Aqui é o Shaq. Então, você é a mariposa ou a mosca? Não é muito comum iniciar uma review com uma questão, porém essa pergunta permeia toda a experiência no novo trabalho de BK. Em “O Líder em Movimento”, há uma miríade de pensamentos e uma quantidade ímpar de maneiras e interpretações que podem ajudar a concluir o questionamento acima. Mas, antes de entrar nas minúcias sobre o sucessor de “Gigantes” e terceiro trabalho de estúdio de Abebe Bikila, faz-se necessária uma análise de todo um contexto explorado pelo artista (propositalmente, ou não) desde o começo de sua carreira.
O início é pela arte de capa (contracapa, e sua direção), João Vitor Medeiros assina a direção de arte e nos apresenta um conceito que, antes mesmo de ouvir o trabalho, já possibilita uma ideia do seu conteúdo. A construção desta noção se vale de ares soturnos, identidade visual preta e branca, uma tipografia muito comum na cultura do Black Exploitation (tome o filme “Shaft”, por exemplo), e um ambiente conspiratório (aos olhos do Inimigo Comum) interno e particular, tal qual os movimentos negros, que borbulhavam no início dos anos 60 na América de líderes revolucionários como Malcolm X e Huey Newton. Tudo isso contribui para a ideia principal explorada neste álbum, que possui como objetivo trazer a visão de um líder e seus atributos abordados por rápidos, porém concisos, 36 minutos muito bem distribuídos por 10 faixas.
Diante de toda essa carga, como já revelado, são dois os caminhos a seguir: do começo ao fim e do fim ao começo, o que indica uma dicotomia/dualidade há muito explorada por BK; isso pode ser entendido como uma manutenção de sua zona de conforto na repetição de algo já executado anteriormente, contudo, quando cria algo em certa maturidade e domínio de ofício, mesmo dentro de um espaço já explorado, o rapper mostra que é possível apresentar inovação e novas perspectivas. No início do projeto, dependendo de qual forma o disco está sendo ouvido, o ouvinte pode observar um MC muito agressivo ou extremamente pacifico, em uno com seu eu lírico.
Em “Movimento”, faixa inicial com intro de Polly Marinho e dobras de CHS, são instigadas reflexões acerca da violência direcionada ao povo preto, a queda de todos os que lutam por suas causas, ganham notoriedade e alcançam posições de liderança. Na produção, JXNV$ entrega um beat concentrado de 808 marcante e sample de coral que lembra em muito uma cena dramática com canto gregoriano, isso possibilita que um grande destaque recaia sobre o delivery pontual do MC carioca. Já na outra ponta, onde ocorre a faixa final “Universo”, podemos ouvir um BK muito mais em paz consigo mesmo, ciente de todas as noções do ambiente que o rodeia e, além de tudo, preparado, completo. Assinando a produção, Nansy Silvvs traz uma batida muito mais dual, ora calma, para o MC destacar seu domínio sobre o próprio ser, ora agitada e bem uptempo, onde age a vontade e a força do Universo. Por alto, nas duas pontas existem ótimas tracks catalizadoras de sentimentos diferentes; na ordem normal, como já dito pelo diretor de artes, há a preparação para algo, talvez um discurso, que está por vir; já no inverso, é expressa a consequência direta disso, uma regência quase divina do líder para com o seu povo. Retomando e desenvolvendo o já dito, existe uma difração de pensamentos já característica de BK, porém, levada a um novo extremo: ao invés de rimar “Eu sou querido no céu/Eu sou amado no inferno”, ou ainda, “Crianças atrás de armas se tornam gigantes/Crianças atrás de telas se tornam gigantes”, o rapper agora entrega duas perspectivas de pensamento diferentes, representadas pela agressividade no chamado para ação e pelo autoconhecimento para a dominação do meio, ambas culminam no mesmo propósito, o seu objetivo maior.
Após desenvolver seu manifesto de abertura, BK volta às origens em “Bloco 7” citando as gírias que trouxeram prestígio e impulsionaram a forma e maneirismos da banca homônima à faixa. No entanto, mais do que uma homenagem ao coletivo que colocou o artista em evidência, a track vem com um senso de alerta, e, quando ouvida no sentido contrário da tracklist, passa uma impressão de preparação para a tomada, um verdadeiro clímax, permeada por uma produção que a sustenta bem agitada, como visto no destaque abaixo, linhas nas quais o MC alitera o fato de, apesar de ser popular como a droga mais vendida e lucrativa do planeta, é necessário trabalho e manutenção para ambos os lados desta metáfora; sem “passar pano” para atitudes erradas, e sempre preparado para lidar consigo e com seu inimigo — um paralelo com o discurso do Malcolm X em LA, sobre brutalidade policial, pode ser levado em conta.
Mandamos e trabalhamos
Os chefes e os empregados, mas não passamos pano
Vendendo igual Coca-Cola, tudo que eu rimo cola, é que eu só rimo coca
Dominar o mundo? Não brinque, é fácil
Contra os cara’ que tem menos cérebro que o Pinky
Na literatura clássica da administração, há diversos autores que atribuem n características necessárias para a composição de um bom líder, sendo duas delas a capacidade de observar o ambiente que o permeia e a de explorar oportunidades quando as mesmas se apresentam; levando isso em conta, um paralelo direto é traçado com a continuação “Porcentos 2”, track que de forma mais explícita desenvolve este call-back a um projeto anterior. Em sua primeira versão, BK é muito mais literal na execução, sendo cobrado e abordando valores materiais; já neste novo episódio, apesar de abordar o dinheiro e o ouro diretamente, é bem mais subjetivo. A nova música traz muitas abordagens ao Black Money tal qual um investimento, regido pela noção coletiva de que se todos estão bem, então o eu lírico também está, figurativamente criando oportunidades que rendam os retornos dos investimentos feitos e citados na primeira parte do disco anterior. No quesito musical, a faixa também apresenta, no geral, a maior diversidade do projeto. Ainda que puxe muito para samples de jazz, o time de produção encabeçado por JXNV$, consegue exprimir uma gama criativa de variações que mostram muito bem suas referências. Desde riffs mais ousados de guitarra, ainda mais presentes e bem distribuídos que no antecessor, até misturas com o funk carioca e também muitos beat switches que não são simplesmente jogados, todas as viradas, além de servirem como suporte para o delivery no momento, também significam alguma mudança de direção na execução do disco como um todo, adicionando a coesão do álbum enquanto conjunto.
O maior exemplo deste último recurso analisado está na belíssima mudança de instrumental em “Poder”, onde Deekapz cria um ambiente lento e sombrio e, com um raio, a atmosfera, mantendo sua essência, vira para um bem colocado sample melódico de vocal puxado ao Soul. Este momentum é muito bem aproveitado pelo MC, que continua a desenvolver o que se apresenta como, possivelmente, a track mais significativa do trabalho. Nela, tudo se divide não apenas nos mesmos dois sentidos que norteiam o projeto, mas também em um terceiro, proporcionado por uma ótica estrutural: do inicio ao fim, esta virada demarca um declínio, não de qualidade, mais sim narrativo, onde o Líder o trata como um objetivo final alcançado e se vê embriagado pelo poder; do fim ao começo, a passagem apresenta o eu lírico ao alcançar o primeiro de seus objetivos, o início de uma crescente que o habilita a proporcionar o bem estar de seus iguais, aliado ao seu autoconhecimento e domínio do ambiente; ou ainda, como o cume do projeto, onde as duas pontas se encontram e coexistem.
Abordando a parte técnica, mais especificamente a caneta, como já citado, é clara a zona de conforto enquanto composição, mas, dentro do contexto geral do rap brasileiro (sendo o homem um produto do meio) há muitos nuances na cobrança por inovação de um artista, uma vez que, em boa parte do tempo, o público médio responsável em grande parte por impulsionar e fazer girar as engrenagens do jogo não absorve em sua totalidade a proposta de uma peça artística, por isso, essa repetição de temas e abordagens executadas de maneiras distintas vem para suprir, mesmo que de forma não completa, uma demanda que sempre anseia pelo novo.
Uma vez em voga esta perspectiva, BK coloca em jogo rimas simplórias, sem esquemas mirabolantes e técnicas complexas, mas, ainda assim, bem escritas e executadas. Praticamente não há desperdícios e as mensagem passadas costumam ser efetivadas por dois, talvez três, entendimentos. Não está aqui (e também não há mais espaço para) aquele BK de “C&R” que rima “Camaleão/Calma leão”, apesar de ocorrerem execuções parecidas, porém mais assertivas e sonoramente agradáveis, como ainda em “Poder”: “Aqui eu que apito, eu que tô apto/Eu ganhei livre arbítrio do árbitro”. O mesmo ocorre com a delivery do artista, que se harmoniza bem com a forma de escrita e aumenta o replay value do projeto como um todo. Por vezes, o MC interpreta algo mais agressivo abusando de dobras para aparentar um poder na voz, em outras, predomina uma entrega mais despojada em que brinca com as rimas e faz parecer fácil compor.
Mais ao lado sonoro, a mixagem, ainda que muito boa como um todo, em alguns pontos específicos e muito rápidos, por vezes desfoca a voz do interlocutor, algo que aparenta não ser proposital, mas incomoda um pouco. Apesar de não prejudicar a audição, são pequenos momentos que destoam da maior parte que costuma ter grande qualidade durante o play. Este inclusive, apresenta também uma melhora significativa na dicção do MC, ao emendar muito menos as palavras e se expressar de uma maneira mais clara que em seus projetos anteriores, props ao BK.
A produção, propriamente dita, é muito mais diversa no quesito samples, e dá um destaque menor às baterias quando comparada aos seus irmãos mais velhos, revelando um aumento na experiência musical dos envolvidos. Os instrumentais compartilham de uma estética minimalista e detalhista, com elementos bem dispostos e muita utilização de vocalizações como composição instrumental. Nota-se também um beat picking diverso, apesar de não muito esparso no espectro musical, mas que, de certa forma, denota uma maturidade em dar o braço a torcer para certos tipos de execução. Como por exemplo, o fato de não termos nenhuma participação explícita obriga o MC a fazer todos os refrões, mesmo aqueles fora do seu domínio vocal, o que abre espaço para novas audiências.
Por fim, deixada de lado toda a arquitetura e formas de ouvir, pode-se notar um molde já batido na organização principal do projeto. Há uma certa maneira de agradar os ouvidos e uma sequência de tracks repetidas a exaustão na cena, e não é diferente aqui. O MC apresenta suas dez faixas sem muita inovação, tal como um prato consagrado que já sabemos como vai sair da cozinha e, apesar de ser bom, não impressiona. Salvo o fato de envolver a narrativa como um elemento de montagem e disposição das faixas, é previsível o posicionamento das tracks que orbitam “Poder”, por exemplo. A progressão em “Amor” e “Visão” prepara a construção para o meio disco da exata mesma forma que “Megazord” e “Pessoas” a atenuam. Para alguém com o nome, peso e status de BK, estas são cobranças e anseios plausíveis.
Em suma, sem dúvidas, “O Líder em Movimento” é um grande projeto, com grandes ideias e, apesar de não possui nada que seja “revolucionário” no sentido mais cru da palavra, entra para o catálogo de grandes obras e, possivelmente, se apresenta diante de nós como a melhor execução musical de Abebe Bikila. Somada à maturidade musical do artista, este é o disco mais coeso, menos enjoativo e mais diverso do MC carioca. Indo além, por mais que, em alguns casos, repetir o time de produção de um projeto possa ser interpretado como uma estagnação ou um passo atrás, neste novo álbum, se faz clara a evolução de todos os envolvidos.
Respondendo a dicotomia da mosca e da mariposa, não importa em qual você se vê, mais vale o ponto de vista e o contexto de ambas visando o objetivo de dominar o mundo ao seu redor, seja atraído pela luz ou no topo da merda.