Review: Matéria Prima – Visão

Salve, JH de novo. Thiago Augusto, o Matéria Prima, é um ícone no rap underground e um dos nossos pioneiros, tendo atingido notoriedade no Quinto Andar no início desse século. Já quinze anos após a dissolução do grupo, Matéria segue fazendo seu trabalho no hip-hop fora dos holofotes: esse é o quarto trabalho do MC nos últimos quatro anos. Dessa vez estendendo sua veia colaborativa para trazer a produção de niLL O Adotado, um dos (se não o) mais criativos nomes da nova geração. “Visão”, seu último lançamento, é o trabalho mais desafiador que Thiago teve até aqui.

É desafiador porque niLL tira qualquer liricista da zona de conforto. Longe da estética ‘bem boom bap’, Matéria tem que se adequar a algo ainda mais fluído e inovador que a estética jazz-rap do já muito bom “Rascunhos de Um Momento Conturbado”, é necessário que o MC embarque nesse emaranhado de ideias que é a musicalidade d’O Adotado, misturando house, vaporwave, lo-fi e o que mais vier na ideia. Enquanto o produtor faz um trabalho espetacular ao trazer tudo isso de forma coesa, o MC, apesar dos escorregões, consegue se encaixar muito bem.

As três primeiras faixas trazem uma boa síntese das qualidades e defeitos do disco. Matéria, além de rimar, tem uma bela voz e consegue segurar de forma satisfatória os momentos de canto ou entregas mais melódicas, como na excelente intro “Satisfação”, onde passeia por um beat que, como vimos nos próprios trabalhos do produtor, usa instrumentos como sintetizadores, cordas, teclados ou vozes para dar, no fundo, a ambientação para as músicas. Nesse caso, parece ser um violino que carrega o beat.

“Pra Quem Pensa” traz um panorama um pouco negativo para o rapper. Aqui algo ocorre pela primeira vez de várias: a inclusão desnecessária de rimas internas, paroxítonas e/ou multissilábicas (A indústria de estrela, adola, adestra e destroça), que não se encaixam no resto do verso e soam como algo a parte, além de muitas vezes tirar a sequência temática. Matéria é um grande rimador, principalmente quando não está tentando provar isso. Para além disso, outros dois fatores saltam os olhos: o primeiro deles é como Joca, o excelente rapper carioca e uma das principais revelações desse ano, rouba totalmente a cena no segundo verso, passeando com flows que mudam com facilidade.

Outra questão é o refrão. Ele é o primeiro de quase todos do disco, que seguem uma mesma estrutura: 2, 4 ou 6 linhas com separação bem demarcada e uma repetição imediatamente após a sua execução, geralmente usando as linhas ímpares com maior ênfase que as pares. Nesse caso e em grande parte, os refrãos são monótonos demais, principalmente pela repetição e estrutura presa.

Já a terceira faixa, “Curiosidade”, traz como destaque a genialidade na escrita de Thiago que aparece em momentos do disco. Aqui vemos, sobre um beat puxado para um jazz de muita classe, o MC num storytelling cantado sobre uma situação de racismo que sofreu quando tinha se atraído fisicamente por uma mulher; uma linda canção e uma das melhores até aqui. O restante do disco traz, em sua maioria, essas qualidades e defeitos, em maior ou menor escala.

“Vivência”, faixa que se inicia com uma senhora descrevendo bem a loucura desses tempos atuais, conta com um beat incrível de niLL, juntamente de um vocal de fundo dando o tom soturno e loops de sanfona e cordas que vem e vão. Enquanto Matéria entrega um verso bom, nabru (outra indicada a revelação do ano) chega com tudo, colocando sua voz abafada no meio do kick e do baixo e parando o resto do beat por um momento, trazendo um dos melhores versos do álbum num flow eletrizante. A boa sequência inicial continua em “Sucesso”, uma track mais puxada para o lo-fi típico, com destaque para os sempre belos vocais de 1LUM3 que ficam ao fundo enquanto Matéria traz ótimas rimas (exceto, novamente, quando não força a caneta).

A partir daqui temos ritmos mais dançantes aparecendo em parte da tracklist, com maior frequência o house. “Sol De Verão” é a primeira aparição dessa estética, num ótimo beat que de um baixo forte que dá tom, e o MC não falha, se deixando levar pela cadência e inclusive entregando um bom refrão. Lá no final, “Só Quer Falar” é outra track com esse tipo de instrumental, com uma entrega mais cantada do MC que, pelo beat, deveria atingir notas mais altas, algo que não parece estar no cartel dele atualmente. A track apresenta mais um excelente beat, com uma pegada soturna e animada lembrando algo de “Lógos”.

O miolo do projeto tem momentos altos e baixos. “Celavi” é uma excelente track, apresentando uma linha de baixo bem forte com Matéria entregando bons versos em que expõe um desejo de fuga, ao mesmo tempo que entende que a vida é como é. Com a proposta centrada no  trocadilho com a expressão “C’est La Vie” (basicamente, “a vida é assim”) sendo lida como “cê lá viu”, Thiago entrega um refrão mais animado, em que ao invés de cantar o MC rima. “Sintoma” é outra excelente faixa, com niLL colocando um beat que se destaca pela ambientação dada com os sintetizadores e que tem como temática a revolta racial que Matéria expõe.

O grande destaque do disco vem em “Que Tipo de Preto”, faixa que traz um beat absolutamente incrível baseado num instrumental tipicamente árabe e uma ideia bem avançada de Matéria: a fetichização dos pretos na internet de hoje em dia (alô black twitter), onde o negro aparece como destaque apenas se estiver dentro do estereótipo que agrada esse nicho, sendo um recado não só para brancos como também para negros. Melhor beat, melhores linhas e melhor construção de pensamento de todo o projeto.

Com mais de 50 minutos e 18 faixas, uma porção destas deveriam ter ficado entre os descartes, estando a maioria destas no centro do disco. “Rimaria” é uma ideia tão boba que nem consegue ser desenvolvida, sendo o lado boomer do MC que aparece também; “Mil Fita” é só um apanhado de linhas aleatórias; “Protagonista”, apesar de ter potencial, tem o refrão mais monótono do trabalho; “Dá Meu Copo” é um grande “ok boomer”. O lado bom é que estas são salvas pelos beats de niLL, sobretudo a última citada.

A reta final volta a ser positiva, com “4 Tons” sendo uma faixa construída sobre um beat de vaporwave e participações especiais. Enquanto Jamés Ventura deixa a desejar, num verso que fica travado pelas repetições do rapper, niLL aparece para cantar o melhor refrão do trabalho, de forma mais fluída, enquanto Materia e Mano Will entregam versos de altíssimo nível de escrita e flow.  “Outro Juízo Final” traz mais uma participação que rouba a cena, dessa vez é com Ellen Corrêa e seu delivery potente e rimas de impacto. Nessa, Matéria fica com um refrão que é estragado na última linha, com um “praia” com as sílabas mal divididas, e tem também uma bela poesia declamada.

O álbum termina num nível bem alto. O beat de Fantasmatik em “Sigo Em Paz” é excelente, com uma vibe mais espacial na qual Matéria simplesmente flutua, no melhor encaixe vocal do MC com o beat, tendo levada e letra que realmente transmitem toda a paz que o MC cita. “Katucha” fecha o álbum com tanta perfeição quanto ele foi aberto, um beat novamente puxado para o lo-fi e o MC, sem forçar vocal ou extravagâncias na letra, entrega um refrão sólido (embora esse se repita três vezes e meia, se sustenta pela entrega rimada) e uma escrita auto-reflexiva que passa a paz de espírito da track anterior. É um grande fechamento para um grande álbum.

São poucos os artistas da velha escola que conseguem se unir à nova geração com esta facilidade. Matéria Prima, neste disco, se mostra bem conectado e versatil, embora alguns vícios e limitações se demostrem. Por outro lado, a união com niLL pode trazer uma visibilidade maior para esse grande pioneiro da nossa cultura, e, para cada escorregão do MC, o produtor estava lá para salvar a canção. Ao final, só nos resta agradecer a Thiago por, a essa altura, seguir nos passando sua Visão.

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