Por Luiz Pedro Pires
Em 1723, o Rio de Janeiro inaugurou a maior obra de sua história. Um aqueduto de 270 metros de comprimento, criado com o objetivo de acabar com a falta d’água da cidade. Com o tempo, o Rio mudou, e as ruas localizadas abaixo dos 42 arcos do aqueduto produziram uma intensa vida cultural, dando luz aos mais diversos movimentos da arte brasileira. Sendo o coração da malandragem, foi ali que o rap achou o lugar perfeito para morar de vez na cidade.
Assim como a Lapa, o rap era a união do conhecimento teórico e prático, da filosofia e do dia-a-dia, do espiritual e da rua. Em 2016, quase três séculos depois da inauguração, um jovem de nome estrangeiro, filho das mesmas ruas, lançaria uma obra que iria traduzir a intelectualidade formada embaixo daqueles arcos para toda uma nova geração. No dia 21 de março daquele ano, Castelos & Ruínas chegava ao mundo, e Abebe Bikila, sob o vulgo BK’, se apresentava de vez para o rap nacional.
Para quem acompanhava a cena naquela época, hoje já tão distante, deparou-se com uma coleção de poemas de visão filosófica, escritos por alguém que olha o mundo entre a revolta e a água na boca. Esse contraste na forma de observar a vida – e se inserir nela – é basicamente a temática do álbum, implícita no próprio título. A dualidade faz parte da própria natureza do hip-hop, que por vir de onde veio, ele entende que para seguir o caminho do sucesso, é necessário saber usar tanto o bem quanto o mal como combustível.
Naquele tempo, BK’ não era exatamente uma novidade no meio. Como cinegrafista do Start Rap e de batalhas de rima da Lapa, Abebe adquiriu um conhecimento valioso de lugares, pessoas e técnicas artísticas em uma cena que já estava em ponto de ebulição. Essa mistura resultou na formação do Néctar Gang, grupo que conquistou o underground unindo o hip-hop com a cultura punk, o proibidão e a sonoridade do trap, ainda pouco comum no Brasil. Crias do Catete, o grupo rodou o Brasil com a mixtape Seguimos nas Sombras (2015), que revelou o Abebe como a grande voz da equipe e um dos MC’s mais habilidosos da cena nacional.
Foto: Reprodução/Instagram
O quarteto, formado por Bril, CHS e JXNVS, que ainda contava com a parceira de nomes como Sain, construiu um nome forte nas ruas, lotando casas de show e criando uma verdadeira torcida organizada que os acompanhava. Porém, em meio a escalada do grupo em gravações e turnês, poucos sabiam que BK’ seguia nas sombras em seu projeto solo. Mesmo já pedindo passagem no Néctar, com sua forte presença, voz, carisma e jeito de cantar que remetia ao funk, o que Abebe guardava para seu álbum de estreia era uma versão sua muito mais complexa.
O BK’ do Néctar era aquilo: cru, intenso e cheio de sede, como todo iniciante, mas ainda uma peça na engrenagem. Com as sessões de C&R rolando em paralelo, ele levou essa sua faceta para o álbum, mas ao entender que agora era o grande protagonista, ele se dedicou a dichavar todas as camadas que estavam por trás de sua jornada interior para o sucesso.
Consequentemente, o eu lírico foi criado como um personagem que atravessa os altos e baixos dessa jornada, absorvendo tudo que o fortalece em busca do objetivo, até que o próprio objetivo se torna um questionamento. Unindo alguns dos talentos em ascensão da época, como os produtores El Lif Beatz, Sain e JNXVS, além de vozes como Ashira e Luccas Carlos, Abebe criou um projeto filosófico que não apenas traz a denúncia aos males da sociedade, mas a estratégia para atravessá-los rumo ao avanço.
Contexto
Avanço, talvez seja essa a palavra. Castelos & Ruínas foi um avanço de muitas formas, principalmente para o rap nacional. Em meados da década de 2010, uma nova leva de artistas veio do underground paulista surfando na onda comercial da internet, e capitaneados pelo selo Damassaclan, conquistaram uma grande audiência nacional. Grupos como Costa Gold e Haikaiss estouraram em números, com um estilo americanizado de rimar e um forte apelo entre os jovens de classe média. Consequentemente, eles acenderam um debate sobre a possibilidade do rap estar se afastando de suas raízes.
De certa forma, a ascensão de BK’ e de nomes como Djonga, Baco Exu do Blues e Froid, entre outros, foi um movimento de resposta a esse fenômeno. Como o próprio Baco disse em seu verso em Poetas no Topo 2 (2017): “o rap tava tipo Michael Jackson, doente e branco, mas não deixamos, nós o curamos”. Em paralelo, a cena carioca se dividia entre grandes sucessos como Filipe Ret e ConeCrew Diretoria, e o underground das batalhas de rima do Circuito Carioca de Ritmo e Poesia (CCRP), que mantinham a cultura viva nas ruas e cresciam através do Youtube, porém sem grande impacto na indústria.
Batalha do Real. Foto: Henrique Madeira
Até aquele momento, não era comum existirem artistas do Rio que uniam o estilo “fanfarrão” dominante no rap carioca, com a poesia mais introspectiva que vinha das rodas e do slam. Mais difícil ainda era aliar ambos em um trabalho coeso, bem produzido e que, ainda por cima, fosse capaz de tornar-se verdadeiramente popular, ao produzir um senso de identificação direta com o público. E foi nesse buraco que BK’ e sua tropa acertaram em cheio.
A obra
Obras de arte contam histórias, e a história é contada através delas. Na Bíblia, a jornada de Davi ao trono passa por muitas vitórias, mas a maldade que o cerca o adoece, e ele confia apenas na presença de Deus como sua guia para se consolar e seguir em frente. Na viagem lírica do álbum, esse processo é ressignificado: ainda que ele ande pelo vale das sombras, ele para pra ouvir o que as sombras têm a dizer, aprende com elas, bebe com elas, mas toma cuidado para não se desviar do caminho principal. Logo, a vivência entre os opostos lhe dá equilíbrio, e essa se torna sua guia.
Nas palavras do próprio BK’, o processo de produção do projeto demorou cerca de três anos, mas a composição das letras durou sua vida inteira, sendo uma coleção de vivências, estudos e sabedorias que ele foi acumulando em seus 27 anos de mundo. No geral, o álbum é uma narrativa de personagens: a vida, a morte, a sorte, o azar, a vitória, a derrota, o dinheiro, o desejo, o rei, a rua, a madrugada. Todos participam da evolução do eu lírico, inclusive a ausência de Deus, que não é mencionada mas se faz presente. Nisso, BK’ mostra uma de suas grandes virtudes como compositor: personificar esses elementos em pessoas que se envolvem com ele, pelo bem ou pelo mal.
“Vida adulta é pagar as contas, mochila pesada nas costas, minhas linhas são minhas apostas”.
A faixa de abertura, Sigo Na Sombra (#1), é um boombap reto sem refrão onde BK’ se apresenta como MC, sua visão de mundo e o caminho que ele pretende trilhar dentro dele, enquanto o clipe mostra ele no caos cotidiano de um dia comum no Centro do Rio. A narrativa de fato começa a se desenvolver em Interlúdio I (#2), onde o conflito do eu lírico com si próprio é estabelecido, seus desejos são revelados e, por consequência, suas fraquezas também.
Ele sonha com a riqueza, o poder e a luxúria, e usa o conto da espada de Dâmocles como metáfora. Reza a lenda que Dâmocles invejava a vida poderosa do rei Dionísio, cercada de ouro, mulheres e festas. O rei lhe ofereceu seu lugar por um dia e, ao aceitar, percebeu que enquanto desfrutava de toda luxúria que aquela vida poderia lhe dar, havia uma espada pendurada na direção de sua cabeça, presa apenas por um fio. Então, Dionísio diz: “Essa espada também pende sobre minha cabeça todos os dias”. Entendendo que toda aquela falsa sensação de poder poderia ser destruída em segundos, ele abdica da posição de status. Essa é a chave para a filosofia de C&R.
“Eu não ligo pro que você tá construindo. Eu posso te ajudar a erguer essas paredes e fuder tudo numa noite”.
Em Quadros (#3), na busca para entender o que quer da vida, ele reflete sobre o questionamento feito por Mano Brown lá em 2002, em Vida Loka Pt. 2. “Viver pouco como um rei ou muito como um zé? Essa ainda não sei responder”. Esse diálogo com seus mestres do rap também se dá na faixa-título (#7), onde utiliza um sample de Canão Foi Tão Bom, do lendário Sabotage. A partir daí, “a vida” se torna uma personagem principal, ainda misteriosa e enigmática, a qual BK’ olha como uma divindade que tem o poder de lhe dar algo, mas só caso ele a enxergue como ela é de fato.
Já em O Que Sobra Disso Tudo (#4), ele assume uma postura ativa e lança uma proposta para “a vida”, e para lhe entregar a resposta, pede que ela o encontre embaixo dos arcos da Lapa, onde ela acontece. Enquanto ele olha para essa divindade, ele reflete sobre como ela enlouquece os que a perseguem, sem entender a proposta real dela. Nas ruas, ele observa quantos se perdem nessa busca, enganados pelas mesmas ilusões de Dâmocles.
Um ponto marcante da poesia do álbum é como Abebe consegue traduzir experiências daquela geração com elementos tão simples e familiares. Versos como “na esquina do bairro bebendo Pérgola, na visão da área tipo gárgula”, em Visão Ampla (#5), seguidos de “cigarros e prostitutas, noite fria, sozinho, mas a madrugada me guia” transportam o ouvinte para esse ambiente, a Lapa lírica, que é, ao mesmo tempo, um cenário e um personagem em si.
Foto: Divulgação/Quora
Para quem começou a frequentar a rua ainda muito jovem e sem dinheiro, uma garrafa de Pérgola – um vinho adocicado – e um maço do cigarro mais barato da banca, eram as melhores lentes para enxergar a madrugada.
Aqui, BK’ segue se questionando sobre as intenções “da vida”, e nota que na sua ausência, “a morte” também se apresenta como personagem. Daí, se estabelece a dualidade de Caminhos (#6), o ponto de equilíbrio do álbum. Aqui, em meio ao convívio com as divindades, ele se vê como um semideus, o elo que negocia entre elas e a rua. Na sequência, Castelos & Ruínas (#7) mostra que agora ele aprendeu a enxergar “a vida” sem maquiagem, como ela é de fato: caótica, traiçoeira, injusta e impiedosa.
Agora, novos personagens surgem: “o rei”, o símbolo da injustiça, a hierarquia artificial dos homens, mas tão frágil perto “da vida”, e “o dinheiro”, a obsessão humana. Atordoado com a compreensão de como as coisas funcionam, ele se vê mais poderoso, mais onisciente, mais divino, e em Pirâmide (#8) e volta às ruas para convocar seu exército, seus irmãos de luta, seu bloco, para desafiar de vez a divindade. Mas aí, de tão traiçoeira que “a vida” é, ela insere outra personagem na história de BK’, dessa vez sem identificá-la. Com isso, de uma hora para outra, ele volta a ser humano.
Amores, Vícios e Obsessões (#9) é um capítulo à parte. Pela primeira vez, ele não é mais o protagonista. Batizada de “ela”, ela rouba a cena e se instala na mente do eu lírico. Ele, que achou que tinha alcançado a compreensão, agora não sabia de mais nada. Do nada, “ela” aparece e o desmonta, revela suas fraquezas, seus desejos e sua vaidade. Agora ele já não sente mais o equilíbrio, mas a dualidade se mantém: “ela” o cura e o adoece, o diminui e o engrandece. Ele mente, mas se torna mais verdadeiro. Pela primeira vez, ele não quer mais desafiar a divindade. Agora, ele almeja “o dinheiro” como qualquer um, mas para que possa aproveitar “a vida” ao lado “dela”.
Mas “ela” também o confunde, e ele confunde “ela”. Ambos estão vulneráveis, toda essa confusão se torna dor, mas o desejo faz com que ambos voltem. Logo, a relação se torna um jogo de azar, ainda divertido, mas aprisiona os dois no vício. Para se libertar disso, o eu lírico precisa deixar ela ir, para não se desviar de seu caminho original. Em Não Me Espere (#10), ele entende que a necessidade o deixou frio, racional, e ao mesmo tempo, vazio. Para alcançar o sucesso e não se perder na nostalgia, a única coisa que ele pode fazer é avançar, ainda que seu coração fique pelo caminho.
“Medalhas e troféus, eu quero mesmo com a saudade”.
Mesmo não tendo mais “ela”, por avançar ele encontra novas companhias, na forma de musas, que ele chama de “sorte” e “vitória”. Aliadas, elas ampliam sua visão, o protegem e o motivam. Mas a presença de suas antagonistas, “a derrota” e “o azar”, o fortalecem. Novamente, “a vida” retorna sua atenção para ele, e aí, começa a chover na Lapa. Um Dia De Chuva Qualquer (#11) começa com BK’ em seu pior momento, descrente de tudo, até de si.
Quem já foi à Lapa em uma noite chuvosa sabe: a sujeira transborda, e as ruas ficam mais hostis para os que não tem abrigo. Olhando a chuva da janela, BK’ se vê cético ao poder, e a ideia de chegar ao lugar “do rei” já não o atrai. Ao decidir voltar para a rua, ele passa sua visão para seu exército, e os alerta que “o rei” às vezes aparece disfarçado de profeta. Ironicamente, ao mobilizar o povo ao redor de suas ideias, ele acaba, lentamente, assumindo o papel “do rei”, pelo ciclo natural da história.
Foto: Divulgação
Agora, assim como Davi, ele chega ao trono, e se prepara para desafiar o divino novamente. Vendo isso, “a vida” chama “a morte”, que até então assistia tudo de canto, para lhe ajudar. Em Interlúdio II (#12), a guerra foi travada, e BK’ saiu derrotado: seus soldados morreram, a Lapa se voltou contra ele e as ruas o engoliram. Como já dito, a figura “do rei”, grande perante os homens, frágil perante “a vida”, e inútil perante “a morte”.
Com isso, ele enfim responde a pergunta de Mano Brown. Diferente de Dâmocles, preferiu ser morto como rei. Mesmo assim, ele segue seu compromisso com o avanço, e promete voltar para alcançar a espada. Assim, a narrativa de C&R se encerra, BK’ se torna humano novamente, mas sua missão está só começando.
Em O Próximo Nascer do Sol (#13), última faixa feita para o álbum, BK’ se reapresenta como MC para a cena, mas agora com uma obra de arte nas costas, sabendo que não seguirá mais nas sombras dali em diante. Triunfante, ele se dirige diretamente ao ouvinte, transformando seu suor derramado em sabedoria para a posteridade. No refrão, que remete à famosa Oração de São Jorge, ele canta uma oração ao avanço, no resgate do proibidão dos bailes, a raiz do rap carioca.
O legado
Ainda que o rap não seja um gênero tipicamente brasileiro, ele faz parte da cultura da diáspora africana. Como tal, assim que ele chegou aqui, ele naturalmente herdou a sabedoria do samba, como um neto que presta atenção ao que o avô diz. No Rio de Janeiro, a malandragem é o princípio intelectual que rege as ruas e os morros, que bagunça e ordena a cidade. Logo, é sempre importante ser representada no rap, e nada mais adequado do que essa representação vir de uma cria de seu berço.
A Lapa, segundo o samba relíquia de Herivelto Martins, é o lugar que “até o rei conheceu, onde tanto malandro viveu, onde tanto valente morreu”. Quartel General dos malandros, território do vício, a Lapa de Zé Pelintra e Madame Satã, de Machado de Assis, de João Nogueira, de D2 e Skunk, agora também era a Lapa de BK’, novo personagem da literatura urbana carioca.
Castelos & Ruínas é um álbum que pertence à madrugada. Ele retrata aqueles pensamentos intrusivos que aparecem durante o rolé, a reflexão que vem quando você escapa para a casa da ficante, ou a apatia que você sente enquanto volta tarde do trabalho. O objetivo às vezes vira nosso adversário, e para quem é da correria, o preço do sucesso é a vida. Porém, na mitologia do álbum, repare que o tal “sucesso” não é um personagem, nem um fim, e sim um caminho. Em C&R, existe começo, meio e avanço, nunca o fim.
Fato é que Castelos & Ruínas se destaca por ser o que é: um álbum. Sua criatividade, coesão, narrativa, simbolismos, construção de personagens, imersão em cenários, situações e, acima de tudo, mensagem. Tendo a dualidade como tema, ele transforma os contrastes e contradições da vida adulta em literatura, e a filosofia da malandragem em educação. Uma Bíblia profana para a juventude das ruas do Rio – e do Brasil.