Nossa revolução é feita de dança

Em seu primeiro álbum, Epifania, Cristal fala sobre identidade, afeto e negritude na busca por um som que venha da alma.

Cristal atualiza o brilho e o verbo do baile black em 'Epifania', álbum  autoral alicerçado no groove do soul e do funk | Blog do Mauro Ferreira | G1

Soul, Funk e Rap. Pai, Filho e Espírito Santo. A santíssima trindade da música negra norte-americana se reúne mais uma vez para dar vida ao primeiro álbum da carreira da gaúcha Cristal. Em Epifania, disco produzido em parceria do seu primo MDN Beatz,  a rapper de Porto Alegre propõe um retorno à onde tudo começou, um retorno às origens dos bailes blacks,  para falar de identidade, afeto e negritude.

 

A reunião dos gêneros em um único projeto parece familiar, pois, de fato, é — Boogie Naipe (2016) . Porém, Cristal tem completa noção de que não está inventando a roda. Epifania pode seguir por caminhos conhecidos, mas propõe uma outra viagem. Uma viagem para além do tempo, para além dos gêneros, uma viagem com uma linha de chegada incerta movida por perguntas sem respostas prontas: O que é aquilo que chamamos de “cultura preta”? E qual é o meu lugar nela?

 

Essa é uma questão que parece fácil mas possui nuances de complexidade muito mais esguias do que aparenta. Um desavisado poderia utilizar a resposta simplista de que, por óbvio, as músicas pretas seriam  todas aquelas feitas, pasmem, por pessoas pretas. E não seria um raciocínio errado. Mas, não seria preciso, nem chegaria perto de toda a base argumentativa necessária para o assunto. Afinal, o samba nunca deixou de ser uma música negra mesmo com o sucesso de intérpretes como Beth Carvalho ou Diogo Nogueira dentro dele, por exemplo. 

 

Ou seja, existe algo mais profundo do que apenas a superficialidade do olho possa ver para definir a questão. Uma explicação histórica ou geográfica? Talvez. Espiritual? Pode ser. Mas, nas palavras do crítico Amiri Baraka,  em sua coletânea de textos Black Music: Free Jazz e Consciência Negra, a identidade da música preta pode ser interpretada, em primeiro lugar, como a expressão de uma atitude, um acervo de propósitos sobre o mundo, e, somente depois, uma forma de se fazer música. E é desse lugar que parece partir o álbum de Cristal.

 

Desde de antes de Jorge Ben o negro já era lindo. Mas, de fato, é na criação da Soul Music, no final da década de 50, que a diáspora do continente africano na América encontrou um dos seus meios mais importantes de imposição enquanto identidade, unidade e cultura. Uma luta tem muitas imagens, uma luta tem muitas caras, mas qual é o som de uma revolução?

 

Durante o Movimento dos Direitos Civis da comunidade negra norte-americana, o Soul foi o responsável por musicar a história. A chamada Black Music trazia consigo, além de uma música dançante, uma ferramenta de sociabilidade, um posicionamento, um discurso. O orgulho em ser negro não estava em disputa, não era negociável, era a lei pela qual os primeiros blacks regeram o mundo. A ordem era: “dance! Mas dance como um black”.

 

No Brasil não foi diferente. Por intermédio de nomes e vozes como as de Carlos Dafé, Oberdan Magalhães, Tony Tornado, Gerson King Combo, Tim Maia e Cassiano, a Soul Music chegou e fincou raízes. Mas foi na popularização dos bailes black que ela definitivamente floresceu. Em seus tempos áureos, festas como a Chic Show em São Paulo chegavam a ter público de até 15 mil pessoas por noite.

 

Cristal retorna a esse passado, não como forma de saudosismo, não buscando ficar presa por lá, mas procurando residir no elo entre o que se foi e o que se é essa cultura que ela mesmo faz parte. Uma reverência. E por isso soa tão significativo quando os pronomes singulares dão lugar a uma fala plural.  No lugar do “eu faço” , Cristal diz: “é assim que a gente faz”. A gente. Nós. Continuidade. Obrigado Black.

 

A construção do álbum é impecável, nada parece sobrar ou aparentar que está fora do lugar. Muito mais cantora do que Mc, diferente do que foi em outros projetos, Cristal realmente se desprende de qualquer amarra limitadora, chegando até mesmo a apostar em faixas inteiras sem nenhuma única linha de Rap. Como ocorre em “O Asfalto é Frio”, quarta faixa do disco, por exemplo.

 

O que, por sua vez, não significa dizer que a artista apresenta qualquer coisa menos do que a excelência quando é necessário por algumas rimas. Faixas como “Vida Antiga” e “Corre” demonstram a capacidade de Cristal em oferecer flows e rimas autênticas.

 

“Redial” é obviamente o carro chefe do álbum. Lançada como single, a música é um daqueles sons com refrões que facilmente ficam presos na mente. A canção conta a história de um amor descontinuado mas que poderia ser resgatado com apenas uma ligação. A coprodução de Duda Raupp e os vocais de Bira Mattos são essenciais para fazer tudo funcionar perfeitamente. Um potencial hit.

 

Mas, é nas “Obrigada Black”, “Love Community” e “Vitória” que o disco entra no seu  ápice discursivo. Frases como “Num mundo cheio de ilusões eu prefiro meu espelho”, ou mesmo “Ouvi Simonal e me senti tão black”, trazem um quê de metalinguagem, de duplo sentido, tão sutil e acertado quanto é possível ser. Ao falar do todo, fala de si, e ao falar de si, fala com o todo. Torna-se, por tanto, difícil não se conectar ou não se sentir imerso dentro do universo proposto.

 

A vontade de fazer parte do baile de Cristal se faz presente e instiga o ouvinte. O corpo entra em puro frenesi ao ser contagiado pelo som. E a forma delicada como a porto-alegrense toca nos temas relembra algo muitas vezes esquecido pelo Rap: há espaço para se divertir e pensar ao mesmo tempo. Em Epifania, Cristal prova que é possível ser leve, ser alto astral, sem deixar de ser político, assim como o Soul sempre foi. Nossa melhor versão nunca foi o ódio. Nossa revolução sempre foi feita de dança.

 

“Nossa rebeldia é nossa folia bae” — Vitória 

 

Se o jogo do Rap atual parece monótono em diversos âmbitos, se artistas parecem tão esgotados do próprio ego, se o mercado parece ditar do primeiro ao último segundo da produção de um disco… Cristal cala todas as vozes externas para produzir uma música que vem realmente de dentro da alma. Íntima até não poder mais.  E que, por vir de dentro, soa tão sincera e identificável. 

 

Epifania é um mergulho divertido dentro do próprio processo de construção da identidade de Cristal como artista. Tudo que ela puder ser daqui para frente será lembrado a partir desse ponto. Talvez por isso tenha demorado tanto para sair, tudo estava sendo minimamente lapidado nos seus mínimos detalhes como um raro minério, como um raro cristal. Ao chegarmos ao final do disco, só temos uma conclusão: a vitória, ela conseguiu.

 

Sobre a questão de “qual seria o lugar de Cristal no Rap atual?”, essa continuará sem respostas. Afinal, já nem importa mais. Essas caixas e posições não a convém. Cristal descobriu que joga em outra competição. Uma criada por ela. E aprendeu a dançar com atitude nos palcos da vida, cheia de originalidade e orgulho de ser quem se é.  Ou seja, como um black

Melhores músicas: Obrigada Black, Love Community e Vitória

A Inverso é um coletivo dedicado a cultura Hip Hop e o seu lugar para ir além do comum.