VND: quando as saudades se cruzam

Com bom gosto afiado e maturidade lírica, VND retorna mais forte em 2024

Historicamente, o subúrbio do Rio de Janeiro sempre produziu alguns dos maiores artistas da música brasileira. De Cartola à Almir Guineto, passando por Zeca e D2, a zona norte carioca é o coração cultural da cidade, mas também carrega suas principais contradições. Aqui, a beleza das ruas e de seu povo se misturam com a violência cotidiana, fruto de um projeto de abandono do Estado que se perpetua há séculos. A vivência entre estes contrastes inspirou todos os grandes poetas que passaram por aqui, e é através dessa herança que o rapper VND construiu seu segundo – e melhor – álbum de estúdio.

Lançado no dia 8 de agosto, “Onde As Histórias se Cruzam” é um trabalho que envolve coração. Ele fala de dores, amores, devaneios e nostalgia, mas sempre volta a pôr os pés no chão quando lembra que as ruas não o permitem “andar por aí” apenas preso em seus próprios pensamentos. Tudo isso é embalado por uma seleção de produtores que estão entre os melhores do underground atual, e os feats escolhidos à dedo: Juyè, Sant e SD9. No entanto, talvez o elemento principal da obra seja Marechal Hermes, da onde o cantor é cria, e que serve como cenário presente em todas as faixas.

Curiosamente, o bairro de Marechal Hermes, fundado em 1913, foi o primeiro bairro operário planejado do Brasil. Ali, gerações e gerações de famílias trabalhadoras viveram, deixando suas histórias nas ruas, no boca-a-boca, nas lendas do bairro, e é com a intenção de imortalizá-las que o VND abre o álbum. Em “Quer Contar a Sua História?”, produzida por wavybil, a faixa começa com um trecho do filme Última Parada 174, em que Tia Valquíria pergunta para Sandro se ele quer contar sua história. Aqui, ele versa:

“Um bate bola e um oitão, as histórias do bairro que aprendi com meu tio

Lembrar de algum irmão, lembrar das coisas simples que me fazem mais vivo

Wallace menor bom, eu vou contar tua história, eles vão te ver num livro”.

A produção do álbum é um ponto de destaque. Para quem é ligado na cena, a junção de nomes como LB Único, Gabriel Maré, LP Beatzz, Babidi, CESRV, Luna, ChrisBeatsZN, OgParma e Tárcis, além do já citado wavybil, é empolgante, um verdadeiro esquadrão dos novos talentos nacionais. Cada um traz o seu tempero individual, o que explica a variedade de sons, mas todos servem ao propósito de dar vida à poesia de VND, resultando em um trabalho coeso. Em “Espaço no Peito”, por exemplo, LB Único explora o que tem sido uma tendência recente no RJ: a fusão dos beats de drill com samples da MPB e do jazz, mistura excelente que já foi trabalhada por artistas como Big Bllakk, Derxan e LEALL.

Sendo um álbum introspectivo, essas escolhas musicais trazem a sensação de melancolia, autorreflexão e solidão, o que potencializa os versos do MC. Nesse ponto, VND demonstra como amadureceu como compositor desde sua estreia, “Eu Também Sou um Anjo” (2021). Aqui, fica claro que Vanderson é um cara sensível, mas esse seu lado interno entra em conflito quando o mundo ao seu redor faz com que sua armadura tenha que estar sempre intacta. Na mesma faixa, ele diz:

Esses dilemas, meu amigo morreu ou será que ela volta? / Ou então meu pai que fez um gênio, nunca deu bola”.

Em “Amores de Gueto”, ele usa o conto de Cabeleira e Berenice, do filme Cidade de Deus, para ilustrar como o ambiente cruel que vivemos também impacta nossas relações afetivas. Esse é o primeiro pico do álbum, com a produção de Gabriel Maré e a bela voz de Juyè, que vem forte desde o lançamento de seu álbum “Vinhos e Fumaça” (2024). A cantora merece todos os elogios pelo quanto que ela agrega, lírica e musicalmente, tanto nesta faixa quanto em várias outras icônicas do rap nacional desde que fez sua estreia, tornando-se uma entidade na cena.

“Meu subconsciente anda lembrando que

Amores de gueto não são amores românticos

É inevitável não pensar nesse fim trágico

Cabeleira de raça e morreu empurrando um carro”.


 As próximas faixas são onde VND encontra a melhor versão do seu eu lírico. Em “Solo”, também de Gabriel Maré, ele abraça de vez a solidão que sua carreira traz como consequência de seu sucesso. Quando ouvi o álbum pela primeira vez, “Dissociado” foi a faixa que mais me chamou atenção de cara. Produzida por Babidi, a faixa puxa o freio do drill para explorar um som mais lento puxado para o jazz, com um belo arranjo de piano.

Aqui, VND praticamente recita seus versos como quem pede desculpa por estar distante de si próprio, e ainda se arrisca cantando. Como o nome diz, a música não fala sobre alegria ou tristeza, mas sim sobre aquele sentimento que vem quando você se encontra perdido em si, mas buscando paciência para transformar isso em processo.

“A música é egoísta como solo de piano

E o músico que toca sempre brilha sozinho” (Solo)

“Se eu dissociar não me abandone,
Não se desespere,
Meu coração tem passado por alguns testes”.
(Dissociado)

Nos anos 90, Marcelo D2 lançou sua clássica 1967, onde ele rima sobre suas vivências de infância no subúrbio carioca, uma ideia que VND resgata para si ao longo do álbum. Mas diferente de D2, ele explora essas memórias ao longo das faixas de forma mais emocional, apontando o impacto que essa nostalgia tem sobre sua mente de adulto e artista. Em “Cinzas de Quarta-Feira”, essa saudade bate como carinho: as lembranças do carnaval da zona norte criam um cenário caótico e colorido, exatamente como a cidade se transforma em fevereiro.
Produzida em parceria por Babidi e LP Beatzz, a faixa é uma crônica de carnaval. Aqui, VND e Sant fazem um belo trabalho lírico ao conseguirem descrever esse ambiente com elementos simples: fogos de artifício, máscaras, bate-bola, jogo do bicho e chuva de verão. Trata-se de uma época do ano onde a fantasia e os sonhos são liberados, e nem a crueldade cotidiana consegue apagar. Se o carnaval é uma herança para tantos cariocas, o jeito como ele muda nosso bairro permanece em nossas memórias de tal forma que, mesmo adultos, nunca deixamos de ser crianças quando ele volta.

“É que todo carnaval colore um pouco mais meu gueto,
para cada barricada um outro enredo.”
– Sant

E então, “Frequência (Interlúdio)”, começa. Aqui é o ponto de virada do álbum, onde as ruas te lembram que andar pelo RJ não é o mesmo que andar pela Disney. O boombap produzido por CESRV muda o tom do projeto e leva a narrativa para um lado mais sombrio. Aqui, a reflexão interna se cala pelo barulho da pressão externa, tão familiar quanto a frase: “tu é da onde?”. Em seguida, “Te Falta Ódio” segue a mesma linha, mas diferente de “Cinzas”, aqui a saudade bate como um soco no estômago.

Em mais uma produção de Babidi, VND narra algumas de suas memórias de infância, lugares, jogos e tudo que o fez ser quem é, no entanto, sua voz carrega uma dose de dor, o tipo de dor que só quem ama sente, daquilo que foi perdido e virou apenas saudade. O fardo daquele que viveu para contar as histórias é pesado demais para carregar, mas ciente dessa responsabilidade, ele transforma essa dor em arte, que mesmo estando presente em todo o álbum, é aqui que ela transborda.

A faixa conta com uma das melhores produções do disco, que sustentam os versos fortes com notas de piano repetidas e arranjos de violino. Somada com “Dissociado e Cinzas”, além de mais uma por vir, ela mostra que, nessa seleção de produtores, Babidi joga de camisa 10. Um ponto importante sobre esse projeto é que se trata do primeiro álbum completo lançado pelo selo independente Exódia Entertainment, formado por SD9, Lifee e o próprio VND. Nome forte no underground atual, o selo lançou o EP GIG (2024) como seu cartão de visita, e agora tem nesse álbum seu grande trabalho artístico para atrair de vez os holofotes da cena.

“Perdi uns amigo e tô tentando não perder o amor,
merdas nas esquinas, tudo isso foi o que me formou”
. (Te Falta Ódio)

Contudo, a parceria entre VND e SD9 vem de outros carnavais. Desde o Brasil Grime Show e 40º.40, a dupla sempre rendeu bons frutos, e “Moletom Freestyle 2” não é diferente. Produzida por Luna, que fez um dos melhores beats do álbum, VND resgata alguns versos da primeira versão da música, na qual ele rima sobre a trajetória de um conhecido que teve o mesmo destino de vários jovens pretos tem no Brasil. Com a adição dos versos de SD9, uns diretos e outros bem-humorados, a faixa é uma pedrada que, apesar de contar histórias reais, é legal ver a dupla – que hoje também é de negócios –  curtindo o processo de fazer músicas juntos.

A faixa 10, “Eu Vim de Lá”, segue o rumo das anteriores. É uma canção repleta de questionamentos sobre sua área, sobre as pessoas que vivem lá e também como suas vidas e sonhos são tão limitados pela realidade do bairro. Ele ainda usa a metáfora: “São mais de mil palhaços nesse salão, e nenhum deles sóbrio, enquanto a dupla Chris Beats ZN e OgParma sampleam um trecho de Máscara Negra (1967), tradicional marchinha de carnaval composta por Zé Keti.

“Era eu e um amigo,
planejando sonhos na linha do trem,
compartilhando dores,
Quem vivencia o mal, como é que colhe o bem?”


 Já na reta final do disco, “Iluminado” chega como um sopro de ar fresco e otimismo. Produzida também por Babidi, a faixa conta com excelentes instrumentais para que VND brilhe como o artista predestinado que é. Seguindo a máxima dos Racionais de que “até no lixão nasce flor”, ele usa a música como incentivo para o avanço dos seus, como um recado de quem já passou por tudo isso, achou sua paixão, e agora tem recursos para inspirar as pessoas.

Como saideira, a faixa-bônus “Dinheiro Nunca Sai de Moda”, lançada ainda em 2023 com a produção de Tárcis, fecha o álbum com chave de diamante. Com um flow que remete ao BK do velho testamento, a canção transmite a paz do coração de quem deseja uma vida melhor, e de quem se organiza para consegui-la. Aqui, tudo é sobre avanço, seja o avanço da prosperidade financeira ou do avanço de sua própria mente e de sua paz interior, o que faz com que ela seja perfeita para finalizar um álbum que carrega tanta luz e trevas dentro de si.

Tentaram resgatar de mim coisas que eu não me lembro” é um verso que me chamou atenção. Como bem escreveu Jota Lima, um amigo e referência, em seu texto ‘Pensando coisas’: uma reflexão pessoal sobre “Dinheiro Nunca Sai de Moda” e a ambição pela simplicidade: “as pessoas que fizeram parte da nossa vida se apegam ao que conheceram e se fecham para o que você pode ser agora. É preciso perceber que o que foi esquecido está neste lugar por um motivo. Se considerarmos que nossa versão atual é melhor do que a anterior, entenderemos porque rompemos com esse passado”.

Nesse ponto, penso que a maturidade é, além de entender que você possui a liberdade de evoluir e ser a melhor versão que você quer ser, é preciso que a mesma liberdade seja reconhecida às pessoas que fazem parte de nossas vidas. Ainda que nossos traumas, dores e decepções constituam partes importantes de quem somos, é necessário que saibamos enxergar em nós – e, principalmente, nos outros – o poder de mudança sem que os aprisionamos em seu passado.

Acredito que essa mensagem tenha sido escolhida por VND como a sabedoria que ele quis deixar para seu público. Neste álbum, ele mostra várias facetas: o artista das ruas, o guerreiro do subúrbio, o mensageiro de quem já se foi, mas nenhuma brilha mais que a do Vanderson, pela forma como ele consegue ser honesto sobre si mesmo com todas as responsabilidades que um MC de sucesso carrega.

Eu sempre achei que o rap encontra sua melhor forma quando permite que seus profetas mostrem quem são, o lado vulnerável que lhes fazem humanos e que, consequentemente, os aproxima do povo. E é com esse acerto lírico, embalado pela excelente produção e variedade sonora, que VND se coloca de vez como um dos nomes mais importantes da cena atual. “Onde as Histórias Se Cruzam”, tem pouco menos de 30min de duração, mas soa como uma viagem emocional: um trabalho sensível, mas com a casca que só os que vivem nas costas do Cristo Redentor possuem. Golaço de VND e de seu time de produtores, artistas e amigos.

 

Melhores faixas: Dissociado, Cinzas de quarta-feira e Moletom Freestyle 2.

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