Salve galera, Vini aqui mais vez e hoje com a imensa oportunidade de escrever sobre “Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa”, a nata do que a capital cearense já produziu. A mixtape carrega linhas cruas que conversam diretamente com seu público alvo falando sobre as ruas de Fortaleza e o crime presente nelas, mas acima de tudo representa o pertencimento e a valorização do lugar em que foi criada. Tendo vencido duas vezes o prêmio Hutúz, principal premiação do Hip-Hop nacional, foi um dos melhores grupos Norte-Nordeste da década 2000.
O grupo cearense, formado em 2005, nesse disco contava com Don L, Nego Gallo, Berg Mendes e DJ Flip Jay, tendo se tornado um dos grupos mais importantes da cena de Fortaleza e do Nordeste como um todo muito por conta desta mixtape atemporal, que foi produzida por Don L com co-produção do Gallo. A sonoridade é composta por carimbó, samba, R&B e reggaetton e outros ritmos latinos e foi lançada em 2007 pelo Dunego records, selo formado pelos integrantes do grupo.
A mixtape percorre uma narrativa sincera das trajetórias de quem vive na margem de locais vulneráveis mas que não se permite ficar ali por muito tempo, e quando não há oportunidades e se precisa da grana o crime pode cair como uma luva para quem for seduzido pelo dinheiro, sexo, drogas e violência presentes de costa a costa da capital cearense. As faixas sempre se destacam individualmente, cada uma tendo sua singularidade ao mesmo tempo que seguem uma coesão dentro do projeto, sendo esse um dos principais motivos para a mix do grupo cearense ser de fato um clássico pro hip hop e uma obra com muita importância para afirmar a qualidade dos artistas que residem fora do eixo RJ-SP. Esse texto vai falar majoritariamente de cinco faixas, que sintetizam a principal mensagem do disco.
“No Melhor Lugar – Intro” conta as histórias e a vivência do indivíduo que está presente na periferia e que conhece as necessidades que a falta de dinheiro cria, e enquanto o crime cai como uma luva para resolver essa situação ao mesmo tempo a música, se destacando em meio a outras possibilidades, pode ser vista como uma forma de implantar um sentimento de orgulho para as pessoas que vivem nestes espaços. Don L ainda deixa claro a necessidade de vender o que dava dinheiro rápido na favela para levantar a DuNego Records e apresentar essa mixtape tão importante pro nordeste.
Durante a obra, a religiosidade dos artistas chama atenção. Em diversos momentos aparece um versículo da bíblia ou uma canção que soa como uma oração, como nas tracks “Enquanto Num Vim”, “Fé em Dobro” e “Justificativa”, representando um mantra para aqueles que estão nas ruas a mercê de qualquer problema para se proteger do mal possível durante as noites sombrias da capital.
Meu Senhor, por favor, perdoa
Só quero amor e coisa boa
Senhor, salva minha mente, me guia
Minha vida, minha firma
Abre meus caminhos e ilumina
Das inveja, dos inimigo, livra
E enquanto ninguém mentir, eu não vou parar
“Enquanto Num Vim” é uma canção de esperança. Don L e Gallo apostam neles mesmos num momento que parecia ser um tiro no escuro, o que vemos atualmente que foi um tiro certeiro. Com versos que expressam muito delicadeza mesmo que com significados ásperos, o que predomina na segunda faixa do projeto é o o instrumental feito com notas de piano, numa batida acelerada que proporciona a ambientação que os versos cantam sobre a celeridade em querer se eternizar na rua e/ou na música, já que nesta faixa o MC conta que as dez e meia tem uma missão com ‘os irmão’ mas antes tem até nove e meia pra fazer a canção que poderia ser sua última:
“1,2,1,2, talvez o ultimo som
Hoje pode ser meu último dom
E mesmo que seje tudo firmão, um lucro bom
Todo som é meu primeiro e ultimo som”
Destaque pro refrão que praticamente resume uma oração do sujeito que está indo fazer uma missão e não sabe o que vai acontecer, mostrando a brevidade e as surpresas que essa vida pode oferecer, mostrando a subjetividade do título da faixa, que pode ser sobre a grana, o sucesso ou simplesmente a morte. Por isso os MCs frizam a importância de entregar tudo que tem a todo momento.
Meu juiz, mais um dia eu vivi
Essa noite, eu sei, pode vir o fim
Enquanto num vim
Faça essa gata feliz
Tim-tim, ela curte assim
Ela diz sim
Enquanto num vim
Jogo o jogo na caça dum lucro bom
Faço todos como se fosse o ultimo som
Enquanto num vim
Don L continua dissertando sobre seu cotidiano onde se encontra 157 nas ruas e os 12 na esquina, e se questiona como pode se fazer bem mesmo vivendo naquele ambiente aparentemente hostil. Afirmando para si mesmo “Eu tenho que vencer” mesmo fazendo o que tem que fazer, por consequencia de viver nessa vida, o dinheiro e o status vem acompanhado.
É incrível a dualidade que essa faixa proporciona entre fortalecer os corre na rua e o corre pra conseguir sucesso na música. “Eu mexo com o que é pago no cash/ no pique Pablo, enquanto num vira um troco no rap”. Nego Gallo nos conta em seus versos que está presente na rua fazendo seu corre enquanto não vira no jogo do rap e conta como foi o dia que se viu no Top 3, por consequência o grupo recebeu o prêmio Hutuz pelas mãos de Caetano Veloso e isso tudo “é a prova cabal que eles são reis em seu quintal”.
Em “Necessário” Don L inicia a faixa com um belo storytelling sobre a correria que é estar no meio do crime, então cada mc mostra seu ponto de vista e como cada um lida com esta situação mesmo sabendo que é necessário quando não há oportunidades. Gabriel (nome de batismo de Don L) fala que não quer cozinhar o crack, não quer segurar num .12 mas ao mesmo tempo quer andar de nike, com “uns pano gringo” e todo status que essa vida traz, atuando nesse paradoxo em que o crime se faz necessário pra levantar grana pra por a música pra frente e poder sair da vida crime. O MC deixa claro em suas linhas que enxerga essa vida como uma profissão e aconselha a saída desta vida a quem tem a opção.
É mole não, se tem opção troca profissão (não)
Não tem opção, firma a tua, firma forte, sorte não
Fica forte, firma bem, firma as glock
E num fica sem, boladão, claro
Coração calmo, sem sentimento, viu? Isso é trabalho
Sente o vento frio, coração gelado
Cê não curte assim?
Tô ligado, mas é necessário
Tá ligado?
Os produtores foram extremamente assertivos no refrão, que é um sample tirado diretamente do vinil de “É Necessário” de Tim Maia, funcionando perfeitamente como uma ponte entre a narrativa de cada MC. Em sua parte Gallo segue a mesma linha de Don L, afirmando que estar no caminho do crime não tinha nada a ver com o que ele realmente ama, a música, mas quando o cansaço o vence só resta buscar grana fácil. Mesmo sabendo que o crime atrai desgraça foi o que sobrou pra eles, então porque criticar?
Mais uma vez se valendo de um sample clássico como refrão, desta vez com “Não é Fácil” de Marisa Monte, a faixa de mesmo título faz a analogia entre o crime e um amor platônico, onde o primeiro seduz com o dinheiro mais fácil e com as drogas, mostrando como não é fácil rejeitar esta vida vendo o conforto que ela pode trazer. Nego Gallo afirma isso deixando mais uma vez claro que está nesse corre apenas por necessidade, mostrando as dores que podem o acompanhar neste caminho.
Se o nêgo tem a manha, se os cana tão nas área
Minha mente tá na grana, a boca tá em alta
Mas a mente não cansa, tem meus irmão nas área
Tem munição, arma e mil razão pra cobra na bala
(Não é fácil)
No choro da minha mãe, as condição do nêgo
Porra, isso me tira o sono
É quando eu paro e lembro
Que o que tem valor não conta
O que o dinheiro não compra
Pensa a lombra, é o que tem menos valor no gueto
Don L mostra a efemeridade e a falta de controle sobre a própria vida ao estar envolvido diretamente com a criminalidade, situação a qual os mcs estão submetidos, apresentando com uma excelente habilidade narrativa as inseguranças, tanto na possibilidade de um futuro melhor quanto em confiar naqueles que supostamente estão do seu lado, sabendo quão descartável é aquele que está nas esquinas (Cê quer ser excessão? Mesmo que o nêgo tombe no chão/ o gueto tem outro guerreiro pronto pra função). Além disso posteriormente canta belas linhas de esperança e positividade, sonhando com a sua “revolução”. Mas quando não há possibilidades não é fácil não pensar nesse caminho que seduz.
Na metade do disco chega “Justificativa”, uma canção de despedida da vida do crime, afirmando que é mais favorável valorizar a vida e pensar no futuro da família, nas mulheres, no rap, e no filho (ainda não nascido na época), lembrando que é preciso enxergar uma luz no fim do túnel. Como já dizia Edi Rock “As oportunidades de mudança/ Tá no presente/ Não espere o futuro mudar sua vida/ porque o futuro será a consequência do presente“, então pra se manter vivo é preciso se afastar do que atrasa e Don L pensa nos pivetes que se inspiram no artista, por isso não pode vacilar na rua.
O instrumental calmo que os artistas cearenses produziram, com o piano somando com a ótima voz do refrão encaixam perfeitamente todo o sentimento que os versos cantam. Essas ótimas junções de instrumental, samples, refrões e versos resultaram numa mixtape que marca gerações até hoje.
Após estas faixas, todas na primeira metade, o disco toma uma nova direção, celebrando uma visão mais positiva, com a maioria das faixas falando sobre amor, sexo (um dos temas do título) e uma vida mais tranquila dos artistas, com grande destaque pra “Costa Rica” e “Amar é Bom”. Apesar disso, certamente violência, dinheiro, drogas e violência eram as questões mais importantes do disco e por isso são as mais destacadas por esse texto, já que, convenhamos, a mix dá material pra um livro inteiro.
Após o fim das atividades do grupo o maior destaque ficou com Don L e Gallo. O primeiro migrou para São Paulo, onde lançou duas mixtapes: “Caro Vapor/Vida e Veneno de Don L” em 2013 e “Roteiro para Aïnouz, Vol. 3” em 2017, enquanto Carlos Gallo lançou em 2019 seu primeiro trabalho, o excelente “Veterano”, que aborda também a cidade de Fortaleza. Vale citar Flip Jay, que segue atuando como DJ e organizando eventos relacionados ao Hip-Hop na cidade.
“Dinheiro, Sexo, Drogas e Violências de Costa a Costa” é o diálogo cru e direto com o público e com os guerreiros que estão nas esquinas, DuNego Records é a identidade do gueto e Costa a Costa é o transmissor da mensagem, entregue perfeitamente por conta da narrativa de cada faixa e do projeto como tudo. Com esse projeto o grupo sem duvida grupo marcou seu nome na história no rap nordestino e nacional, mostrando ao longo destas 23 faixas a identidade das ruas de Fortaleza.