Review: Nic Dias – 1.9.9.9 [EP]

Nic, com seu primeiro trabalho fechado, demonstra ser uma jovem rapper amadurecendo constantemente sua arte

A rapper paraense Nic Dias vem lapidando seu espaço na cena musical desde 2017, mas só agora lançou seu primeiro EP intitulado 1.9.9.9, um projeto aprovado pelo edital da Lei Aldir Blanc Pará, com produção executiva da Psica Produções. Com três interlúdios e quatro músicas, três delas inéditas, a cantora que ganhou visibilidade mais recentemente com sua boa performance no Brasil Grime Show encontra no drill conforto para mostrar sua vivência através da arte. Com alguns singles já lançados como ‘Degrau’, ‘Guilhotina’ e ‘Baby Prince$$’, suas letras denotam posturas antirracistas e  anti-sexistas, trazendo constantemente em seu discurso o preterimento das mulheres negras, além disso e naturalmente, também encontra tempo para se contrapor ao atual presidente da república, aquele que não deve ser nomeado.  Agora, explorando outras variações no rap além do boombap e trap, Nic, com seu primeiro trabalho fechado, demonstra ser uma jovem rapper amadurecendo constantemente sua arte.

O EP inicia com a intro ‘I’, dramática em um sample focado no piano, enquanto isso a MC lança linhas poéticas postando-se contra a morte do povo preto em um manifesto por justiça. Unindo-se ao instrumento, o som de um coração batendo é um prelúdio para o que se segue, músicas repletas de revolta. A primeira, ‘Remédio Pra Racista é Bala’, única lançada anteriormente, demonstra na produção de Navi Beatz, beatmaker que já acompanha Nic há tempos, um trap quadradinho com grave acentuado no início, mas com alguns sintetizadores bem posicionados ao longo da track, deixando claro que a produção não vai se limitar a usos mais genéricos centrados somente em hats, snare e graves, modulando aos poucos para outras variações.  O pré-refrão, apesar de clichê, é uma boa forma chiclete e combina muito com o refrão; o único o verso, por sua vez, é a melhor parte da música, bem construído e sem nenhuma lacuna. A track passa sua mensagem curta e grossa e o screwed and chopped repetindo frases do refrão dá ainda mais potência às palavras. No geral, é uma boa forma de abrir o álbum, colocando a música já lançada precedendo as inéditas com um quê de suspense.

A cada bloco de música, um interlúdio é depositado, em ‘II’, ocorre um compilado de notícias de tragédias propositais, jovens e crianças negras vítimas de bala perdida e chacinas, que colocam em cheque o fato de ainda haver uma demanda para se falar sobre racismo estrutural no Brasil, além de um corte com a mãe de Nicole preocupada com as notícias e onde a filha se encontra. Essa é a preparação para ‘W.D.D’, um drill funk com 8.0.8 e bastante sintetizadores, numa letra que mostra a vivência na periferia e também lança barras para quem desacredita do trampo e dos falsos que só coligam quando há o ápice, ora, o cotidiano. 

Interlúdio e track se complementam já que ‘II’ é retrato dos dias de luta contra a repressão policial, ao passo que ‘W.D.D’ fala sobre os dias de glória, da marra de quem tem afroestima e descreve verdades sobre a favela. A música é uma instiga do início ao fim, perfeita para ser tocada num baile ou num passeio em alta velocidade. O feat de Drin melhora ainda mais a performance, seu flow combina totalmente com o beat e ao mesmo tempo complementa a dona da track que, apesar de ter algumas linhas sobrepostas pelo sintetizador alto demais da mixagem, rima mais rápido do que nas outras músicas e não perde o estrelato. A saída de funk ao final é a cereja do bolo, quando achávamos que não podia ficar melhor e que não teria refrão, esse único verso fecha a música com chave de ouro.

Em ‘III’, um funk com bpm mais baixo dá espaço para uma mensagem de intimidade e carinho de alguém que parece ser muito próximo da artista. A atmosfera do projeto ganha certa suavidade imersa em um sentimento de saudade que não permanece muito no EP. Logo na próxima faixa, ‘Missão Completa’, produzida por Pedro Apoema, a tracklist volta ao drill e para isso conta com a participação de SD9. Até o refrão, Nic demonstra bom repertório e lança três flows diferentes, suas rimas, no entanto, apesar de apresentarem uma abordagem temática mais densa e serem bem dispostas no beat, não são muito elaboradas. Já na participação de SD não há nada de muito extraordinário e o artista não consegue elevar o nível da música. O rapper fala um pouco sobre sua trajetória, mas num flow muito linear, fora o refrão, ele poderia explorar melhor o beat que, mesmo quase sem variações, conseguiu ser bem mais aproveitado por Nic. Essa falta de sincronia entre a anfitriã e seu convidado faz com que a track acabe passando mais batida do que deveria, dado o seu potencial.

Apesar disso, tudo melhora no encerramento do EP com a faixa ‘Ivy Queen’, produzida por Erick Di e mixada por Pedro Apoema, com feat de Michel Zumbi que chega em uma voz suporte muito bem alinhada com a de Nic. A música, depois de ‘W.D.D.’, é o segundo ponto mais alto do material, além do bom acréscimo da participação, o beat menos monótono que o da track anterior é ótimo e, em certos momentos, usa suas várias vozes entre outros elementos sonoros para preencher suas lacunas, além de valer-se da sonoridade do funk e uma aceleração, ao final, que lembra um House. O bom alinhamento e tratamento dos elementos sonoros são vistos também no tom das vozes, em nenhum momento atropelado pelos sintetizadores, trabalhando assim em favor da atmosfera do beat. 

A MC mostra-se no auge dos seus 22 anos vividos de maneira intensa, protagonista de uma vivência calejada por situações que permeiam uma mulher negra nortista. Apesar de demonstrar um certo espaço disponível para melhoras em sua composição, sua música apresenta amadurecimento por construir uma boa contribuição para cenário do drill brasileiro. Ao trazer também sua intimidade, muitas pessoas podem se identificar com as histórias contadas nos versos, a MC sabiamente aponta para problemas sociais que deveriam ser, mas infelizmente não são, teclas batidas. Com isso, ressalta a necessidade de reiterar por meio do seu grito de revolta todas as suas demandas, num momento crítico em que temos altos números de homicídios de jovens e crianças negras nas zonas periféricas e constantes denúncias de racismo. A jovem artista demonstra muito potencial para evolução, prova disso é o belo debut em 1.9.9.9, onde Nic Dias confirma ser uma grande aposta para o cenário nacional. 

Melhores Faixas: W.D.D e Ivy Queen

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