Review: Tarcis – Todo Mundo Ama o Sol

Cada vez mais afiado como produtor e poeta, e ainda crescendo como cantor, Tárcis buscou influências ao redor do mundo e dentro de si mesmo para um projeto com a sua cara

Não é de hoje que se canta sobre a principal estrela do nosso sistema solar. O Sol tem uma importância que vai além de ser fundamental para vida na terra: é a partir do astro que conceitos do nosso dia a dia (incluindo o conceito de dia!) derivam. Indo além, a ideia de Sol é uma metáfora que o ser humano usa desde sempre para dar significados às coisas: seja na Grécia Antiga ou nos dias atuais, lutamos para identificar qual é o Sol que guia nosso universo particular. É com essa ideia em mente que Tárcis apresenta o seu novo disco, Todo Mundo Ama o Sol.

No Brasil, existem poucos lugares que a presença (e a força) dessa estrela seja tão forte quanto no Rio de Janeiro. Carioca, o MC cresceu na cena com o boom do grime e drill, fazendo parte de uma das bancas que mais ajudou a popularizar o movimento, trazendo para o alcance que tem hoje: o Covil da Bruxa, lar de artistas como VND e Leall (dono de uma das primeiras faixas a levantar o selo até onde está hoje, ‘Criminal Influencer’, com instrumental produzido por Tárcis).

Como o nascer do Sol, o som do teclado começa calmo, enquanto escutamos as primeiras palavras do disco: o filho do MC dizendo “pai, te amo”. Assim é o início de ‘Uma Mensagem de Amor’, música que abre o projeto e onde se inicia a expansão do conceito: “nosso Sol é interno, irmão”, canta ele. O bom instrumental feito pelo próprio artista, que assina todos os beats do projeto, é quase esquelético, lembrando a sonoridade chillwave da música eletrônica americana nos anos 2000, e a participação de Indy Naíse traz uma suavidade que harmoniza bem com os vocais crus (e ora desafinados) do anfitrião.

O alcance vocal de Tárcis é um dos pontos mais divisivos do projeto. Enquanto a voz fora de tom ajuda a complementar algumas sonoridades mais suaves (como no dueto com Indy ou nas faixas em que se nota mais influência de samba na sua levada), ela também incomoda pela falta de harmonia em músicas que parecem exigir um pouco mais do que ele consegue entregar. Além disso, é possível notar ao longo do projeto momentos em que seu flow se perde no meio da percussão, tendo que ou acelerar demais ou se arrastar exageradamente para alcançar o tempo certo.

Em ‘Astro Rei’, Tárcis continua a ideia de diferentes sóis em nossa vida (“Olhar a volta que o mundo dá / Dizer pra ela que eu sou o Sol”) cantando de forma suave sobre sua cidade, amigos, religião, sempre tendo a ideia dos raios solares e do brilho como elementos com diferentes significados. O beat meio neo-R&B vem acompanhando as mudanças sonoras do artista nos seus trabalhos como MC. “Não abandonei o grime / Mas quero ver se me alcançam” rima ele.

E realmente é notável a mistura de diferentes elementos sonoros e da ausência do estilo que inicialmente trouxe sucesso para o carioca. ‘Festas, Hotéis e Estradas’, tem padrões de bateria inspirados pelo miami-bass misturado com os toques suaves de teclado, e o refrão é cantado no melhor estilo funk melody dos anos 90. ‘Boa noite Sunshine’ lembra o synthpop influenciado pela música dos anos 80 do Japão, ‘Gato Preto’ bebe diretamente da influência do UK Garage e ‘Feitiço’ mescla toques de candomblé com UK House.

Algumas outras tracks também puxam diretamente dentro do rap. ‘Fim de Tarde’ tem percussões influenciadas pelo trap, com hi-hats constantes, enquanto o sample melódico leva a faixa pra um caminho de calmaria (sample esse que todo bom fã de rap conhece). ‘Todo Mundo Ama o Sol’ é um boom-bap com uma bateria extremamente seca e, como mais uma amarração do conceito do disco, traz samples de ‘Everybody Love’s Sunshine’, de Roy Ayers

A ótima ideia de brincar com os títulos das faixas, aliás, contempla o projeto inteiro, indo além do jogo com o sample da track que dá nome ao disco. Com 10 músicas, elas seguem o fluxo de um dia se passando: as 5 primeiras faixas (que incluem títulos como “Fim de Tarde”, “Astro Rei” e “Beira Mar”) se relacionam com a luz do sol, enquanto as 5 últimas falam sobre a sua ausência (como em faixas como “Boa noite Sunshine”, “Enquanto o Astro Rei não Volta” e “Festas, hotéis e estradas”). 

No quesito participações, não é só Indy que se destaca, pelo contrário, nenhuma participação do disco decepciona. A voz (e o ótimo verso) de Bivolt eleva ainda mais o instrumental dançante de ‘Gato Preto’, que desliza sobre o beat animado. Na incrível ‘Feitiço’, Bia D’Oxum toma conta do refrão com influência de ritmos de religiões de matrizes africanas misturado com a sonoridade da música eletrônica inglesa, dois pilares musicais presentes em quase toda a carreira de Tárcis.

Além dos convidados externos, integrantes do Covil da Bruxa também aparecem ao longo do disco. Juntos do anfitrião, VND e pumapjl, contrastam o instrumental classudo e animado de ‘Beira Mar’ com versos que retratam vitórias e turbulências. Já Luna assume o refrão de “Boa Noite Sunshine” com uma voz aguda que harmoniza bem com o tom grave de Tárcis. Todas essas ótimas faixas com participações revelam uma constante no projeto: a sabedoria em utilizar os convidados para cobrir as limitações do MC faz com que essas músicas se destaquem bem mais do que as canções em que ele está só, já que torna as diferenças entre faixas ainda mais aparentes. 

Talvez a única exceção seja ‘Enquanto o Astro Rei Não Vem’, encerramento do projeto. Com sample de “Samba e Amor”, de Chico Buarque (cuja letra casa bem com todo o conceito), a caneta cheia de poesia (e o ótimo flow durante a track) de Tárcis amarra o conceito de todo o projeto, e o rapper, colocando-se como o Sol que ilumina os que estão ao redor dele, fala sobre as fases do dia como se fossem fases da vida.

Cada vez mais afiado como produtor e poeta, e ainda crescendo como cantor, Tárcis buscou influências ao redor do mundo e dentro de si mesmo para um projeto com a sua cara. A disposição para mudar estilos, mesclar influências e não ter medo de se colocar diante de desafios musicais faz com que o repertório do artista seja usado ao seu favor, criando um projeto coeso e bem amarrado. No fim das contas, Todo Mundo Ama o Sol traz à tona mais do que uma necessidade humana de entender a estrela: o MC carioca incorpora a existência do astro brincando com momentos e situações do cotidiano, provando que sim, o Sol está dentro de cada um de nós.

Melhoras Faixas: Beira Mar, Feitiço, Enquanto o Astro Rei Não Volta

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