Toda obra é inevitavelmente fruto de seu próprio tempo. E isso quer dizer que, mesmo quando não pretende, ainda assim fala sobre seu próprio contexto. Todavia, conforme se busca a excelência, às vezes surgem tropeços em problemas com as pretensões de ser universal e atemporal. A isso soma-se a condição de envelhecimento de uma obra, ou seja, o potencial dela de repercutir e permanecer relevante ainda que o tempo passe.
Don L, com seu recém lançado Roteiro pra Aïnouz (vol. 2), exprime muito dessa discussão, já que seu próprio conceito e forma abraçam a temporalidade e a história com uma exímia e inegável maestria. Em 2017, quando lançava o predecessor Volume 3, de sua obra musical com título vendendo um roteiro para um filme do diretor cearense Karim Aïnouz, com certeza houve fulgor. Poderia consistentemente ser, naquela época, o melhor álbum do ano. Agora, pouco mais de 4 anos depois, vemos a continuação desta trilogia reversa dando um passo para trás na história.
Conceitualmente, o disco abraça sua volta ao passado tanto em seu conteúdo quanto em sua forma, indo além de um paralelo temporal entre tempos mais remotos e os períodos mais recentes, mais que isso, quase criando um cenário fantástico de um pretérito atemporal. E isso faz sentido principalmente pelo autor buscar produzir uma nova leitura do passado, ou então, disputar as narrativas das histórias brasileiras de revoltas. No fim, é um álbum lançado no agora, disputando narrativamente – e pensando por conseguinte – os passados, para, sob esse ponto de vista, refletir o presente.
A parte musical é o que mais traz o nosso momento atual para o centro do palco, tendo influências variadas e passando por diversos estilos, desde os modernos traps e drills, até os clássicos MPBs e souls. A produção, majoritariamente assinada por Nave, está de fato impecável, abandonando os elementos mais orgânicos do disco anterior e abrindo espaço para as contribuições positivas de artistas como Daniel Ganjaman e Deryck Cabrera, além dos detalhes da mixagem feita ao toque de Luiz Café. Outra grande contribuição ao todo do álbum é a direção artística de André Maleronka, guiando-o propriamente para um resultado musical e visualmente coeso.
O álbum começa em um direto interlúdio, seguido de ‘vila rica’ com feat de Mateus Fazeno Rock. Sua abertura apresenta parte do discurso de um pastor e o veremos ao longo de outros dois dos quatro interlúdios dispostos pela jornada do ouvinte. A segunda track, acompanhando e marcando a abertura do disco, constrói bem seu papel de apresentar o conceito do álbum, desenvolvendo-o em seu micro espaço possível, além de capturar a atenção dos ouvintes, criando toda a atmosfera necessária para o já auge do projeto, ‘a todo vapor’. Este, por sua vez, aglomera tudo que poderíamos elogiar: uma boa decisão no beat, uma letra bem escrita repleta de força e sentimento, variações de flows com momentos marcantes e uma entrega totalmente comovente.
Na sequência, ‘pânico de nada’ abre alas para o miolo do disco que se estende até o terceiro interlúdio. Se o álbum tem problemas que o distanciam do extremo exímio de uma produção perfeita, ali estão eles. Caracteristicamente temos um trabalho ora mais soturno ora mais quente, letras bem cinematográficas e o abuso do drill em um número de faixas grande demais para um álbum e um artista que não pretendem ser desse estilo.
Naturalmente, como uma parte do disco que se arrasta, o maior problema são os pontos supostamente dinâmicos que acabam se desviando ou destoando do movimento geral do álbum. Um exemplo disso está em ‘bingo’, décima segunda faixa do disco, trazendo imagens fortes e vívidas, um clima bem quente e contagiante, mas que, embora possa ser relacionada ao disco por elementos gerais, é utilizada apenas para exercitar o carisma do autor, deixando de desenvolver algo que agregue de forma apropriada ao trabalho. Outro exemplo de uma boa track que pouco agrega à narrativa é ‘enquanto recomeça’, na qual vemos uma situação que possivelmente se desenrola durante o evento narrado na faixa anterior ou em um contexto que surgiu a partir dele. Apesar do potencial da faixa, sua existência ali configura um desvio do caminho narrativo que ao fim não disserta sobre nada, apenas parece curtir o momento, tornando uma pausa gratuita já na quinta faixa do álbum. Nestes desvios, também temos alguns desperdícios sensíveis em participações que não são utilizadas tão bem, como o caso de ‘auri sacra fames’, com Tasha e Tracie, que desperdiça uma boa canetada da dupla com uma entrega cansativa e batida.
No meio desse miolo, o miolo do miolo, chamemos assim, constituído por ‘pela boca’, ‘volta da vitória/ citação: us manos e as mina (xis)’ e ‘favela venceu / citação: rap das armas (mc junior / mc leonardo)’ – que vinha sendo anunciada anteriormente com um feat do Djonga, e agora o MC participa apenas como coro – acaba sendo a exceção deste recorte e ganha muito mais força que as músicas ao seu redor. De fato, a caneta bem trabalhada ao longo do disco, aqui, aglomera momentos de bastante elaboração e outros curiosos. No caso da última citada, tudo orna à excelência, desde o beat e colagens até a composição que se apropria com bastante criatividade de uma fórmula totalmente batida e utilizada ao escrutínio na cena atual: “A gente é isso/ Eles são aquilo”. Don, contudo, sente mais necessidade em focar no “a gente”, afirmando a existência em seu puro exercício de qualificação, relegando “eles” a um papel secundário e não um elemento de definição por contraste.
A gente também sabe andar de Glock (prra!)
A gente tem banca, eles banco
(parapapapá)
Ladrão foi Colombo, é tudo nosso
A gente merece, a gente banca
Nós pega a visão, eles propaganda
Se quem te alimenta te controla
Ninguém quer esmola, a gente planta
Quem fecha com o bonde é sangue nosso (cria!)
Quem fecha com os bota é sanguinário (otário!)
O álbum volta a ganhar ritmo a partir do terceiro interlúdio, dando as boas vindas a bela ‘contigo pro que for’. A dinâmica entre os versos e voz de Don L com o lindo refrão de Alt Niss casam com maestria. O resultado dessa combinação tem muita química, e os sopros ao fundo servem como elemento para acrescentar certa organicidade que era pedida pela faixa e faltava instrumentalmente até então. De bônus ainda temos a saída de Terra Preta, criando um bom contraste aos refrãos femininos, tanto desta quanto da track seguinte que não deixa por menos, aproveitando o embalo melódico para uma faixa de, digamos, bon vivant-malandro-utópico.
A track final, ‘trilha pra uma nova trilha’, amarra o encerramento, em uma expressão de sentimento muito menos positivo do que se espera a princípio, contrastando uma realidade capitalista intrínseca ao tempo dele e como isso o atinge, e, também, afirmando sua vontade: “prefiro morrer pelo que acredito”. A faixa ganha além de tudo mais peso em sua posição, quando a reflexão incide posteriormente a toda discussão sobre narrativas do passado colocadas até ali, quando consideramos passado, presente e futuro desdobramentos lógicos.
Roteiro Pra Aïnouz (vol. 2) acaba por ser magnífico no que propunha em suas entregas e reflexões e, então, no que realizou, vencendo as condições inerentemente difíceis de produzir um trabalho independente. Os momentos mais baixos do disco estão longe de serem defeitos técnicos e não configuram deslizes, mas sim decisões, sejam elas estéticas ou comerciais, e portanto faz-se necessário um exercício mais minucioso na audição para achar o que o distancia de algo impecável em sua execução. Ao final, temos um resultado primoroso soando aos ouvidos enquanto somos embalados pelo ritmo comunista do último bom malandro. Agora, resta saber se RPA 2 envelhecerá tão bem ou até melhor que o seu irmão. E assim o deverá.
Melhores Músicas: a todo vapor, volta da vitória, favela venceu e contigo pro que for