando o nível da música. A diferença fundamental é que Kanye nunca se permitiu ser tão apagado quanto ocorre em Donda. ‘Keep My Spirit Alive’ tem um refrão que se apoia na bela voz de KayCyy e bons versos de Westside Gunn e Conway The Machine, que falam sobre suas tribulações e como mantém a fé em Deus ao chegarem onde chegaram, enquanto Kanye vem ao fim com um verso pouco impactante. ‘Hurricane’ é outro exemplo, tendo os vocais angelicais de The Weeknd carregando a maior parte da bela canção e o belo verso de Lil Baby mantendo a alta barra que ele setou para si mesmo no último ano, Kanye chega apenas no fim para um verso com boas falas, mas nada ao nível dos convidados. ‘Pure Souls’ é outra faixa onde o verso do anfitrião é descartável, seu pior no disco, ficando no meio do caminho entre a carismática participação de Roddy Rich e a explosiva chegada de Shenseea, que abusa de sua potente voz para roubar metade da canção para si.
Por outro lado, há momentos em que Kanye mostra performances acima da sua média recente, mantendo o nível enérgico de convidados de 20-e-poucos anos e mostrando falas e barras que já não parecia que veríamos a essa altura, mesmo com alguns escorregões técnicos. Em ‘Off The Grid’, banger que parte do trap no primeiro refrão de Ye para acomodar Carti e vai a uma bela transição ao drill para acomodar Fivio, Kanye se coloca no posto mais incomum e se sai bem, pulando pela primeira vez num drill e dando um ótimo verso, à altura dos outros dois (apesar da terrível “I talk to God every day, that’s my bestie/They playin’ soccer in my backyard, I think I see Messi“). ‘Heaven & Hell’ tem uma energia incrível de Kanye que vende a track por si só, principalmente pela forma com que se relaciona com um beat, que segue numa progressão perfeita até culminar no ápice perfeito com seus sintetizadores distorcidos. ‘God Breathed’, lembrando a produção de Yeezus, destaca-se pela ascensão do coral, que começa no fundo e cresce até aparecer no fim, e também pela boa performance de Kanye no 2º verso, que usa uma boa técnica com rimas de transição entre esquemas diferentes; por outro lado, mostra o típico vício do MC em seus versos menos polidos, que é a frequente repetição de palavras. Essa falha aparece com certa frequência no álbum.
O disco, conceitualmente, segue uma progressão semelhante ao que Kanye fez em The Life Of Pablo, mas com muito menos desvios, partindo de um homem problemático e vulnerável, lidando com abandono, luto e questões adjacentes à fama e riqueza, progredindo para uma aceitação de Deus e uma busca por uma vida cristã e com sua família, tendo em seu ponto final declarações de amor a Kim Kardashian. Essa progressão é também percebida muito bem na sonoridade mais crua, épica e enérgica na primeira metade, avançando para algo mais sereno, com mais influências de gospel e com muito mais performance cantada que rimada. Esse álbum só prova que Jesus Is King nunca deveria ter existido, pois aqui suas convicções soam mais maduras e a musicalidade cristã foi assumida com maior coesão, por exemplo com apoio do Sunday Service Choir aparecendo de forma robusta ao longo do disco, com destaque para ’24’, faixa que é uma ode a Kobe e tem West finalmente abraçando o luto pela perda do ex-atleta e, mais profundamente, de sua mãe. Apesar da bela produção, muito baseada no órgão, o único porém vem a ser o apoio excessivo dos beats no instrumento, que passa de uma ”bela adição” para algo cansativo.
Para isso, Kanye mostra inclusive uma grande evolução em sua técnica de canto, que aparece aqui em um nível mais alto do que nunca. Em ‘Jail’ ele já aparece com vocais que se assemelham a um vocalista de rock, mas, na porção final, performa de forma mais singela, emocional e potente, atingindo quase sempre as notas que o instrumental propõe. ‘Come To Life’ é um excelente exemplo disso, onde Kanye põe a emoção em sua voz para cantar sobre sua família, em uma track que ganha brilho extra pela linda entrada do piano e o apoio da guitarra na segunda porção; ‘Lord I Need You’ talvez tenha sua melhor performance cantada em tempos, onde o beat contido e os vocais do coro dão o piso para Kanye falar de forma nostálgica e vulnerável sobre sua relação com sua ex-esposa. O álbum encontra seu fim em ‘No Child Left Behind’, encerramento em que Kanye, de forma simples e em um tom mais contido, repete a frase “he’s done miracles on me“.
Geralmente é fácil analisar um trabalho nota 7, principalmente quando feito por um artista nota 7. Você vê mérito, vê um limite ser atingido, limitações claras e segue a vida. Aqui a coisa é mais complexa, pois o artista, os convidados e o material do álbum em si tinha potencial para ser muito melhor. Embora tenha sido tantas vezes adiado, Donda peca por falta de polidez, principalmente ao não cortar as arestas que puxam o todo da obra para baixo. Por outro lado, ainda é um bom trabalho, com muito material de qualidade e que dá uma sobrevida à carreira de Kanye West, que tenta se livrar de seu purgatório pessoal e artístico. Se tem uma coisa que aprendemos com Ye, é não duvidar de sua volta por cima.
Melhores faixas: Off The Grid, Hurricane, Jesus Is Lord, Moon, Come To Life.