Review: Royce da 5’9’’ – The Allegory

Ok, vamos lá. Ascencio aqui, como vão? Royce é um veterano, fez de tudo e mais um pouco no rap: mixtapes, álbuns solos, collabs com os nomes lendários de Preemo e Eminem, membro do infelizmente findado grupo Slaughterhouse (e aqui culpo o chefão da Shady Records), ghostwriter pra Diddy e Dre; enfim, o homem está na cultura há um bom tempo e não o vejo pendurando a caneta tão cedo.

A principal característica que se mantem, e que merece destaque, em todo o seu percurso é a sua capacidade de escrita, o senhor da 5’9’’ é um verdadeiro atleta no que diz respeito a isso. São muitos os adjetivos e todos eles dizem praticamente o mesmo, Royce é um barrista, liricista, ‘spitter’, um ‘Lyrical Miracle’; os ouvintes do MC, quando o são, esperam dele o sumo primordial do rap, linhas que batem forte com rimas quase nunca simples. A habilidade performática de sua caneta é o seu principal atributo e o que lhe garante boa parte, para não falar todo, o seu prestígio e longevidade.

“The Allegory” é seu oitavo álbum (solo) de estúdio e se assemelha aos outros setes em sua grande extensão, não espere um projeto aos moldes “intro + 9 tracks” vindos de Royce, são 22 faixas, 1h 8min de duração. Há um conceito (ou a tentativa de um) por trás desse título, alegoria, segundo o dicionário, é um “modo de expressão ou interpretação que consiste em representar pensamentos, ideias, qualidades sob forma figurada” (guardem o conceito, principalmente a forma figurada).

Diferente do seu antecessor, “Book of Ryan”, de 2018 — onde o MC tinha olhos mais voltados para um ambiente fechado, sua família, ou mais fechado ainda, seu próprio eu — neste novo álbum, Royce está em campo aberto diante de uma longa, e nem sempre assertiva, reflexão sobre a América e seus problemas mais viscerais, tudo obviamente, pelo recorte racial do rapper. “Mr. Grace (intro)” cumpre o seu papel e apresenta justamente um menu de degustação do que virá pela próxima hora: explanações sobre o racismo estrutural como processo de marginalização que dita o futuro do jovem negro, exploração da pobreza pelo mercado financeiro e farmacêutico passando aqui pelo mundo das drogas, violência policial e vida em cárcere; tudo isso, com único objetivo: reforçar a ideia de que aqueles que detém o poder os controlam. Ao final, solta algumas referências clássicas, como a epopeia “Ilíada” e a alegoria do “Mito da Caverna” de Platão, no sentido de que os menos favorecidos são os prisioneiros e as manipulações as sombras.

Daí em diante o álbum começa sua progressão que, em aspectos sonoros, se descreve em linhas gerais com mais facilidade. Royce produziu todo o projeto, praticamente. Ou seja, são características bem firmes: beats simples, mas bem feitos, com bons loops de samples passadistas e baterias que remontam boombaps clássicos em poucas variações ou viradas. Porém, criticar essa suposta produção monodimensional do MC é não entender o espetáculo como um todo, é olhar para a mão errada do mágico já que, como mencionado, a mão certa é a que segura a caneta. Alegorias à parte, mais aspectos produtivos virão à tona quando forem convenientes nessa crítica.

A performance é o ponto alto. O rapper de Detroit, linha após linha, verso após verso, não desperdiça tinta, mesmo linhas de suporte possuem seu charme quando criadas em função de rimas complexas onde nenhuma sílaba final, após a tônica, anda sem um par. O valor lírico é alto seja no braggadocious longevo de  “I Don’t Age”; seja na reflexiva e obscura “Upside Down”, onde uma traço divisório separa homens e suas morais refletidas em comportamentos corretos ou equivocados; mas, principalmente, no posse cut “Black Savage” que, além de ser um ápice produtivo assinado por Royce, dEnAun e Carlos “6 July” Broady, e possuir a melhores variação de bateria e recortes de um sample de matriz africana que dão mais vida acomodando as diversas entregas dos MC’s, além de tudo isso, temos as melhores performances líricas e de flow de Royce, sem falar no panteão de Atlanta: Sy Ari da Kid, White Gold, CyHi e, o pai de todos, T.I. que também entregam seus ‘A-game’, tornando essa faixa a de tom mais épico e, definitivamente, a de maior peso do álbum.

Tratando-se de faixas grandiosas, “Over Come” também merece seu destaque. Multifacetada, a track percorre diversos caminhos temáticos e produtivos, passando a mensagem final de superação e vitória. De “Lost Love” por The Lintons surge um loop arrepiante de vocais que oscilam tons altos e baixos. Sem bateria em diversos momentos, Royce e West Side Gunn, possuem, numa entrega ‘spoken words’, liberdade métrica para discorrerem sobre qualquer assunto que lhes vierem à mente, em uma pegada bem freestyle encontram o equilíbrio perfeito entre técnica e nitidez de mensagem. O refrão é pra cima soando bem em dobras como uma multidão repetindo o mote da faixa. A bateria aparece fazendo a ponte de estilos entre o MC de Buffalo e o de Detroit. Para além disso, com viradas que demarcam partes diferentes da música, fica evidente a ideia de track-colagem/montagem, onde a criatividade de Royce enquanto produtor, mesmo diante de recursos simples, se sobressai.

Alguns nomes convidados já foram mencionados, mas como estes são muitos, precisa-se destacar outros. É evidente que, dado o estilo boom bap saudosista de Royce, MC’s como Vince Staples e o trio da Griselda, West Side Gunn (já mencionado), Conway the Machine e Benny The Butcher possuem boas contribuições. Ashley Sorrell em suas duas participações melódicas é muito bem vinda e aproveitada. Cedric em “Dope Man”, faixa que referencia e, por que não, re-lê a clássica track do grupo NWA, mescla bem sua performance com um ambiente mais ao jazz. DJ Premier (sim, considero uma participação tamanha a influência deste gênio) deixa sua marca característica em “On The Block” com seus recortes e ‘scratches’ que avivam e pagam tributo às raízes da cultura Hip Hop.

Apesar de tantos aspectos satisfatórios, o álbum não está livre de críticas negativas. O mesmo projeto que tem como objetivo acordar seus ouvintes para o real significado das problemáticas do seu país, impulsionado por mensagens como: “Knowledge empowers all you quicker than ignorance disarms you”, contém também pensamentos equivocados que se potencializam e incomodam, muito. O ouvinte atento encontrará linhas que ultrapassam um limite de tolerância (já amplo até demais) com relação a mensagens sexistas como entretenimento do rap, por exemplo a faixa “Pendulum” com uma passagem sobre transar com a “carcaça” da mulher de seu adversário. Já em “FUBU” encontra-se uma, das várias, linhas antivax, onde Royce defende o discurso absurdo de que seu filho desenvolveu autismo por meio de vacinas. O rapper demora para pisar na bola, mas quando faz é pra valer.

Problemas mais técnicos também existem, como na repetitiva e enjoativa “Tricked”; ou em péssimas escolhas de montagem, como o skit “Perspective” onde Eminem passa por maus bocados tentando, copiosamente em sua fala, demonstrar um autoconhecimento superficial travestido de mea-culpa sobre o privilégio branco na indústria fonográfica; também no fato de que não existe uma linha de raciocínio, um diálogo que faça a transição entre as faixas, recurso que tem se demonstrado elemento essencial para obras que possuam um conceito ou uma mensagem por trás, o que mais se aproxima disso são as “irmãs de bass” “Young World” e “My People”, com linhas de baixo que conversam entre si.

“The Allegory” é o título. Você, leitor, se lembra do significado da palavra “alegoria” e do detalhe dito para ser guardado? É bem difícil que sim. Isso por que estas foram informações dadas nos primeiros pensamentos desta crítica e nunca mais retomadas. Essa é a mesma sensação conceitual que o ouvinte deste álbum irá sentir. Royce desenvolve minimamente a ideia em sua intro e logo a abandona para fazer o que sabe melhor, escrever rap. Relembrando o detalhe ressaltado: o uso da figuratividade é essencial para se manter uma alegoria, mas Royce é exaustivamente literal em suas rimas, não há material suficiente para dar a profundidade deste conceito. Tampouco a ideia é retomada no final, como está sendo feito aqui — a última faixa trás uma balada num pedido de desculpas familiar deslocado em todos os sentidos.

Eis o saldo final: se o play neste álbum for motivado pela tentativa de proposta conceitual que o título implica, o ouvinte está diante de um ‘fake deep’ homérico. Agora, se motivado pelas características que deixaram Royce da 5’9’’ na posição confortável em que se encontra no rap, há proveito, relevante até, se os discursos problemáticos mencionados há três parágrafos forem ignorados, afinal de contas, não se pode querer salvar alguém das sombras da caverna usando-se de mais sombras ainda.

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