Nota do Editor: Esta não é uma segunda review de Donda, a imagem preta no lugar da capa original do álbum justifica-se em sua própria autoria. A ilustração feita pelo artista visual Raideno não será exibida no portal Inverso devido ao fato de não compactuarmos com as ações passadas e atuais do ilustrador, que, no passado, foi expulso da extinta DV Tribo por acusações de violência doméstica e, quando cobrado dias antes do lançamento deste álbum, em sua primeira reação, demonstrou-se leviano com um tom de deboche e taxando seus questionadores de “haters”.
Entregar a produção de um álbum nas mãos de um único produtor é sempre uma aposta arriscada. Mais do que acreditar na competência individual do mesmo, essa decisão sugere acreditar que a dinâmica entre o MC e o produtor consegue se reinventar o bastante para apresentar um trabalho que seja tão coeso quanto rico sonoramente. No caso de FBC, essa crença já apresentava algum fundamento, pois um dos maiores méritos de Outro Rolê foi a ótima mistura de tambores e sintetizadores do funk mineiro com as baterias do drill atual, apresentada por VHOOR. Mas é agora, em Baile, onde os 2 alcançam o potencial que o EP anterior havia mostrado. Unindo sua caneta ainda observacional com os melhores frutos de suas tentativas comerciais, o MC entrega o disco mais sólido desde sua estreia.
O primeiro acerto se encontra na decisão de usar o miami bass como a principal influência do disco. Por ela apresentar um caráter majoritariamente festivo, não há expectativas para uma grande conceitualização no projeto, além da já mencionada coesão nos instrumentais. E é justamente aí onde FBC consegue surpreender o ouvinte, ao descrever com precisão todos os personagens e conflitos encontrados nos bailes funk dos anos 90 e 2000, indo desde os romances que ali floresciam e murchavam ao constante risco da repressão policial. Há problemas na posição de algumas faixas na tracklist, como será abordado depois, mas é surpreendente como ele e VHOOR, com suas inúmeras vinhetas e sirenes, conseguem fazer esse cenário se tornar tão vívido novamente.
Nesse sentido, ‘Vem Pro Baile’ e ‘Quando o DJ Toca’ funcionam muito bem como um convite à descontração do projeto. Tanto as baterias frenéticas como os fortes sintetizadores impulsionam a entrega já acentuada do rapper, que, dessa vez, oscila entre o estilo cantado do funk proibidão e o do funk melody. Os “salves” a outros moradores e bairros são outra constante no disco e, nesse primeiro momento, servem para apresentar como funcionavam os bailes, além de já deixar bem claro quem os frequentava e quem os ameaçava. O lazer ainda se encontra lá – pois o conceito raramente se sobrepõe ao espaço do passinho -, mas os pontos de tensão da história estão por toda a parte.
Nova Sintra, Gameleira, Patrocínio, Sideral
Lá embaixo é a Cabana, que saudade do Librau
E olha a sopa
Dona Maria, olha a sopa
Ensina suas cria que a polícia tá na rua pra matar ou pra prender
Ontem foi o nosso mano, amanhã pode ser você
Em relação à caneta, é perceptível que FBC deu preferência a dinâmica dela com o andamento do beat, e isso naturalmente se reflete na quantidade de linhas direto ao ponto e pontes e refrãos compostos por repetições de 1 ou 2 barras. Mas diferente do ocorrido em Best Duo e Outro Rolê, nenhuma dessas escolhas soa caricata ou fora da proposta do disco. Pelo contrário, a maioria desses recursos consegue potencializar a ideia dos sons dos quais fazem parte, como nos versos de ‘Melô do Vacilão’ ou ‘Polícia Covarde’, que entregam uma sequência de linhas tão diretas quanto seus títulos sugerem; ou na mescla de sussurros, tiros, gritos e sirenes na saída de ‘Eu Sou O Crime’ (Click-cléu, click-cléu, o comédia foi pro Céu). E se até as faixas mais contundentes tiram proveito das linhas chicletes, as dançantes ganham ainda mais vida, a exemplo de ‘Se Tá Solteira’ e ‘De Kenner’, cujo refrão continua sendo viciante mesmo quase 1 ano depois de seu lançamento.
De Kenner
Os cria da VIP vai de Kenner
Nove em dez no baile ‘tão de camisa do Messi
Cyclone, bigodin’ finin’, corrente e Juliet
Da mesma cor pra combinar com o Kenner
‘Rap do UFFÉ’ também se enquadra nesse caso, ainda mais por usar as repetições do refrão como uma camada a mais para os sintetizadores retrô do instrumental, mas é uma pena que a faixa não dê mais nenhum desenvolvimento ou conclusão para o conceito inserido no EP anterior. Até funciona pela referência que ela faz aos funks oitentistas e noventistas que recebiam nomes de ‘Rap da …’ , mas ainda fica uma certa lacuna durante a saída.
Por outro lado, há uma subtrama de romance não correspondido que permeia boa parte do álbum. Ela começa de forma sutil, em ‘Quando o DJ Toca’; se intensifica com a sensualidade de ‘Se Tá Solteira’; e chega ao clímax nas faixas ‘Delírios’ e ‘Não Dá Pra Explicar’. Seu desenvolvimento é bem natural, em especial nas duas últimas, que abusam de uma entrega ainda mais melódica para transmitir o sentimento de reciprocidade sendo construído pelo eu lírico, e desconstruído pelo interesse amoroso logo em seguida (Não, não era amor, era as suas projeções em mim). ‘Eu Sou O Crime’ estar em meio a essa trinca, no entanto, acaba sendo um grande desvio para o que estava sendo contado ali. É até compreensível ela não ter sido posicionada logo depois de ‘Melô do Vacilão’, considerando o quão próximas são as suas atmosferas e suas abordagens na questão da criminalidade, mas ver dois segmentos tão diferentes sendo “entrelaçados” dessa forma dá a impressão de que tentaram jogar a visceralidade de S.C.A. e o apelo de Padrim sem muita noção da distância deles.
O mesmo se dá na reta final do disco, onde temos um som abordando uma decepção amorosa, um abordando uma violenta operação policial e mais um retomando o clima de festa que o inicia. Individualmente, eles são ótimos no que se propõem, e querendo ou não, são registros de histórias factíveis, mas nenhum deles caminha para uma mesma direção. Se não fosse por essas más escolhas no posicionamento das tracks, o trabalho seria redondo do início ao fim.
De toda forma, o resultado de Baile continua surpreendente. Se a maior qualidade do primeiro disco solo de MC era retratar o que era BH em 2018, esse trabalho agora consegue capturar o que ela foi há mais de 20 anos. Longe dos malabarismos de alguém que precisaria provar; dos maneirismos de alguém sem ideia de como se atualizar; e das tendências de sonoridade que a maioria dos MCs passou a seguir em 2021, FBC e VHOOR demonstram uma maturidade musical que com toda certeza enriquece a cena.
Melhores Músicas: Eu Sou O Crime, Não Dá Pra Explicar, Polícia Covarde