O rap nacional não cresce por causa do público?

Existe alguma base concreta para fomentar essa opinião? Não.

Salve, JH com um texto um pouco diferente do que vocês estão acostumados a ler por aqui. Escrito com base em pesquisa, então cada número que aparecer entre parenteses (X) indica uma referência que aparecerá ao fim.

De tempos em tempos, aparece na timeline do twitter, comentários do instagram ou na mídia afirmações de que “o público” é o que impede que o rap cresça. Com mais notoriedade, surgiu uma fala ainda no primeiro semestre do cantor Ferrugem (1), suposto fã do gênero, dizendo que “o rap só não é o maior segmento do país porque o público que assiste de casa estraga”. Apesar do Ferrugem não ser alguém cuja opinião deva ser muito considerada, esse papo ganhou uma tração na época com um número relativamente alto de concordâncias dentro da cena, inclusive, com artista endossando.

Mas, existe alguma base concreta para fomentar essa opinião? Não. Considerando que “crescer” e “ser o maior segmento” sejam termos que se referem a uma ótica mercadológica e de número de ouvintes, novamente, não. Nem de longe. Mas vamos por partes.

 

Quão grande é o público do rap?

Em termos nacionais, minúsculo. Não precisa ser nenhum estudioso para saber que o gênero mais ouvido do país é o sertanejo e isso se dá muito de longe, mas a questão é que o rap, em nível de público, fica dentro da categoria “outros” na maioria das pesquisas. Segundo uma de 2017, o hip hop não aparece entre os mais citados nem do público geral nem sequer dentre os mais jovens (2). Para estes, o destaque é funk, gênero que mais tem crescido de fato e tomando um espaço que o rap poderia ocupar. No mínimo, somos menos ouvidos no país do que sertanejo, MPB, gospel, pagode, pop, rock e funk (2).

Considerando que cerca de metade da população brasileira ouve rádio diariamente (3), esse segue como um meio de muita importância na formação da cultura musical de grande parte das pessoas. Das 100 músicas mais ouvidas na rádio em 2019 no país, apenas uma poderia ser considerada rap: “In My Feelings”, de Drake, que figurava na 99ª posição na lista (4). E, convenhamos, é uma música pop. Ao todo, 69 das 100 são sertanejas. Falando em gêneros, o rap nem sequer consegue ter sua própria fatia expressa no gráfico.

 

Nos streamings, segmento que vem aos poucos tomando conta do mercado da música, a coisa não muda muito para nós. Segundo pesquisa do ECAD de 2018 (5), o rap não tem nem ao menos 3% do consumo da música no Spotify (maior plataforma), ficando atrás de rock, reggae, pop, “latino”, “dance”, funk e sertanejo, dividindo com todo o resto 12% das audições, das quais, é bem tranquilo assumir que ao menos pagode e forró tenham frações maiores do que nosso gênero.

Indo para o lado das canções, dentre as 150 mais ouvidas no Spotify em 2019 (6), apenas seis eram rap; dentre estas, figuravam os dois artistas mais bem sucedidos do gênero (a ponto de quase nem se relacionarem com o hip-hop para além do estilo musical), Hungria e Projota; três acústicos, sendo dois da Pineapple (Poesias 6 e 7) e um do grupo Oriente, além do hit “Kenny G” do Matue, a única da lista que podemos dizer estar mais próxima do hip-hop de fato (sem um ataque aos demais, voltaremos nisso mais a frente). A título de comparação, Marília Mendonça teve nove entradas nessa lista.

Indo para o meio de consumo favorito de grande parte do nosso público, o youtube também não mostra grandes números. Dentre as 100 músicas mais visualizadas no país em setembro(7), apenas “Poesia Acústica 6” figura no top 50, com a 2ª da mesma série ainda no top 60 e Orochi, Salvador da Rima e Tribo Da Periferia aparecendo já no quarto final da lista. Pelo menos, entre os canais musicais com mais inscritos, estamos no top 10! O 7º lugar da lista é do grande Mussoumano(8).

Todos esse números servem pra ilustrar que o rap não só ‘não é o maior gênero do Brasil’ como está muito, muito longe de tal título; trata-se de uma verdade que temos aceitar. E isso tem motivos muito maiores que “um público que não apoia seus artistas” ou algo do tipo porque, mesmo com todo o apoio do mundo, no final das contas o público ainda é insuficiente. E, além disso, os ouvintes de sertanejo ou pop apoiam os artistas? Vocês veem apoio a cenas locais de cantoras pop ou duplas sertanejas de pouco sucesso tendo suas músicas compartilhadas por ai? Pois eu não. Estes crescem a partir da enorme popularidade do gênero, inclusive, talvez seja por isso que os shows de artistas menores de quase todos os gêneros populares são recheados de covers, algo pouco comum no rap. O nosso público, ainda que pequeno, é mais crítico e mais envolvido com sua cultura se comparado a todo o restante.

 

Então, quais são os motivos?

Bom, podemos resumir em uma palavra: dinheiro. Por mais que muita gente ache que na era dos streaming os gostos são formados de forma mais independente e que as gravadoras morreram, isso não é bem verdade. Por exemplo, do Brasil, os 10 artistas mais ouvidos no Spotify (maior plataforma de streaming)(9) e os 10 mais ouvidos na rádio (10) são assinados por uma das majors (Sony, Warner e Universal) ou pela Som Livre (gravadora do Grupo Globo). E não subestime o impacto da rádio: embora grande parte de nós não tenha este como seu método de ouvir música, 83% da população brasileira ainda ouve rádio de alguma forma e, destes, 91% ouve música (3). Aí entra com muita força o papel das gravadoras, que atuam também como distribuidoras, de forma a garantir que seus artistas sejam, de fato, ouvidos.

Quando falamos de rádio, não tem como fugir do famoso “jabá”. Segundo as informações, os maiores nomes do sertanejo gastam entre 500 e 700 MIL reais por música (11); as gravadoras e artistas de maior porte se encarregam de pagar para que as músicas toquem na rádio. Além disso, segundo Zé Renato Mioto (experiente produtor sertanejo) em entrevista (12), o investimento INICIAL para lançar um artista seria de R$ 2 milhões, cifra que acredito que nem a Pineapple – nosso maior selo – tenha como orçamento total. Como o rap vai competir com estes poderes? Não existe boa vontade da cena que dê paridade a isso.

Além disso, nas grandes gravadoras, a presença do rap é minúscula, a ponto que se dê para citar um por um. Dos 43 artistas brasileiros da Universal, o rap tem apenas Marcelo D2, Projota e Pregador Luo (13); na Warner a situação é pífia: além do produtor Papatinho, o mais perto de rap que temos é UM44K e o MC PK, entre 41 artistas (14); a Som Livre, entre 65 artistas, tem Bivolt, Ret, Edi Rock, Costa Gold, Haikaiss e Dudu em seu catálogo (15). Quem pode-se dizer que olha um pouco mais para cá é a Sony, que, além de ser a distribuidora do Lab Fantasma, tem Karol Conká, Matue, Jovem Dex, Oriente, Konai, Cacife Clandestino e A Banca 021 (16). Nomes como BK’, Djonga, dentre outros que consideramos grandes da nossa geração, não são artistas de uma grande gravadora, estas, em geral, trabalham com os artistas que já possuíam algum sucesso comercial anterior ou que atuam em áreas mais afastadas da cultura e mais amigáveis ao mercado. A grata surpresa e exceção aqui é a Bivolt, assinada bem antes de fazer números.

Resumindo, a título de comparação, por mais que a gente ame o trabalho de selos independentes como Ceia ou Pirâmide Perdida, a diferença de orçamento e influência mercadológica é abissal.

 

3. e por que não se investe no rap?

Ok, eu sei o que muita gente tem em mente para essa ideia: o rap ultrapassou o rock em 2017, nos EUA, como gênero musical mais ouvido do país(17). Mas ele é um fenômeno cultural geral lá muito maior do que no Brasil. Desde pelo menos os anos 90, o rap americano atinge o mainstream de diversas formas, seja com músicas de festa, fetichização da vida de drogas, crimes, e sexo ou, mais recentemente, músicas que falam de amor. Rap com crítica política mais profunda virou muito mais uma exceção, com muito menos Kendricks fazendo sucesso do que Drakes ou Travis’, com sucessivos apelos ao pop. Não é atoa que os números de rappers como Pusha-T nem se comparam aos de um Lil Uzi Vert.

No Brasil, pelo que nós aqui consideramos, isso é diferente. Os principais MCs, desde sempre até hoje, baseiam seu conteúdo na raça, na crítica política e social, em ideias produtivas (ou ao menos que almejam ser), e isso simplesmente não atrai mercado. Claro, temos Emicida que vira e mexe aparece com força no mainstream nacional, mas ele é um Kendrick, que fez isso chutando todas as portas, fechadas novamente após sua ascensão. O mais comum é o sucesso do Projota, que surgiu dessa forma e foi fazer seus maiores números com canções românticas. Djonga está longe de ser o mais ouvido do rap nacional, Bk’ mais ainda. Don L, Coruja ou outros MCs mais incisivos em suas mensagens não conseguem se aproximar de um sucesso fora da cena.

 

5. e como conseguimos esse espaço?

Sinceramente, em 2020, o espaço é possível apenas através do abrandamento da arte. Essa barreira é quebrada por artistas como o Projota, que abandonam de fato seu estilo prévio em prol do sucesso maior – uma escolha, sem julgar certo ou errado – como também existem nomes do tipo de Hungria, Karol Conká e Marcelo D2, que fazem um rap muito mais voltado a sonoridades e temáticas mais populares. Esse abrandamento pode vir pelo acústico (isso não é um ataque), que é uma forma de arte muito menos abrasiva e mais palatável ao público geral, ou por meio da temática romântica, mais agradável a ouvintes de sertanejo, pagode e pop. Isso é potencializado se juntamos os dois, e assim Poesias Acústicas, 1kilos e Xamãs conseguem o sucesso.

Ah, tem outra coisa que atrai mais público: brancos. Não preciso nem tocar nesse assunto. Os artistas mais ouvidos do Brasil são quase sempre brancos, mesmo quando você tira o sertanejo de vista.

Outro conteúdo que realmente faz muito sucesso é o rap que tem uma “busca pela rima mais fodas”, sem nada realmente desafiador e agressivo no conteúdo (que quase sempre é de artistas brancos, né), que muito atrai o público mais jovem. Então, artistas como Fabio Brazza, Haikaiss e Costa Gold conseguem chegar ao sucesso também. Bom, devo dizer que, independente do que eu pensar, essa forma de fazer o rap é um sucesso mais orgânico, números conquistados através do apreço real de um público jovem que se impressiona com isso.

Temos também o rap nichado, que pode atrair demais o público jovem, com o ‘rap geek’ sendo hoje uma cena a parte, assim como os canais de batalha (o que entra muito na ótica do parágrafo acima). Enquanto Djonga tem 1.65 milhões de inscritos em seu canal no youtube, a Batalha da Aldeia já bateu 3.3 mi. 7minutoz, maior canal de rap geek, está prestes a chegar a 10 milhões de inscritos, enquanto a própria Pineapple tem menos de 8 milhões. A música solo mais vista do Djonga, “Leal”, tem 31 milhões de views em 20 meses; em cinco meses o “Rap da Akatsuki” atingiu o dobro disso. Não é de se estranhar que Rodrigo Zin esteja fazendo seus maiores números após a transição temática. Difícil digerir isso e discutir o rap como conhecemos no topo da popularidade do país.

O funk chegou ao sucesso mainstream em peso, sendo o gênero brasileiro mais ouvido no exterior (18) (e ainda, como vimos, longe de estar no topo do mercado nacional), muito graças a duas “entidades”: o Kondzilla, que investiu muita grana em produções de clipes focados na ostentação de riquezas e mulheres (o sonho do brasileiro médio) e foca hoje, nas músicas dos seus artistas, batidas muito mais limpas e uma diminuição do uso de palavrões e, onde necessário, gravação de versões clean; e a Anitta, que se tornou um fenômeno de mercado agregando tudo que for popular à sua música que inicialmente era etiquetada unicamente por este gênero. Ambos acabam por relegar o underground e as bases do funk como algo que serve apenas para se extrair as inovações e “gentrificá-las”.

As fórmulas estão aí. Se fizerem algo semelhante no rap (como até certo ponto está rolando), sim, vamos crescer bastante.

 

o que concluímos?

O rap nacional não cresce por continuar sendo hip-hop. A frase “rap é compromisso”, embora enfraquecida, ainda está presente no nosso imaginário e impede que joguemos tudo para o alto em busca de popularizar e descaracterizar nossa arte. Os EUA mostraram o caminho em busca do mainstream, e, mesmo que a ascensão possa não ser completamente reprodutível, levaria algumas décadas e vários milhões para atingirmos o topo.

Mas, em troca disso, esqueceríamos a cultura e teríamos o nosso estilo apenas como uma forma técnica de se fazer música. Num país como o Brasil, o rap é inimigo das elites, e não tem como fugir: elas decidem quem faz sucesso. Muitos artistas optam por abrir mão das raízes, e eu nunca vou criticar quem quer sair da pobreza para ser rico. Mas, seguindo o que temos como base do hip-hop, serão sempre raríssimas exceções os que atingem o sucesso comercial absoluto. O público não impede que o rap chegue ao topo, o topo que não quer o hip-hop lá. Ao menos não como o conhecemos.

Referências:

1. portalrapmais.com/ferrugem-acredita-que-rap-so-nao-e-o-principal-genero-do-brasil-por-causa-dos-fas/

2. https://blogdobarcinski.blogosfera.uol.com.br/2018/07/24/pesquisa-comprova-no-brasil-o-sertanejo-lidera-mas-o-futuro-e-do-funk/

3.https://aerp.org.br/associados/kantar-ibope-media-lanca-o-inside-radio-2019-e-aponta-que-meio-atinge-todas-as-idades-no-brasil/#:~:text=Conhecido%20anteriormente%20como%20Book%20de,ouvintes%20escutam%20o%20ve%C3%ADculo%20diariamente.

4. https://www.connectmix.com/confira-ranking-das-musicas-tocadas-em-2019/

5. https://www3.ecad.org.br/em-pauta/Paginas/ecad-comprova-sertanejo-e-o-ritmo-mais-ouvido-no-brasil.aspx

6. https://www.metropoles.com/entretenimento/sertanejo-domina-as-mais-tocadas-do-brasil-em-2019-no-spotify

7. https://maistocadas.mus.br/youtube

8. https://criadoresid.com/maiores-canais-de-musica-2019/

9. https://canaltech.com.br/apps/spotify-faz-ranking-dos-mais-ouvidos-do-ano-e-da-decada-veja-lista-156923/

10. https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/saiba-quem-foram-os-dez-artistas-mais-executados-nas-radios-brasileiras-em-2019.html

11. https://tvefamosos.uol.com.br/colunas/leo-dias/2020/01/18/jaba-na-musica-quantos-milhoes-os-cantores-investem-para-fazer-sucesso.htm

12. https://entretenimento.r7.com/pop/lancar-novo-nome-no-sertanejo-nao-custa-menos-de-r-2-milhoes-diz-empresario-06102019

13. https://www.universalmusic.com.br/artistas/

14. http://www.warnermusic.com.br/artistas/#nacional/todos/todos

15. https://www.somlivre.com/

16. https://www.sonymusic.com.br/artistas/

17. https://oglobo.globo.com/cultura/musica/rap-supera-rock-o-pop-como-genero-musical-mais-popular-nos-eua-22253134

18. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/10/funk-e-o-genero-musical-brasileiro-mais-ouvido-em-paises-estrangeiros.shtml

A Inverso é um coletivo dedicado a cultura Hip Hop e o seu lugar para ir além do comum.