Charizma: o rapper que não viu seu álbum pronto

Assassinado após reagir a assalto, MC deixou projeto finalizado que só chegaria para o público 10 anos depois da tragédia

Alguns artistas partem enquanto estão finalizando ou trabalhando em grandes projetos, mas em casos ainda mais trágicos, eles deixam até de ver seus primeiros álbuns sendo colocados nas ruas. Foi o caso do jovem Charles Hicks, mais conhecido como Charizma, rapper estadunidense que teve sua vida tirada aos 20 anos. 

O garoto de San Jose, na Califórnia, desde os 13 anos já estava na rua fazendo freestyles e seu nome de MC, enquanto estava no Ensino Médio, era Charlie C – na época o jovem fazia parte do grupo ‘II Def II Touch’. Sua história ganha novos rumos quando o produtor Chris Manak, conhecido como Peanut Butter Wolf, entra em sua vida, ambos foram apresentados por um amigo de Manak e começam a trabalhar juntos. Responsável pelas batidas, Peanut Butter Wolf trabalhava com outros artistas, porém a química entre ele e Charizma era tão forte que passaram a ser uma dupla 100% do tempo.

Na Kqed, durante uma entrevista, o produtor comenta sobre o processo de criação da dupla. Manak era responsável por todas as batidas, desfrutando de total liberdade criativa. Charizma também se virava na produção, podia escolher samples vocais e efeitos sonoros, mas seu trabalho principal ficava por conta das letras. A dupla trabalhou junto por quatro anos, até a morte precoce do rapper em dezembro de 1993. No trágico dia, ambos haviam combinado de gravar em um estúdio, porém Hicks passou uma mensagem em seu pager para Peanut Butter Wolf dizendo que não poderia comparecer ao compromisso.

Pouco tempo depois, o rapper sofreu uma tentativa de roubo, mas após resistir foi baleado e morto. Peanut não tocou em seus instrumentos de produção por muito tempo após saber da morte de seu amigo. Segundo ele mesmo, passou meses sem criar, o que não apenas lhe serviu de terapia, mas também como uma oportunidade para se dedicar e explorar novos caminhos em sua arte. 

Manak, após uma temporada sem fazer música, começou a trabalhar com outros artistas e, a partir dessas experiências, ele decidiu criar sua própria gravadora, a Stones Throw. A empresa colocaria na pista o single ‘My World Premiere’ em colaboração com Charizma, seu primeiro lançamento, três anos após a trágica morte do rapper. No ano que o jovem MC morreu, seu álbum estava praticamente pronto, mas só seria revelado ao público quando a tragédia completou 10 anos – com o aval da família de Hicks.

Mesmo engavetado, o álbum não parece datado, gravado entre os anos de 1991 e 1993, ‘Big Shots’, o primeiro e único LP de Charizma, apresenta produções com bastante samples e batidas fortes, fugindo do que era encontrado na área de San Jose. Suas influências, como o próprio MC falou em entrevista, passam por Master Ace e Special Ed, artistas de Nova York. A única exceção fica para o grupo Cypress Hill, que surgiu na Califórnia, assim como o rapper.

Nos anos em que foram gravadas as músicas que compõem o trabalho, o cenário musical do hip-hop era tomado pelo gangsta rap, mas o jovem artista escolheu ir por outro caminho. Apesar de não fazer músicas nessa pegada, Charizma afirma que ainda sim trabalha pensando em sua quebrada.

Os pontos altos de seu projeto ficam para as músicas em que o rapper utiliza a técnica do storytelling. A track “Jack the Mack”, utiliza o sample da canção “Butter”, do grupo ‘A Tribe Called Quest’ em que Phife Dawg diz que as garotas não o conhecem, mas o tratam como se ele fosse o “The Mack”, conhecido cafetão de um filme americano de 1973. No entanto, na canção de Charizma, o personagem Jack é um traficante de crack que andava sozinho, certa noite ele encontra uma garota e tem relações desprotegidas com ela. A mulher vai embora antes do personagem da música acordar e deixa um bilhete escrito com batom no espelho dizendo que ela possui o vírus HIV e teria passado para Jack.

Mesmo contando com tom humorístico, o jovem MC mostra preocupação com sua comunidade. Na música, ele aborda temas tratados como tabus na época, como a epidemia do crack, que teve seu auge na década de 1980 nos EUA. O assunto principal no entanto é o alto índice de pessoas com vírus HIV, de acordo com a Associação de Psicologia Americana, o principal fator responsável pela morte de homens entre 25 e 44 anos nos Estados Unidos foi a AIDS. Em 1998, 49% das pessoas que faleceram por conta da doença eram afro-americanos e a epidemia impactou também o mundo do hip-hop. Na década de 1990, grandes ícones do meio sofreram com o vírus, como Keith Haring, artista com grande influência do grafite, e chegou a encerrar precocemente carreiras que alcançavam o auge, como a de Eazy-E.

 

Suas músicas, em sua maioria, funcionam dessa forma, Charizma tem um jeito de rimar e passar mensagens de forma humorística. Ele é como um cronista da vizinhança, que percebe as mazelas, mas sem perder o sorriso e o jeito de contar seus casos do dia a dia. Na track ‘Ice Cream Truck’ fica nítido, nela o MC observa o sorveteiro passar pela quebrada todos os dias e como os clientes ficam alegres com sua chegada. O MC expressa o desejo de ter esse emprego, pois nota a presença de armas e tráfico de drogas ao seu redor, enquanto o vendedor de sorvetes consegue encontrar aspectos positivos nesse ambiente e se deslocar entre os diferentes bairros da cidade, oferecendo uma “fuga da realidade” para o narrador.

O jovem buscava acabar com o estigma de que a Costa Oeste dos EUA não possuíam técnica, elogiado por seu estilo, infelizmente não conseguiu ver sua obra completa chegar ao público. Ainda que seu trabalho tenha impactado quando saiu em 2003, as consequências seriam ainda maiores caso tivesse saído no ano em que foi gravado, algo antes da consolidação plena do G-Funk e a chegada do Wu-Tang Clan e seus derivados.

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