Review: Sant e LP Beatzz – Rap dos Novos Bandidos

Sua lírica ainda contrasta com o que ainda impera na cena

Poucos MCs são tão exaltados pela cena atual quanto Sant. Sendo, ele, um dos principais alunos do MC Marechal, seu EP de estreia, O Que Separa Os Homens Dos Meninos, já alcançou uma considerável visibilidade assim que saiu. No entanto, não foi apenas o nome de seu mentor que o fez conquistar o respeito de tantas pessoas ao redor do país, mas sim a mescla de uma entrega extremamente pulsante com uma escrita poética e sóbria, a qual ninguém esperaria de nenhum novato, ainda mais tratando-se de 2015, quando o embranquecimento do rap começava a se tornar cada vez mais evidente. Desse modo, Sant foi o rapper que mais encarnou a máxima até hoje levantada por Marechal – a icônica “Vamos Voltar A Realidade”.

Com o passar dos anos, Sant foi trilhando seu próprio caminho, entregando versos memoráveis nas inúmeras cyphers e discos que participou e angariando milhares de fãs no processo. Não foi por acaso o anúncio de sua aposentadoria (em 2019) e seu posterior retorno (meses depois) terem sido tão comentados pelas pessoas, pois sua lírica ainda contrasta com o que ainda impera na cena. Agora, em 2021, ele retorna com seu primeiro álbum de estúdio, livre das amarras mentais que o fizeram hesitar e carregado de liricismo.

Antes de tudo, é importante ressaltar que Rap dos Novos Bandidos é um trabalho colaborativo; e a presença LP Beatzz é percebida em toda construção do projeto. Seguindo o que já havia sido mostrado em ‘Fazendo Arte’, a maioria dos instrumentais são breves e contemplativos, compostos por loops com elementos de trap e funk, sintetizadores soturnos, instrumentos de sopro e colagens com ruídos urbanos. É com certeza um bom terreno para a lírica de Sant, já que ela também transmite uma certa urgência reflexiva sempre que se sobrepõe ao beat – e as primeiras três faixas já evidenciam isso -, mas a falta de variação no andamento dos instrumentais acaba fazendo o disco parecer tão coeso quanto monótono. 

‘Íris’, por exemplo, conta com um belo dueto entre Sant e o reverenciado MC Cidinho, com ambos os MCs esticando e intercalando os próprios versos antes do final da barra para que as transições sejam orgânicas e a linha de raciocínio se mantenha. No geral uma faixa divertida, por mostrar um Sant bem mais leve, em oposição ao clima soturno do disco. O problema é que a batida começa e termina sendo apenas uma base de funk, sem nenhum outro elemento para preenchê-la e acompanhar o desenvolvimento dos versos. Não é como se a faixa precisasse ter grandes pretensões pelos nomes que a encabeçam, mas ela estar em meio às duas skits faz ela também soar como uma skit.

Partindo para as letras em si, a maioria delas funciona como um panorama das ruas do RJ, cobrindo assuntos hoje recorrentes no rap carioca, mas sempre adicionando mais nuances aos cenários e personagens narrados. Isso é perceptível das punchlines às metáforas rimadas (Tranquilidade é sentir-se em Paris nos becos da Síria), mas vai se sobressaindo conforme as tracks avançam. O melhor exemplo disso é ‘Desconstrução’, que em pouco mais de 1 minuto já consegue oferecer o mesmo caráter observacional do clássico de Chico Buarque e ainda manter o mesmo esquema de rimas com proparoxítonas que o tornou tão referenciado pelos MCs. Mesmo não sendo a primeira vez que um rapper faz essa releitura, ela continua sendo um impressionante exercício de síntese.

Queimou busão no centro e engarrafou o tráfego

Queimaram o vacilão que x9ou o tráfico

E o homem amarelo que samba no sábado

Passou seu feriado, sentindo ser último

 

E mais do que sua mágoa, engoliu morte súbita

Deixou mulher, 3 filhos e um mês pro próximo

Esperança que o mundo não fosse tão cínico

Apagou suas memórias num sorriso cético

Entretanto, a relação (e por vezes a proporção) entre os versos e o refrão faz com que faixas como ‘Do Falcão’ ou ‘Pertence ao Crime’ soem diluídas, quando postas ao lado das que acertam em cheio. Nenhuma delas é mal escrita, mas são as que mais se beneficiariam de uma entrega vocal que encorpasse os instrumentais de outras formas além da ternura e da rispidez. ‘Gestão’ faz isso bem, ao discorrer sobre as inúmeras tribulações do passado num melancólico loop de flauta, mesclando barras curtas e longas para também variar na acentuação de cada uma e usando da repetição para homenagear os companheiros da sua região. Até as colagens com Eduardo Marinho soam acertadas, pelo paralelo que elas fazem com a própria carreira do rapper.

De toda forma, essas ressalvas são razoavelmente passáveis, como questionar o porquê das skits estarem tão próximas entre si. Mas o mesmo não pode ser dito sobre ‘5AM’, ou mais especificamente sobre a participação do Costa Gold na track. Dando sequência aos excelentes versos do anfitrião, e ao melhor refrão do projeto, Nog pula no beat com mais um speedflow maçante, abordando a criminalidade com uma superficialidade que só poderia ser superada por Predella logo em seguida. Não é de hoje que a dupla é criticada pela sua estagnação criativa, mas a faceta ‘consciente’ que os dois têm mostrado é tão rasa que faz a zona de conforto parecer um oásis.

E a única coisa que pode salvar esse mundo é a educação

O salário de um professor, pode pá, tinha que ser bem mais de um milhão

O amor e a música são os elementos mais importante’ dessa Terra

O amor e a música é a única coisa que pode parar uma guerra 

(Paz)

Felizmente o collab em ‘AQL SLV’ rende uma ótima música, com direito a referências cinematográficas conectadas entre os versos de SD9 e VND e outro refrão marcante por parte de Thiago Mac. Ao contrário do que acontece em ‘5AM’, Sant é o último a rimar aqui, e também o faz pelo dobro do tempo, mas em ambos os versos ele empilha uma sequência de punchlines dignas de encerrarem qualquer disco. Chega a ser uma pena ela não ser, de fato, a última faixa, pois o nível da performance e da lírica de ‘Bônus’ é bem abaixo, e o instrumental de ‘Outro’ em nada se destaca do que havia sido mostrado, mas versos assim tornam esse incômodo numa simples nota de rodapé.

Mas o protagonista agora é um anti-heróI

Anti-x9 e anti-playboy

Se não troca a fita, aplica e destróI

Lágrima e sangue nos olhos

Aposto qual deles primeiro cai

Na parede do beco

Essas marcas de furo de bico

Separam quem foi de quem vai

Chegando ao fim, temos a certeza de que o disco é muito bem escrito, mas a sensação de que algo ficou no caminho também persiste. É sabido por todos que Sant não tem mais as ambições que geralmente se espera de um rapper do seu calibre e, considerando todo o seu histórico, já é uma vitória esse trabalho ser lançado. E nem é como se os acertos não fossem a maioria; eles são, e há vários momentos de brilhantismo aqui e ali. É só que a despretensão do projeto acaba deixando essa luz opaca.

Melhores Músicas: Desconstrução, Gestão e AQL SLV

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