Review: Cabal – Antes dos Stories [EP]

A preocupação com a forma dilui a substância do conteúdo, a ponto dela parecer mais um empecilho do que uma ferramenta para a sua expressão.

Largar o microfone é uma decisão que praticamente todos os MCs já consideraram ou fizeram em algum ponto da carreira. Muitas vezes isso se dá pelo baixo retorno não acompanhar a necessidade das contas serem pagas, mas, no caso de Cabal, foram os atritos com alguns de seus contemporâneos (e toda a negatividade que vem por consequência) que fizeram com que ele entrasse num hiato de mais de 7 anos.

Em 2021, o veterano deu continuidade ao seu retorno, inicialmente com o EP Penumbra que, entre erros e acertos, já apresentava um teor autoanalítico e reflexivo que as punchlines e multissilábicas do passado não davam espaço para se mostrarem. Agora, em Antes dos Stories, embalado pela produão de Tropkillaz, o rapper já parece estar mais confiante de suas contribuições e capacidades no rap, fazendo com que a introspecção anterior também ceda lugar ao braggadocio. Isso se paga em alguns momentos, pois Cabal continua sendo um rimador visivelmente técnico, em especial nas faixas que não se orientam num tema. Nas que o fazem, entretanto, a preocupação com a forma dilui a substância do conteúdo, ao ponto dela parecer mais um empecilho do que uma ferramenta para a sua expressão.

De todos os recursos usados no disco, o que mais se destaca é o das multissilábicas; geralmente no final de cada barra para que elas atuem como uma monorrima e deem espaço para variar as rimas internas. ‘Vem Fácil’, por exemplo, já faz isso desde o refrão, e continua sustentando o mesmo esquema até o fim do primeiro verso. É um esforço a mais que poucos rappers se dispõem a fazer hoje em dia, e méritos ao MC por arriscar em praticamente todas as tracks, mas a baixa variação na acentuação dessas rimas faz com que as inspiradas percam seu impacto e as forçadas se tornem cada vez mais distrativas (“Ainda vou contar minha história num livro. Não faço live, não. Eu faço história ao vivo”).

Isso não quer dizer que não hajam versos consistentes. Além da faixa que abre o projeto, temos ‘Antes dos Stories’, apresentando um divertido back-in-forth entre os flows e multis do anfitrião e os de Rodrigo Ogi. Há um certo exagero nos termos em inglês, mas considerando a vibe saudosista nos versos de Cabal, ainda faz algum sentido. O boombap carrega o mesmo ar de grandiosidade sentido em ‘Ainda Sou Eu’, mas é a distribuição dos versos e as colagens de Erick Jay  que fazem com que as autoafirmações de cada um se mantenham interessantes até o fim. 

Com punchlines, falo 

Meu verso é um coice de mil cavalos 

A minha habilidade me conduz além 

Tenho a longevidade de Matusalém 

Pois carrego a energia que irradia feito luz solar 

Para navegar nas trevas eu serei a bússola

Eu sou um filósofo fazendo exercícios aeróbicos 

Enquanto desvendo hieróglifos

Dando início ao bloco mais intimista do projeto, temos ‘Amanhã’ e ‘Tudo Bem’, abordando a necessidade de não deixar que as quedas do dia a dia impeçam o ouvinte de correr atrás de seus objetivos. Tanto refrão de Clau como o de Laudz respectivamente se encaixam na atmosfera motivacional das duas, e os instrumentais apresentarem elementos de R&B também contribuem para tal. São faixas agradáveis, com um bom punhado de linhas bem montadas, mas é aqui onde começa a ficar um tanto frustrante ver esquemas de rima e trocadilhos, importando mais do que uma construção focada em expor angústias realmente identificáveis. 

Quando eu não to bem… Eu ligo a seta

Desvio de problemas, mas não tiro da reta

Coca zero na mente, eu tô tipo dieta

Agora é só bola pra frente… Tiro de meta

Triatleta. Descalço, perdido, sozinho

Nas curvas do passado, já me perdi no caminho

Mas mantive meus sonhos. Não perdi minha fé

Já tomei tantos tombos, mas tô aqui de pé

Até esse ponto, a maioria das ressalvas se encontram no direcionamento de certas escolhas do projeto, mas a inclusão de ‘Já Ou Agora’ na tracklist não agrega em nada ao trabalho. Isso vai do raggaeton génerico no beat e dos previsíveis versos em espanhol de Cjota à performance canastrona do anfitrião. Se já não havia muita introspecção nos momentos soturnos, era óbvio que não haveria abertura emocional aqui, ainda mais após referenciar a famosa ‘Senhorita’. Mas é como se ele fosse uma cantada de 3 minutos, da qual você não pode ignorar, mesmo querendo. ‘Céu Azul’ também não traz muito a mesa, mas ao menos faz uma transição de tema mais sutil entre o braggadocio e o romantismo. 

O que faz com que o final recupere parte do equilíbrio perdido é ‘Pai de Menina’, onde Cabal desenvolve como a paternidade foi responsável pelo seu amadurecimento. A construção e a entrega dos versos é a mesma, mas por ela ser a que menos se direciona para um público, ela consegue ser a mais relacionável. É estranho a presença de Rodriguinho numa faixa com esse propósito, mas a faixa encerra bem o material.

Segundo o próprio rapper, haverá um álbum em 2022. Talvez a falta de linhas comentando sobre os anos de reclusão seja para desenvolvê-las num projeto mais ambicioso. Mas o fato é que a técnica pode acabar sufocando esse processo se não for melhor dosada. Mais do que manter padrões por 16 ou 48 barras, ser técnico é saber a hora de desapegar. E é desapegando que se recomeça.

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