Salve, JH de novo. Em seu quarto trabalho no ano, e sétimo nos últimos dois anos, Sidoka dispensa apresentações. E também, não temos mais o que escrever em uma introdução que já não tenhamos escrito, então vamos pular essa parte.
A essa altura todo mundo já tem sua opinião bem definida sobre o mineiro. Muitos amam, principalmente os fãs de trap, e muitos odeiam completamente, tendo se tornado uma grande tendência nas redes sociais em certas parcelas da cena falar negativamente dele sempre que possível. E isso também é compreensível: o artista criou um estilo muito próprio esteticamente, sonoramente e na forma de se portar, sendo algo mal visto, principalmente quando se faz sucesso sem entregar músicas que estejam remotamente à altura da sua popularidade.
De fato, em seus trabalhos anteriores, Doka se perdeu completamente no personagem e virou vítima de seu próprio meme, forçando esse personagem infantil (elevado à décima potência em faixas como a terrível “Kawasaki Ninja”), vocais excêntricos e uma dicção ininteligível. Ao mesmo tempo, nos três trabalhos de 2020, ele raramente atingiu seus melhores flows, o alto nível de energia ou a sobreposição de vocais, fatores que o deram notoriedade e o fizeram surgir como uma boa novidade em seus primeiros projetos, principalmente no EP “Sommelier”, seu ápice. Pela primeira vez, e honestamente com certa surpresa, podemos dizer que esse novo trabalho, “Espelho Infinito”, é uma volta aos trilhos para o MC.
Nesse disco, Sidoka aposta em algo mais limpo. Na maior parte do tempo sua dicção é bem mais limpa, não deixando adlibs nem flows mais rápidos apagarem seus versos. “Preparado Para O Futuro” é um bom início, com um refrão agradável, flows que variam com mais naturalidade do que vinha sendo e, até quando tenta algo mais puxado para o mumble, não deixa de ser compreensível, acompanhado de um bom beat de Palaze. A segunda faixa, “Deslize”, mostra como o MC se destaca em tracks em que possui menor responsabilidade e cuida só do refrão e um verso; aquele é bom e este bate facilmente as fracas participações de Dogor e Pexande.
A seleção de beats mudou um pouco, saindo de uma estrutura repetitiva de beats com quase sempre um loop de piano e uma pegada soturna. Dessa vez, faz algumas apostas em sintetizadores para carregar o clima e 808s fortes, como na ótima “Mais Chato Que Nunca”, que volta a uma pegada mais dinâmica e produz um belo banger, com o MC passeando no beat com bons flows e um baita refrão. “Checklist´” é outro instrumental interessante nessa mesma linha, com uma performance dinâmica e uma caneta interessante do MC.
Beats com violão e flauta também aparecem bem no disco, a exemplo do que deu alguns destaques no “Language”. “João e Maria Caçavam Demônios” traz Pexande com a melhor participação do disco em um excelente e longo refrão, dando valor à track apesar do verso fraco do anfitrião. “Leslie” é talvez a mais interessante do trabalho ao somar o que de melhor tem no disco: o beat é bom, com 808s fortes, violão e sintetizadores carregando o clima e Doka explorando todos os espaços, com trocas de flow e um refrão bem chiclete.
O trapper até consegue trazer boas tracks puxando um lado mais sentimental. O maior destaque nessa linha é “Maldição”, uma faixa romântica em que o MC põe um personagem carismático, com uma escrita acima da sua média (e do trap, quando mira nisso) , entregando material de hit em cima de mais um beat de violão.
Tipo rodeado de mulher, prеciso de uma só
Rodeado de interesse, ninguém vem interior
Eu lembro de você, menina, a noite anterior
Ah, lembro do meu vulgo, do meu nome fazer
Mesmo eu te dando ideia, eu não tinha nem ideia
Que você daria ideia pra um moleque como eu
O que faz esse disco evoluir é como Sidoka consegue equilibrar suas características mais marcantes, cuidado em falta nos outros trabalhos do ano. O autotune, embora não seja nada de destaque, adiciona detalhes aqui e ali, com raros momentos a mais; o exagero em piadas no meio de versos também não está mais aqui, com essas falas aparecendo só para adicionar ao carisma; os adlibs surgem sem tomar a frente do verso, e a energia em faixas como “Replay” é muito bem-vinda também. Pela primeira vez em algum tempo, vemos sinais fortes de evolução no trabalho do MC.
Mas o disco também deixa muito espaço para crescimento. Doka segue insistindo em buscar type beats de Youtube, o que é impressionante pelo seu tamanho no país. No Brasil, certamente existe legião de produtores que matariam para trabalhar com o trapper e isso deveria ser explorado. Muitas vezes a mixagem dos beats deixa demais a desejar por essa prática, minando o seu potencial sonoro, como o de “Leslie” e “Sempre Vai Amanhecer”, entre outros.
Além disso, sabemos que a caneta dele não vai ser nada especial, entregando linhas bem estranhas aqui e ali e alguns versos que vão e vem sem chamar atenção. Mas, o grande problema da performance do MC está em algumas inflexões vocais, principalmente no final dos versos. Doka não é nenhum Young Thug, e consegue ser bem irritante. “Farfetch” é a faixa em que ele basicamente decide explorar isso ao máximo como uma forma de “redução de danos”, em que ele usa a sua voz mais fina e irritante no refrão e, no verso, balbucia em alguns momentos, além de abusar dos adlibs. É facilmente um descarte nesse disco e poderia estar nos trabalhos anteriores, em que não destoaria do resto.
Mas o destaque negativo vai para “Fodas Hoje é Quinta”. E nem é culpa do Doka. O refrão é bem decente, o verso é interessante e o beat (um raro momento em que há um produtor realmente envolvido, DogDu) também é agradável. O problema vem pela segunda metade da track, quando entra o convidado, Zemaru. Pelo amor de Deus. Seria possível escrever um texto sobre esse verso. Ele entra com um flow absurdamente tedioso e um autotune bem incômodo, mas aparentemente vai mudar depois. E muda, só que para pior. É doloroso quando a mudança no delivery vai para algo mais agudo ainda com o tune, depois força uma repetição que parece eterna das frases “pra lá e pra cá” e depois “ela quer sentar”, e, após isso, no final, ele tenta uma voz mais infantil (talvez mirando em Playboi Carti), mas acerta mais é na voz do pateta (da disney). Esse verso é tranquilamente o pior do ano. Impressionante que ele gravou isso, ouviu, achou bom, mandou pro Sidoka, ele achou bom e colocou na track. Como ninguém barrou isso no processo? Faltam adjetivos para adequadamente qualificar esse verso. E o Zemaru não é um MC ruim, longe disso, o que só aumenta o espanto.
Ao todo, o álbum é bom. Não bate os primeiros três trabalhos de Sidoka, mas não é ruim como os três últimos, com sinais de evolução e uma maior seriedade no seu trabalho, o que é muito bem-vindo. “Espelho Infinito” é a luz no fim do túnel na carreira do trapper, e, embora ainda não seja a saída, mostra que tem um caminho a se seguir. Agora é aguardar e torcer para que ele siga essa direção.