O primeiro disco de qualquer artista é um campo muito fértil. Seja para dar os primeiros passos na construção de sua identidade ou para expor toda uma bagagem emocional e cultural acumulada durante toda sua vida. Na tentativa de abraçar esses dois extremos, PELE, álbum de estreia da carioca N.I.N.A apresenta uma coletânea de faixas que expõem quadros temáticos interessantes e bons momentos na sua produção.
Como uma das MC’s com um destaque orgânico bastante contundente nos últimos anos, seja por singles ou pelas apresentações no Brasil Grime Show, esse cartão de visitas era muito importante. Junto do produtor Terra, N.I.N.A aproveita as bases do drill junto de suas influências para se exibir de maneira mais ampla e conceitual.
A sensação de estar diante de um processo de exposição sentimental é constante em “PELE”, principalmente em suas faixas iniciais. “Anna”, que serve como uma intro e leva o nome de batismo da cantora, é a responsável por ditar esse direcionamento. Com a colaboração de Kash na produção, N.I.N.A elabora um quadro mental que debate sobre as influências de seus dilemas pessoais sobre seu trabalho artístico. Enquanto o BPM é acelerado, sua entrega é angustiante, dando o sentimento claustrofóbico e reflexivo necessário para esse momento.
Essas angústias ocupam um espaço bastante destacado nesse começo de álbum. O que em certo ponto é feito de maneira muito competente em letra e entrega por parte da N.I.N.A. Por outro lado, o ritmo de execução é muito prejudicado quando após a introdução, somos apresentados a um interlúdio. “10x Melhor” é uma reflexão sobre passado, presente e futuro. Lidando com situações passadas e cantando em busca de uma perspectiva melhor de futuro. Percebendo o quão sólidas são as narrativas dessas duas músicas, seria bastante proveitoso tê-las por momentos mais extensos e coesos musicalmente entre si.
Entretanto, a partir desse ponto “PELE” segue em outra direção. Chegando em um dos pontos mais altos do trabalho, N.I.N.A evidência suas perspectivas sobre a fama, vícios, sexo e suas influências na vida artística. Mais do que um ode a um cotidiano desvairado, aqui ela desconstrói o ideal do show business, mas sem cair em algum tipo de moralismo. É uma discussão crua, onde os ciclos de produção artística e como tudo que isso rende junto com o sucesso reincidem sobre si. Novamente com a participação de Kash, o beat consegue se sobressair quando preciso e dar espaço para as vozes na hora que necessário. A faixa ainda tem o feat do carioca Vitin, com um verso que não mantém o mesmo padrão em interpretação e escrita que a MC, mas ajuda a trazer mais energia e movimento.
Inclusive, as participações em versos do álbum são os momentos mais fracos do disco. De certa forma, a régua estabelecida pela artista é tão alta que os MC’s que a acompanham (Vitin, Pejota, Zarashi e Derxan) não alcançam um nível de qualidade próximo. O que acaba puxando algumas faixas para baixo, principalmente nas que possuem beats mais homogêneos e menos expressivos, como em “Culpa”.
Seguindo a tentativa de apresentar suas referências e amplitude musical, “Oi, Sumido” é a faixa que faz a lição de casa com mais sucesso dentre todas. Com influências do funk, drill, grime e R&B, N.I.N.A se desdobra em versos e canto, com uma fluidez e naturalidade enormes. Inclusive a energia e facilidade com que ela se adapta aos diferentes momentos dentro da faixa, proporcionando uma apresentação soberba. O mesmo pode se dizer de Terra, que entregou um beat cheio de energia, com timbres mais aprazíveis e que apesar de ser acelerado, é super convidativo para o tema e o refrão cantado.
Após essa passagem, o disco chega no seu terço final e aqui encontramos alguns problemas. O que mais se destacou até aqui no disco foi a capacidade de N.I.N.A discursar sob diferentes perspectivas, mesmo que seja sobre assuntos similares. Porém, “Matemática” e “Malícia” acabam fugindo bastante desse aspecto. O problema fica mais evidente quando as batidas das duas faixas são tão similares entre si e ficam num lugar comum que chega a ser monótono.
Enquanto nas músicas anteriores “PELE” carregava muita identidade, seja ela pessoal ou artística, seu final é onde ficam reservados seus pontos mais insossos. O que acaba chamando muita atenção, por justamente não conseguir cativar e chamar atenção através de bons atributos. Nem mesmo o feat. de Derxan em “Malícia” consegue levantar um pouco a faixa, pois ele se perde em um verso que não vai muito além do que vemos de mais corriqueiro dentro da cena do drill. Esse acaba sendo um espaço do disco onde parece que tanto N.I.N.A quanto Terra tentaram jogar um jogo mais seguro, mas acabaram se afundando demais em uma zona de conforto artística.
Pelo menos na última faixa a MC consegue retomar as rédeas de seu álbum e fechar o ciclo conceitual e musical de um jeito bastante poderoso e íntimo. Iniciando o disco com uma faixa intitulada com seu nome de batismo, ela resolve finalizá-lo com sua persona artística. “N.I.N.A” é um relato bastante pessoal sobre sua ascensão dentro da cena, mas também de seu desenvolvimento como uma mulher negra. E mais do que uma temática forte, ela consegue transmitir essa emoção na sua entrega e escrita, ganhando tons épicos com a produção que lhe acompanha.
É gratificante perceber que mesmo se perdendo em algumas faixas anteriores, a artista ainda se preocupou em manter a coesão de seu conceito. Juntando o melhor que foi apresentado até aqui, a canção fecha o disco com chave de ouro e premia a jornada do ouvinte de maneira singular. Um exemplo de como colocar o potencial e discurso musical de um jeito relevante e que faça sentido dentro da proposta do trabalho.
No final das contas “PELE” acaba sendo um disco com muita personalidade, mas que sente dificuldade em se desprender de algumas convenções. Porém, ele também apresenta muito o potencial e capacidade de N.I.N.A de figurar como uma das maiores artistas na atualidade da cultura nacional. Tudo depende de como serão os próximos capítulos da sua história.
Músicas favoritas: Oi, Sumido, Luxúria e N.I.N.A