Na primeira metade do século XX, mais precisamente na semana de 22, o modernismo chega ao Brasil com um propósito mais particular. As vanguardas europeias borbulhavam mudanças à época, a alta cultura do velho continente, impulsionada por movimentos como o futurismo, rompia com antigos moldes artísticos buscando transgredir velhas concepções técnicas, com a ideia de acompanhar e impulsionar as mudanças sociais do novo século. Oswald de Andrade, marido de Tarsila, percebeu que essa ideia podia até fazer algum sentido lá dentro dos salões de arte europeia, mas era aqui, no dia a dia da realidade brasileira, que a proposta cairia com uma luva.
São Paulo representava um Brasil emergente, industrializando-se a todo vapor, unia migrantes dos quatro cantos do país e do mundo, era uma metrópole que respirava a mudança e a mistura, apontando para um futuro que muitas pessoas acreditavam ser glorioso. Por isso, surge o movimento antropofágico buscando deglutir as novas influências e técnicas europeias para que fosse criada uma arte verdadeira brasileira. Brasil Futurista, o mais novo álbum de Coruja BC1, entra nessa história toda como uma carta aberta vinda do futuro, para escancarar, de forma muito sábia, que o progressismo e o vanguardismo definharam, e que nunca fomos um espelho tão nítido das obscuridades do nosso passado.
A antropofagia do álbum está presente, principalmente, no trabalho de Theo Zagrae, nome principal da musicalidade do disco. O produtor consegue encontrar uma estrutura extremamente bem feita a qual, (quase) sempre que uma nova transição sonora buscando a brasilidade do disco surge, a seguinte coesão se estabelecerá: primeiro acontece a premissa musical, ainda um pouco tímida como pequenos elementos, para, logo na próxima faixa, expandir e mostrar a que veio, ou seja, primeiro mastiga-se a referência para, depois, pôr afora o seu potencial completo. Por exemplo, em ‘Brasil Futurista’, o samba está ali, diluído no samba-rock por instrumentos que compõe o cerne musical do trabalho, mas é só em ‘Aconteceu’, track seguinte, que o gênero musical brasileiro ganhará mais força conduzindo a música com novos instrumentos como o pandeiro, além de uma cuíca bem colocada. O mesmo vale quando surge o soul, o trap, o maracatu, todas essas sonoridades progridem de forma gradativa e coerente, sempre com o tempero brasileiro proposto pelos artistas.
Os bons instrumentais, na maior parte do tempo, tiram Coruja completamente de sua zona de conforto, fazendo com que o MC, tal qual os modernistas, ultrapasse moldes de composição antigos. O ouvinte terá poucos vislumbres daquele BC1 que empilha suas “linhas de murro” em um boombap linear. Neste novo trabalho, Zagrae exige mais do rapper de Bauru e todos os seus certos, e poucos erros, surgem dessa nova proposta. ‘O piano’ é um belíssimo começo, com o instrumento em questão sendo mote não só musical, brilhantemente vivido por Jonathan Ferr, mas também temático, como o objeto de desejo que simboliza a libertação do personagem do storytelling de Coruja, que se vale do passado escravocrata para relacionar, com extrema sensibilidade, arte e liberdade.
Não raro novas interpretações vocais também surgirão, ao tratar das ‘Bolhas’ sociais e de relações em ‘Alusão’, o artista traz texturas e performances interessantes à sua voz. Na primeira, Gustavo coloca firulas vocais típicas do soul para acompanhar a progressão de palmas enquanto vem com um bom swing em uma voz mais amena para sustentar o verso e o bom refrão; na segunda, uma entrega rouca cheia de carga e acento aparece para engrandecer sua performance. A bem da verdade, os feats também são utilizados de forma muito sábia. O sambista Salgadinho, em uma, e principalmente Lino Krizz e Anchietx, na outra, são peças fundamentais que criam pontes entre o dono da track e a musicalidade das faixas, além de imprimirem suas próprias marcas, claro.
Em oposição, também existem oportunidades para que o fã dos recursos mais conhecidos de Coruja se encontre no projeto. ‘Aconteceu’ e ‘Ao desamor’ (um dos melhores pontos altos do disco) são bons exemplos disso, ambas são passagens importantes da leitura social que o MC faz da atualidade, imersas em sua estética de entregas fortes e demarcadas com boas pausas e punchlines. O destaque maior vai para ‘Ao desamor’ e seu maracatu com violão enérgico, sopros e triângulo sempre acompanhados dos ótimos metais de Zagrae.
A caneta já bem conhecida de BC1, quando surge com mais proeminência, demonstra-se mais afiada e madura, apesar de ainda deslizar um pouco. ‘Arrongangsta’ talvez seja o seu palco principal, com mais bons acertos como “No seu álbum ou nariz cê quer platina?/Pois diz que deixa olho roxo, hoje cês chora codeína”, do que erros do tipo “Querido, cê não é o T’Challa, tá mais pra T’Charlatão”.
Já em exemplos como ‘Tarot’ e ‘Lobo Guará’ vê-se o amadurecimento. Em ambas Coruja capta muito bem a metáfora capitalista para falar de amor e sociedade, além de mobilizar diversos recursos técnicos como variações métricas entre linhas longas e curtas, repetições para criar um cenário maior, prolongamentos de sílabas finais, alternância de acentos e variações entregas, ora mais pontiagudas ora com mais contornos.
Apesar de tudo, existem excessos e o primeiro deles é ‘Hardcore Tupiniquim’, onde, pela primeira vez no trabalho, instrumentos e MC parecem não dialogar com a mesma facilidade. A guitarra de Lúcio Maia parece solta enquanto, do outro lado, Coruja beira a caricatura em uma performance confusa de quatro curtos versos, que ganham uma abordagem um pouco forçada ao relacionar a estética do punk rock com a cultura Tupi e, nisso tudo, pouco contribui o refrão repetitivo de voz robótica.
Outro problema, esse que deixa de ser pontual para imprimir marca no trabalho como um todo, é a reutilização de versos. Na maior parte das músicas, BC1 abre mão de desenvolver tematicamente sua proposta para voltar de um refrão com um segundo verso idêntico ao primeiro, nisso, é constante a sensação de que as tracks possuíam uma ambição maior do que sua execução, e isso se agrava em exemplos como ‘Nibiru’, com uma excelente proposta musical e uma interessante abordagem esotérica, mas que mina tudo isso quando até mesmo o convidado, o talentoso Jair Oliveira, entra para repetir o mesmo verso de Gustavo.
Por fim, o terço final da tracklist poderia ter encerrado melhor o disco a começar pela única mudança abrupta de sonoridade com ‘Dendê’, um ótimo pagodão baiano de RDD que em muito combinou com a entrega forte de Coruja (apesar de mais um verso reciclado) e participação de Ed City destruindo tudo. O problema é o que gênero musical de Salvador, apesar de estar dentro da proposta do trabalho ao usar sonoridades nacionais características, quebra uma longa sequência já desenvolvida de boas transições e aparece isolado, pouco dialogando com o ‘Nibiru’, que o precede, e com ‘Oh Mary’, que o sucede encerrando o álbum. Essa que, por sinal, apesar de ser uma boa lovesong, digna de almejar a mesma prateleira de ‘Éramos tipo Funk’ caso fosse usada como single, não serve propriamente para encerrar um trabalho tão conceitual. Brasil Futurista tem seu encerramento mesmo em ‘Nibiru’, de forma que as duas tracks restantes, seja por sonoridade, seja por tema, mais tendem a faixas bônus que não foram classificadas como tal.
No arremate final, o disco cumpre muito bem o seu propósito trazendo referências musicais externas e unindo-as com a brasilidade por meio da ancestralidade da cultura preta, como deve ser. E isso em muito se distancia e, na realidade, aprimora as intenções do modernismo brasileiro mencionadas no início. O Brasil e a sociedade que Coruja BC1 vê de forma tão lúcida e sensível é retratado com primazia em suas linhas, resta esperar que todo o efeito negativo desses vícios apontados pelo MC sejam menores que o seu próprio trabalho, dito de outra forma, o rap nacional precisa que Brasil Futurista faça mais barulho e viralize mais que um corte de podcast com um freestyle, mesmo que este também tenha sido impactante, só assim poderemos refletir verdadeiramente o peso desse álbum.
Melhores Músicas: O Piano, Aconteceu, Alusão e Ao Desamor