A história do hip-hop carioca é marcada por uma multiplicidade enorme. Com influências que vão desde o samba ao punk rock, o rap do Rio de Janeiro construiu identidade própria, tal característica é evidente em suas produções, melodias e letras. Porém toda demo produzida em terras fluminenses sempre teve algo em comum, a singularidade. Nomes como Marcelo D2, BNegão, Black Alien, Speed ajudaram a estruturar os alicerces dessa personalidade regional. Logo após, esse caminho foi seguido por Quinto Andar, Cone Crew, Filipe Ret, dentre outros, responsáveis por estabelecer de forma definitiva a estética do rap RJ. Atualmente novos artistas, com novos estilos, vem experimentando e redefinindo vários conceitos da arte musical do estado. O Covil da Bruxa, coletivo formado por jovens músicos espalhados pelo território, está construindo novas narrativas para essa cronologia. Recentemente um dos membros do selo lançou um trabalho que elucida muito bem esse sentimento, falo do MC/produtor Tarcis e seu álbum Todo Mundo Ama o Sol.
Antes de falarmos sobre o trampo propriamente dito, é sempre importante lembrar o quão forte é a ligação entre rap e territorialidade. Desde os pioneiros nos bairros de Nova York, até chegar na atual escola do rap nacional, cada espaço possui uma forma e conteúdo na hora de representar a cultura. O Rio sempre foi conhecido pelo seu estilo despojado e mais leve, que de certa forma acompanha a música produzida nele. Porém, essa associação é muito ligada às praias e elementos mais fortemente presentes em lugares mais próximos da capital do estado. A Zona Norte, por exemplo, tem uma musicalidade próxima de uma obscuridade, lembrando um som mais cru. Muito disso deve-se ao seu processo de urbanização e por literalmente orbitar às portas do centro do estado.
Tarcis dá seu tom territorial logo na capa do álbum. O MC define e redefine muitos conceitos recriando a foto de Alegria, Alegria Volume 2 ou Quem não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga, disco de Wilson Simonal lançado em 1968. Como morador de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, dá lugar ao clima bucólico característico da região. Ao invés da praia, presente no trabalho do Rei do Swing, o músico carioca fala sobre aos morros da Estrada de Madureira. Essa calmaria e contemplação vão prosseguir por todo o trabalho, construindo uma perspectiva de Rio de Janeiro próxima da realidade e vivência do artista. Ainda assim, a mesa de bar, o varal e a água de coco estão lá para lembrar e simbolizar as similaridades que inevitavelmente existem entre as diferentes áreas do estado. Porém, num primeiro momento é lançada outra perspectiva do que se pode esperar de um trampo feito no RJ. Este é o primeiro passo dado pelo artista em sua jornada para pintar um quadro que represente bem sua visão de mundo, da qual se desprende de alguns conceitos pré-definidos por outras obras.
Seguindo essa estrutura gradual, Tarcis inicia o disco falando de amor. As variações e facetas do sentimento são um tema recorrente dentro do trabalho. Essas declarações são feitas utilizando diferentes ferramentas, sejam elas estéticas, líricas ou menções a grandes artistas que influenciam o imaginário criativo do MC. Começar por esse tema demonstra como o artista estabelece as prioridades de seu discurso. Já que todo o trampo é permeado por essa sensação, ele soa como algo inerente ao trabalho do músico e não como uma escolha de direcionamento. Esta é a porta de entrada do trabalho para uma nova narrativa do Rio de Janeiro, baseada em relacionamentos, sonhos, fé e bem estar. Tudo isso com uma leveza marcada por muito canto e melodias agradáveis e atmosféricas.
A primeira faixa, ‘Mensagem de Amor’, que contou com a participação de Indy Naíse, fala sobre como relações podem frutificar em diferentes contextos e proximidades. Dentro disso há muito sobre como cada um dos artistas entendem o amor , não só o romântico, e todos os microelementos responsáveis por formar um panorama a respeito dele. Há muita manifestação de fé, autoestima e respeito, criando um ambiente musical que se refere o tempo todo a como é bom estar cercado de pessoas. A matéria prima do que é feito não só aqui é o ser humano e como estar em constante troca com quem nos inspira é extremamente enriquecedor. Indy entendeu muito bem esse conceito, entregando um verso maravilhoso em lírica, por ser muito intimista e pessoal, e em performance, com uma entrega cheia de identidade e muito gostosa de ouvir. O próprio encontro entre a MC e Tarcis é um exemplo prático da mensagem da música, com cada um andando em caminhos estéticos diferentes, porém complementando um ao outro. Tudo isso embalados com menções à ‘Marinheiro Só’ de Clementina de Jesus.
E eu pus espada de são jorge na porta
Pra me proteger a ida e na volta
E tem dias que a saudade sufoca
Parece viagem
Mas eu sei que você retorna (Mensagem de Amor – Tarcis)
Muitas das concepções afetivas são feitas primeiramente num âmbito pessoal e individual. Em ‘Todo Mundo Ama o Sol’ Tarcis reflete bastante sobre suas motivações sejam elas a respeito de sua posição como indivíduo ou representante da cultura hip-hop. Tais aspirações também são divididas por quem compartilha com o MC seus contextos sociais da vida no Rio de Janeiro. ‘Beira Mar’ é uma narrativa dividida em três partes de todos os desejos de um artista independente e engajado. Partilhando os versos com VND e pumapjl, as rimas de cada um poderiam se referir a cada participante da música em mensagem, porém com elementos únicos de suas visões artísticas. VND é mais incisivo, escrevendo e rimando em tom de urgência, mas perfeitamente calmo e estratégico enquanto fala sobre o desejo do sucesso por ele ser um instrumento de transformação social coletiva. Já Tarcis, fala sobre desejos artísticos, liberdade e espaço para ele e os seus poderem ser quem quiser. Sua força vem do que ele produz e sua arte é responsável por inspirar o próprio e quem o acompanha. Enquanto os primeiros dois versos podem ser interpretados como desejos para um futuro próximo, puma decide finalizar com uma contemplação do presente. Em um clima bem parecido com seus trampos solo, o MC valoriza sua cidade, seus amigos e a vida em si. Todo futuro brilhante já tem uma semente plantada nesse Rio de Janeiro que possui realmente um lado maravilhoso.
Minha vida é viajar
Muito dos meus não vão aproveitar
Mas se eu parar
Os meno fica sem espelho (Beira Mar – Tarcis)
As vivências compartilhadas com alguém não são feitas apenas de pessoas, mas também de lugares. Como já mencionado, a geografia sempre teve um lugar especial dentro do hip-hop. Em ‘Boa Noite Sunshine’, Tarcis constrói um diálogo de amor que é constantemente atravessado por alguns aspectos do Rio de Janeiro. Porém, isso tudo é retratado de forma natural, servindo de pano de fundo para um história que deixa o rap um pouco de lado e mergulha em um synthpop bem anos 80. Com a participação de Luna no refrão, o MC define uma identidade e perspectiva para sua localidade, enquanto faz uma bela canção sobre relacionamentos. É interessante perceber o quanto esse discurso é demonstrando em referências muito identificáveis e próprias para quem conhece a realidade do RJ. Servindo para atender a dois paralelos, respeitando o conceito mais expositivo do disco, mas ainda assim falando pelas entrelinhas. Uma profundidade aparente desde a escolha temática e de postura, afinal, para acompanhar novas concepções a respeito da cultura do Rio, nada melhor que influências estéticas que procurem demonstrar a multiplicidade musical vista por aqui. Talvez não tenha sido feita de forma intencional, mas essa faixa possui um registro tão singelo quanto ‘São Gonça’, de Seu Jorge. Entretanto, ao invés de São Gonçalo, nosso personagem encontra as desventuras da Baixada Fluminense. Nisso há uma questão paradoxal, que atinge um universo bastante amplo, ao passo que faz parte de um relato bastante particular.
Quarta é foda quando tem jogo do flamengo
Eu passei no guanabara
Comprei um vinho e um queijo
Te esperava com sorriso
Com saudade do seu beijo ( Boa Noite Sunshine – Tarcis)
Tarcis sabe qual tipo de artista quer ser. Ou pelo menos direciona muito bem seu discurso em um caminho bem claro. Sendo uma voz de sua área, ele relata e demonstra como a vida pode ser bonita e muita regada de amor. E muitos desses bons sentimentos existem por acontecerem nas ruas do RJ. Todo Mundo Ama o Sol funciona como um registro dessa celebração e desses bons pensamentos, a materialização de algo que é acompanhado todos os dias por quem está nas idas e vindas nesse local que pode sim ser incrível (a vida e a Baixada Fluminense). ‘Enquanto o Astro Rei Não Vem’ é a última faixa do projeto, fechando magistralmente um ciclo iniciado com o nascer do Sol e do amor. O MC é o poeta boêmio, sempre de olho no bairro, nos seus irmãos e nas suas próprias ideias, pronto para compor de um jeito muito belo sobre o cotidiano. Todo mundo ama o Sol porque ele significa uma chance de fazer tudo diferente, porque acalenta e brilha em direção ao futuro. Tarcis é um exemplo que pode ser mais comum de alguém que compreende as luzes e transmite o bem por meio das palavras.
Vivendo como sonetos dissonantes
O charme de tornar
Os sorrisos importantes
Problemas que pareciam pequenos se tornam gigantes
Botei a cara tapa amor
E nada vai ser como antes