KM2 – Ebony

Em seu terceiro álbum de estúdio, Ebony falha em executar suas propostas e não repete o sucesso de seus discos anteriores

Após dois anos sem um disco solo, a rapper carioca Ebony lançou seu terceiro álbum, KM2. O nome do projeto é especial: faz referência ao bairro em que a artista cresceu, Queimados — KM2 é como seus amigos de infância o chamam —, sugerindo que seus fãs encontrariam uma obra mais introspectiva, ao menos se comparada aos seus últimos (e bons) LPs. Nos anos anteriores, a artista lançou singles de destaque, como 24hrs e a diss aos artistas masculinos do rap Espero Que Entendam, mostrando um lado mais maduro, mas sem perder o tom cômico e, ao mesmo tempo, irônico que a consagrou.

Quando o disco foi anunciado, divulgou-se que haveria músicas com abordagens mais profundas, tratando de temas como sua vivência periférica, dores e traumas de infância, além do amadurecimento precoce que a rapper teve de adquirir por ser uma mulher negra em um ambiente muitas vezes hostil. Ebony ainda afirmou que o projeto apresentaria uma persona diferente daquela hiperssexualizada que ela criou para o LP Terapia.

A primeira faixa reforça essa expectativa ao apresentar o áudio de um vendedor em um vagão de trem e trechos de matérias sobre a violência que afeta os moradores do bairro da rapper. No entanto, o que nos é entregue é um projeto que possui uma boa ideia no papel, com referências estéticas e sonoras interessantes, mas que falha na concretização da proposta.

A segunda faixa, intitulada Parte do Mundo, é quase um retrato do álbum como um todo. Apesar de iniciar bem o primeiro verso, fazendo sérias críticas às cobranças diárias que recebe e renegando qualquer dívida com essas pessoas, Ebony encerra a estrofe retomando a persona “hiperssexualizada” que ela própria disse que manteria afastada — ao menos neste trabalho —, destoando do tom apresentado no início da música.

No refrão, a carioca demonstra seu talento ao adotar uma mudança de flow para algo mais melódico, acompanhada por uma variação no beat — outro ponto alto do álbum. No segundo verso, lança alfinetadas a artistas da cena, principalmente mulheres, algo recorrente em outras faixas do disco.

A falta de criatividade de Ebony se evidencia em Gin com Suco de Laranja, com versos repetitivos e rimas simplórias. A insistência na repetição sobre ela e seu parceiro estarem pelados, “nojentos” e grudados já causa incômodo por si só, mas as últimas linhas do primeiro verso intensificam essa sensação. Há até uma tentativa de crítica social, com menções a parentes, mas que não dialoga com o teor da música.

“Ficando pelado, nojento, grudento, molhado
Fazendo uma sex tape
Não sou insegura, eu chamo mais uma e fazemos algo a três
Ou melhor, dois mais um
Olha de longe, e vê
Que o meu coração é tão puro, mas meu bairro é escuro
Eu já me perdi uma vez
Prefeito, ilumina minha rua pra me ajudar a ver a bênção que eu me tornei
A bênção que eu já pedi pra cada parente meu”

Em Festas e Manequins, Ebony consegue demonstrar melhor seu talento. Com ótimo flow e vocal, a artista critica pessoas que, num passado recente, a desprezaram, mas que hoje a tomam como referência estética e artística. A faixa é divertida, e a mudança de tom no beat produzido por AG Beatz contribui para a atmosfera. O único ponto negativo é o grito de “Toma!” ao fim do terceiro verso, que soa infantil — como a resposta de um adolescente em uma discussão escolar.

Vale do Silício é a única faixa de KM2 com participação de outro rapper. A estética de love song foi uma ótima oportunidade para chamar Black Alien, também artista do Rio de Janeiro. Apesar do nome e da trajetória do convidado no rap, Ebony não se intimida e mostra talento e maturidade — o que não surpreende — ao ser o ponto alto da faixa. Ela entrega variações vocais marcantes e um flow cantado que dita o tom da música, além de versos sinceros que revelam mais do seu íntimo do que em qualquer outra track.

“Passei a faca e cortei quem não fechou comigo
Agora eu só faço eternos colegas
Não quero novos amigos
A vida tentou me ensinar sobre isso.”

Em Hong He, o talento de Ebony novamente se perde em más escolhas, a começar pelo verso “Faço merda e saio invicta, igual O.J.” — referência ao ex-atleta O.J. Simpson, inocentado de um duplo homicídio mesmo com provas contra ele. Os demais versos também não contribuem, trazendo críticas sociais superficiais. Somado a um beat básico, o resultado é uma experiência fraca — que só não é pior pelo curto tempo de duração (1min47s).

Em Extraordinária, Ebony volta a exibir todo o seu talento. Com flow, beat e rimas bem trabalhados, ela apresenta um lado mais íntimo, refletindo sobre como enxerga a rejeição ao seu jeito de ser — e como isso está diretamente ligado à sua força criativa. Ainda que a faixa tenha deslizes, como no final do primeiro verso, que soa como uma tentativa forçada de alongar a música, a artista consegue equilibrar temas sérios com elementos cômicos e irônicos, como havia feito com sucesso em seu álbum Terapia.

“Ele me olhou torto, quer foder comigo
Mas, tipo, foder comigo, ou foder comigo?
Eu tô confusa, e nem sei mais se ainda tenho amigo
Eu tô confusa, e nem sei mais quando eu tô em perigo”

A rapper se aprofunda novamente em Não Lembro da Minha Infância, um dos pontos altos do disco, abordando temas pesados, como abuso. Sobre uma produção tão sombria quanto sua temática, Ebony apresenta boas variações de flow e uma maturidade que não havia aparecido nas faixas anteriores. O bom momento continua em Triplex — com produção de Larinhx —, onde fala de suas adversidades de forma mais leve e divertida, provando que é capaz de tratar temas sérios com irreverência e coesão.

Kia, penúltima faixa de KM2, repete problemas já vistos: versos fracos, sensação de repetição e falta de profundidade. Algumas linhas soam como se estivessem ali apenas para forçar rima, sem acrescentar ao contexto.

“Se Jesus é jardineiro, a árvore somos nós?
Tentativas, erros, acertos das nossas vós”

E também:

“Eu me vejo como um monge tocando banjo
Mas eu não troco mais beijo com esses marmanjos
Se não me cabe, sem milagre, eu levanto e ando
Qualquer um se assusta com a forma real de um anjo”

A última faixa, Roubando Livros, é curta (1min22s) e funciona como um resumo do álbum. As melhores partes são breves e deixam a sensação de que, se o restante do projeto tivesse seguido essa linha, o resultado poderia ter sido mais consistente. Aqui, Ebony fala sobre dores, solta indiretas e abusa do braggadocio com flow afiado e, o mais importante, de forma coesa — algo que faltou no restante do disco.

No fim das contas, a artista parece ter se tornado refém de seu próprio talento e da expectativa que criou em torno de si. Quando seu nome está envolvido em um projeto, espera-se qualidade; porém, KM2 decepciona. A introdução soa deslocada em relação ao resto do álbum, e as faixas, embora compartilhem temáticas semelhantes, não se conectam entre si, prejudicando a fluidez. Ebony se aproxima de uma caricatura de si mesma, repetindo fórmulas e utilizando referências sexuais que, neste disco, não se integram ao contexto — algo que ela soube fazer muito bem em Terapia. Seus bons flows e escolhas na produção não são suficientes para sustentar o projeto e acabam ofuscados pelos deslizes.

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