Para quem se diz a frente do seu tempo, Baco parece há muito anos estacionado no mesmo ponto

Cada vez mais afastado do rap, Baco Exu do Blues aposta no esvaziamento da própria arte para dialogar com o mainstream

 

Diogo Moncorvo, o Baco, é uma figura emblemática para se entender a popularização do gênero rap no Brasil, especialmente nas últimas 2 décadas. Responsável direto pela diss Sulicidio em 2016, faixa que viria a encabeçar os discursos em protesto à uma falta de visibilidade negra e nordestina no cenário, o baiano surgiu como um soco na boca do estômago da indústria musical, disposto a dizer – com sua arte – o que achava sobre ela, doesse a quem fosse doer.  Porém, esse Baco parece não existir mais, ou pior, parece ter se diluído no tempo até que se esgotasse. Hoje, 7 anos após o seu primeiro disco, “Esú”, o rapper demonstra estar muito longe dos predicados que o levaram a ser considerado um dos Mcs mais importantes da sua geração. 

 

Mais que uma mudança de postura, uma decisão de carreira. A guinada do artista para o mercado pop foi tão notória quanto era naturalmente óbvia. Bluesman, seu segundo disco, lançado em 2018, já flertava com a ideia de que o cenário do rap parecia não dar conta de todas as ambições que Baco tinha para sua música. Mesmo que ainda fosse substancialmente crítico na sua proposta, o álbum também buscava encontrar o seu lugar dentro do mainstream nacional trazendo participações de artistas ligados a outros gêneros, como os cantores Tim Bernardes, Bibi Caetano e o grupo Tuyo.

 

O sucesso, tanto de crítica quanto de público, de “Bluesman”, abriu um horizonte de possibilidades, não só para Baco mas para o rap brasileiro como um todo. O prêmio ganhado em 2019 no Grand Prix de Cannes, vencendo nomes como Beyoncé, Jay-Z e Childish Gambino, colocou os olhos do mundo inteiro em cima da produção artística feita pelo rap daqui, ao mesmo tempo que servia como uma chancela da ousadia de Baco, comprovando que era sim possível ser mainstream e ainda ser respeitado como um rapper acima da média – ideias que pareciam opostas naquela época. 

 

Mas,  veio a pandemia do Covid-19 e com ela se estabeleceu uma linha divisória na carreira do artista, um antes e um depois. Em algum momento entre a transição do segundo para o terceiro álbum as coisas começaram a desandar no que tange o refino artístico do rapper. Suas músicas, anteriormente elogiadas pela complexidade de escrita, pareciam cada vez mais descompromissadas em termos líricos. Rimas previsíveis e temáticas abordadas à exaustão, como sua vida luxuosa e sexualmente ativa, fizeram com que Baco soasse caricato e esgotado de novas perspectivas para sua arte.

 

A mixtape “Não tem Bacanal na Querentena”, lançada em março de 2020, com um título, uma capa e uma tracklist tão fora do tom quanto constrangedora, trazia um ponto fora da curva na carreira do artista até ali. Em entrevistas, Baco confessava que o projeto havia sido realizado em apenas 3 dias, durante o período de isolamento social. O que era extremamente perceptível tendo em vista o imediatismo das referências utilizadas nas composições. Os assuntos das músicas refletiam coisas como o resultado do Big Brother Brasil, a ascensão das lives da rapper Cardi B no Instagram e até a insatisfação com as medidas do governo Bolsonaro para conter a pandemia. Pela aleatoriedade do conjunto de músicas o projeto rapidamente virou um meme nas redes sociais, longe de serem minimamente levadas a sério. O que para um artista conceituado como Baco era o pior dos cenários.

 

Porém, o que público e mídia imaginavam ser uma exceção se tornou a regra e, com o passar dos anos, o que se viu foi um Baco cada vez mais distante do rap, dentro e fora da música. Em 2022, veio o derradeiro terceiro álbum de estúdio “QVVJFA?”, que – apesar do título brega – tinha uma proposta muito interessante no seu embrião. Abrir espaço para debater relações de afeto entre pessoas negras, bem como falar de questões de autoestima, era uma excelente premissa. Em teoria, o projeto se apresentava como uma ótima oportunidade para Baco mais uma vez empurrar o rap para um próximo nível. O problema é que o material visual propunha uma coisa e o musical entregava outra.

 

Se “Bluesman” era um disco de rap com referências de pop, “QVVJFA?” era um disco de pop com alguma influência de rap – bem pouca mesmo. Cheio de frases prontas e melodias previsíveis, o álbum chegou a emplacar hits nas plataformas como “20 ligações” e “Samba em Paris”. Um sucesso de público. Mas exatamente qual público? Essa é a questão. “QVVJFA?” dialogava com um público que não necessariamente era consumidor de rap, que não necessariamente estava interessado no discurso do disco. O álbum era um produto vendável no pior dos sentidos. Artificial.

 

As chamadas “lovesongs” sempre estiveram presente nos trabalhos do rapper e esse não é o problema. Baco, desde 2018, “sofre” com comentários a respeito do teor sexual das suas letras, sobre o quanto elas são sexualmente diretas. A questão-problema presente nisso foi como essas músicas parecem intrinsecamente feitas para atender uma demanda  de um público específico, um público consumidor de playlists vazias no espaço, carentes de substância. 

 

Esse movimento mercadológico pôs Baco em contradição com as próprias falas por diversas vezes e em diversos momentos. Afinal, Baco como um dos frutos do ano lírico e do rap contestativo ainda é cobrado por seus posicionamentos a respeito das pautas que dizia defender. Sua parceria com a cantora Luiza Sonza, em meio aos imbróglios judiciais envolvendo um processo de racismo movido contra a artista, foi vista com maus olhos pelos fãs que cobraram uma explicação. Baco sequer veio a público para se pronunciar. Sintomático.

 

A decrescente linha do tempo da carreira de Baco Exu do Blues ganha mais um infeliz ponto com o lançamento do EP “Fetiche”,  que com certeza é um dos piores trabalhos do rapper até aqui. Assim como “QVVJFA?”, Fetiche apresenta um conceito interessante em sua premissa. O material promocional vende a ideia de que o disco irá trabalhar uma visão crítica sobre a forma como pessoas brancas historicamente fetichizam a sexualidade de pessoas pretas – o que não se traduz em termos de música. O que se vê, na verdade, é um Baco tentando cuspir as frases de impacto mais cafonas já vistas na tentativa de construir imaginário sexualmente explícito e resultando em músicas que soam como se ele nunca tivesse encostado em uma mulher na vida. O tiro sai pela culatra.

 

Os escassos destaques positivos de “Fetiche” ficam para as participações. O verso de Young Piva em “limão siciliano” apresenta um vigor jovial que Baco não consegue acessar, por mais que tente. Existe na exploração hiper-sensorial do flow de Piva algo muito genuinamente contemporâneo. As múltiplas e frenéticas camadas de voz trazem uma “sujeira” orgânica inerente aos gêneros que fogem do controle da música Pop, como o Funk, o Pagodão baiano e o Trap, por exemplo. E talvez, essa seja a maior metáfora para a crítica ao trabalho de Baco: soa pasteurizado e estacionado no tempo. 

 

No que tange a sonoridade das produções, o EP surfa na ascensão dos afrobeats no mercado da música internacional, mas  esbarra na incapacidade técnica vocal do artista em oferecer linhas melódicas realmente interessantes. Sem a mesma projeção de voz de artistas como Tyla, Tems ou Burna Boy, o baiano falha na sua proposta de abarcar novos gêneros ao seu arsenal. O que fica evidente na faixa-título. Ou seja, líricamente, Baco não consegue se fazer valer como um rapper contundente e, em termos vocais, se limita a cantar sem criatividade, de forma extremamente mediana e cansativa. 

 

“Fetiche”, ironicamente, apresenta o trabalho mais sem tesão e sem libido do rapper, que parece estar no ápice do seu mau gosto estético e criativo. Nem a colaboração da cantora Liniker consegue aplicar rigidez e substância a esse arremedo de ideias mal utilizadas. Até mesmo a direção artística – que sempre foi o ponto alto dos trabalhos de Baco – aparenta estar deslocada do eixo da obra. No fim, o projeto vai daqui até lá, mas parece parar em lugar nenhum. Baco acaba inevitavelmente virando uma caricatura de si mesmo.

 

O filme que acompanha o conjunto de músicas é outro ponto a ser questionado. A referência estética no clipe “Lipstick Lover” da cantora Janelle Monáe é clara. Porém, diferente da estadunidense, Baco não demonstra estar tão preocupado com as representações e possíveis discursos transmitidos em tela. A frase que termina o mini-filme torna a obra tão perigosa quanto irresponsável. Assumir que, enquanto pessoa racializada, ser sexualmente fetichizado está em algum grau equivalente a expressão da sua própria sexualidade – sem apresentar nenhum pensamento crítico sobre isso –,  prova o quanto Baco não aparenta se importar com a seriedade e profundidade dos assuntos que aborda, e nem sobre o impacto que essas ideias podem ter em seus ouvintes.

 

Pelo que já foi apresentado anteriormente, é possível acreditar que em algum momento Baco fará uma grande revelação, como em um episódio do Scooby-Doo, em que ele tirará sua máscara de gigolô, olhará para a câmera e dirá “era tudo um plano”. Mas temo que o nosso Christian Gray soteropolitano continue derramando seus 50 tons de mediocridade por mais algum tempo.

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