Quando assistimos a uma peça de teatro, geralmente buscamos uma produção que nos envolva, com um elenco talentoso e um roteiro que capture nossa atenção; até mesmo os detalhes mais sutis podem intensificar a nossa experiência com a obra. Se traçarmos um paralelo, veremos que a arte se assemelha ao rap, a prova disso é o álbum ‘Maria Esmeralda’, criado por Cravinhos, Thalin, VCR Slim, iloveyoulangelo e Pirlo. No entanto, as semelhanças entre esses dois mundos vão além e se refletem até na vida dos artistas.
O projeto narra a história da personagem que dá nome ao álbum e se desenvolve no passado. Com misturas que colhem referências de patrimônios culturais do Brasil, como o cinema marginal e MPB, o disco é interpretado por Thalin. A ideia de se passar por outra pessoa e dar interpretações para coisas que não foram vivenciadas por ele não é novidade, já que o artista foi ator durante boa parte de sua vida. A mudança de profissão só aconteceu durante a pandemia, e trazer as características dos espetáculos para suas obras musicais aconteceu inconscientemente, comenta o intérprete de Maria Esmeralda.
O momento de como o álbum deu início é digno de história dos grandes palcos. A primeira faixa produzida foi ‘Lince’, mas só saiu porque Thalin, Langelo e Cravinhos estavam no estúdio de Pirlo, a Base Company, e acabaram ficando presos quando uma das pessoas que estavam lá trancou a porta. O single, juntamente do clipe, foi gravado na mesma madrugada, mas a ideia de um disco completo ainda estava distante. –
A resposta à música foi boa e os quatro tiveram a ideia de realizar um projeto maior, e para completar o time, VCR Slim foi convocado. Com o quinteto formado, eles realizaram uma reunião para alinhar suas referências e construir o personagem de Maria Esmeralda. De acordo com Cravinhos, “o processo foi tão natural que fica difícil dizer como tudo funcionou”, os artistas foram fazendo suas músicas e quando menos esperavam as 16 faixas do álbum estavam prontas.
Marília Medalha estava na plateia
O projeto une o velho ao novo, conferindo novos sentidos ao clássico e fazendo com que se encaixe na atualidade. Uma prova disso é a participação de Marília Medalha, que lê um poema na primeira faixa. A presença da cantora icônica foi um acaso: o pai de Thalin, curador de um teatro, viu Medalha em uma das peças. O rapper então procurou saber mais sobre ela e, depois de conseguir seu contato, ligou para apresentar seu projeto e convidá-la para participar de uma faixa.
A artista adorou a ideia, especialmente porque os responsáveis por Maria Esmeralda estão na faixa dos 20 anos. O encontro entre eles foi uma coincidência, já que Langelo, um dos produtores, havia apresentado algumas das músicas que se tornaram icônicas na voz de Marília para seus colegas semanas antes. Após uma conversa inicial, Marília os convidou para sua casa. Na primeira visita, os artistas conversaram, ouviram curiosidades sobre as principais figuras da MPB e foram apresentados a alguns poemas escritos pela irmã da cantora.
Eles então perceberam que ter Marília recitando um desses poemas seria ainda mais especial do que apenas a frase “Essa é a história de Maria Esmeralda” que abre o álbum. Além disso, isso casaria com a referência ao álbum Who Made the Sunshine, de Westside Gunn, que inclui a rapper Keisha Plum declamando poesias em algumas faixas. Para Cravinhos, a participação de Medalha na primeira faixa foi uma oportunidade concreta de unir o velho com o novo, e isso só ocorreu devido à influência de Langelo, o cowboy moderno.
Sobre seu apelido, o produtor explica que surgiu porque ele é “beatmaker e, ao mesmo tempo, trabalho na roça”. Para ele, a importância da participação de Marília Medalha vai além da sua voz na faixa; sua contribuição também reverbera nas vidas deles, pois tiveram a oportunidade de aprender e ganhar experiência com as vivências da cantora. Além disso, o produtor vê isso como um presente para a música brasileira, destacando que, em 2024, ter Marília recitando um poema em um álbum de rap é algo “importantíssimo”.
Até quem não gosta pagou o ingresso
As referências no disco são diversas, incluindo samples de rap, sons extraídos de objetos comuns, como uma broca de dentista, e até trechos de novelas. Algumas são mais evidentes, como os nomes das faixas ‘McCoy Tyner’ e ‘Bill Evans’, que aludem a dois grandes pianistas do jazz. Esse leque de referências faz com que o projeto soe atraente não apenas para os fãs mais fervorosos do rap, mas também para aqueles que não estão tão acostumados com o gênero.
Os produtores VCR Slim e Cravinhos ouviram de pessoas que não ouvem rap recorrentemente que o trabalho estava muito bom, principalmente devido à história que é transmitida ao longo das faixas. Thalin, que escreveu as letras, comenta que “sempre lancei em vários gêneros, tentando conversar com o máximo de pessoas possível. Isso é o mais difícil que existe; se manter em uma única vertente é confortável.” Thales, no entanto, não consegue explicar exatamente por que o projeto agradou às pessoas fora do universo hip-hop. Já Cravinhos vê uma explicação simples: ‘Maria Esmeralda’ foi criado por artistas que, assim como ele, transitam por diferentes estilos musicais e são tão “ecléticos que chegaram a fazer um disco de rap”.
O produtor Langelo vê o álbum como uma homenagem ao estilo musical, embora seu primeiro contato com a música não tenha sido dos melhores. Seu pai havia comprado um CD do Racionais MC’s, e o ouvia escondido, já que seu filho era pequeno e poderia não entender as letras. Curioso, o jovem levou o disco para a casa de um amigo para ouvir, mas sua mãe descobriu e quebrou o disco na frente dele, o que deixou uma marca na sua memória.
Recentemente, a mãe de Langelo o chamou após ouvir ‘Maria Esmeralda’ e comentou que gostou do trabalho. Para ele, isso significa que os outros artistas do disco fizeram a coisa certa, provando que as 16 faixas que compõem o álbum conversam com o público fora do rap.
Os mínimos detalhes marcam o roteiro
Assim como em uma peça teatral, a música é composta por detalhes que vão além do básico, como baterias e rimas no beat. Cravinhos entende que cada faixa cria uma atmosfera única, gerando diversos ambientes, que ele denomina como cômodos. Para ele, o ouvinte “escuta um timbre ou um acorde e é transportado para um lugar que nunca viu na vida”, e os cinco artistas responsáveis por Maria Esmeralda contribuem adicionando diversos quartos ao longo das 16 faixas.
Os instrumentais são essenciais para contar a história do eu lírico. Com os cômodos criados pelos produtores, Thalin entrou em cada um deles e interpretou o ambiente ao seu redor “muito bem, reformulando-os e transformando-os em uma casa completa”, acrescenta Cravinhos. Na obra, Thales interpreta Túlio Miguel, parceiro de Maria Esmeralda, que tem algumas falas ao longo do disco. Embora seja um personagem significativo para os criadores do trabalho, os ouvintes podem não estar familiarizados com ele, comenta Thalin, pois seu nome é mencionado apenas brevemente na faixa ‘McCoy Tyner’.
O beatmaker Langelo também contribuiu para a faixa ‘Lince’, mas colocar seus pensamentos em barras pode não ser comum para muitos produtores, como ele próprio observa. Com isso em mente, ele precisou encontrar uma forma de expressar seus sentimentos nas produções que assina: “o rapper ouve as faixas e, com base na sensação provocada, cria suas letras na mesma vibe”. Isso ocorreu durante todo o processo de criação do álbum, mas Thalin foi capaz de ir além do esperado, criando rimas que superaram as expectativas dos outros quatro artistas.
Com a ideia de misturar o clássico com o novo, muitos dos samples que formam os beats foram escolhidos a dedo, comenta Cravinhos. O disco retrata a complexa relação de Maria Esmeralda com seu companheiro Túlio Miguel e como o dinheiro influencia esse relacionamento, como é evidente nas faixas em que o pôr do sol é descrito. Embora Thalin seja responsável pelas letras, ele também sugeriu alguns samples e observa que “se separarem o beat das linhas, a história continuará sendo contada”.
Diferentes interpretações para uma mesma história
Quando dois ou mais autores colaboram em uma obra, é comum observar pontos de divergência nas perspectivas individuais, e isso também ocorre no álbum Maria Esmeralda. Durante a entrevista com a equipe da Inverso, os cinco artistas apresentaram diferentes versões de uma mesma história, e essa diversidade é refletida no trabalho.
Sons de pássaros levantando voo aparecem em todas as faixas. VCR Slim explica que a ideia surgiu durante a gravação de ‘Lince’ e acabou se tornando uma espécie de “tag” do disco, sem um conceito mais elaborado por trás. Por outro lado, Cravinhos vê isso como um conceito significativo do álbum; como a dualidade é constantemente abordada, os sons dos pássaros representam um momento de escape. “É como uma situação de ansiedade, onde, por um momento, você consegue colocar sua mente em um lugar específico que te acalma”, comenta o produtor.
Essa ideia de um lado contra o outro é explorada ao longo das faixas, mas é destacada em ‘Poliesportiva’, quando DonCesão canta:
“Na mesma intensidade
Que se vive um sonho bom
Se vive um pesadelo […]”
Em ‘Bill Evans’, que funciona como um interlúdio, Thalin torna ainda mais claro que o disco possui duas partes: a primeira mostra a relação de Túlio Miguel com dinheiro e erros cometidos por ele, enquanto a segunda retrata o personagem com os pés no chão, buscando redenção em seu relacionamento com Maria Esmeralda. Essa ideia é ainda mais evidenciada em ‘Chão de Mármore’, onde os desejos de ter uma família da mulher envolvida com seu primo são explorados, enquanto o eu lírico é consumido pela busca por riqueza. Na faixa, os sons dos pássaros surgem quando o convidado, Tchelo Rodrigues, percebe que pode alcançar seus objetivos sem depender de outros.
O álbum termina de forma diferente das grandes histórias; enquanto geralmente o protagonista segue a jornada do herói — com desafios, aprendizado e um final feliz —, em Maria Esmeralda é diferente. Como Thalin analisa a última faixa, ‘Revoada’, “os pássaros não simbolizam liberdade e fuga para a protagonista; o projeto termina com ela no meio de uma situação. É como se as aves voassem, parassem e, em determinado momento, voltassem a alçar voo”.