Review: Major RD – Troféu

Se, meses atrás, o rapper confessava: “até hoje não sei o que o Xamã viu em mim”; agora todos podemos enxergar

2021 continua sendo um grande ano para o drill nacional. Não apenas pelo aumento nos streamings, graças a iniciativas como Brasil Grime Show e aos collabs com artistas já consolidados no trap ou no grime, mas, principalmente, pela entrega de trabalhos sólidos, ou no mínimo promissores, no cenário. Desde MCs experimentando a vertente, como FBC e Marcola Bituca (em Outro Rolê e La Travessia, respectivamente), aos que já a abraçaram desde seu disco de estreia, como Leall e Big Bllakk (em Esculpido a Machado e Errejotadrill, Vol. 1), é possível perceber a variedade de caminhos sonoros e temáticos que ela tem a oferecer. E é nesse fervor criativo que se encontra Major RD.

Após alcançar relativo destaque em suas participações na Brutang 44 e, posteriormente, na Furamil 2 Cão, o MC da Zona Oeste do Rio estreou sua carreira solo com 2%, um EP que já exibia bastante domínio em sua entrega rasgada, mas ainda não deixava claro até onde ela poderia chegar. Ainda assim, o rapper se manteve em constante produção, atraindo aos poucos os ouvidos do público, até sua memorável apresentação no BGS. Com a atenção conquistada a plenos pulmões, ele finalmente lança seu álbum de estreia, o apropriadamente nomeado Troféu, discorrendo sobre temas como violência e ascensão financeira num equilíbrio entre energia, técnica e sobriedade poucas vezes entregue esse ano. Se, meses atrás, o rapper confessava: “até hoje não sei o que o Xamã viu em mim”; agora todos podemos enxergar.

O primeiro mérito a ser destacado se encontra no direcionamento da produção, assinada por El Lif Beatz, KIB7 e Baratapai. Quando se trata de rappers conhecidos por uma performance mais agressiva, é comum haver uma preocupação em tentar dosá-la para que o disco não se torne cansativo com o passar das tracks. Isso pode resultar em músicas mais curtas, participações de artistas com outras abordagens e/ou em batidas mais suaves para forçar o anfitrião a “desacelerar”.  Muitas vezes isso funciona, mas há um risco de diluir o principal atrativo do artista que frequentemente é subestimado. É com certeza uma linha tênue, mas o disco a percorre bem ao deixar os beats com um BPM lento no início e no final para que as faixas do meio mantenham a tensão e o dinamismo no alto, graças ao acréscimo dos adlibs gritados e dos sons de tiros, motos acelerando, e “risadas de bruxa”. São os pequenos detalhes, como a virada para o funk durante o speedflow de ‘Como É Que Tá’ ou as repetições na voz do RD em ‘Rimo Igual Pac (Freestyle)’ que mostram o quanto os instrumentais se recusam a serem simplesmente engolidos pelo MC.

Indo para o desempenho do mesmo, é preciso comentar sobre a variedade de flows que é apresentada durante o trabalho. Se valendo de barras menores e (muitas) rimas intercaladas, ele consegue se manter no controle da batida, mesmo com o turbilhão de elementos e mudanças no compasso que algumas apresentem. Isso é perceptível nos refrãos, que se dividem entre os que mantém um padrão de monorrimas para servirem de “respiro” entre os versos, a exemplo da já citada ‘Como É Que Tá’ e ‘Deixa a Luz Baixa’, ou apostam num esquema intercalado com fortes acentuações no final das barras para que ele não soe confuso, como pode ser notado em ‘60K (Remix)’ e ‘Midio’. Isso faz com que a maior parte dos acertos do disco soe bem amarrada, mesmo ele não sendo conceitual.

Só com esses aspectos levantados já teríamos um trabalho digno de uma audição cuidadosa, mas é na lírica que temos o grande trunfo do projeto. Aproveitando-se da “fórmula” proposta pelo time de produção, RD usa as faixas mais lentas para expor, num flow mais contido, as feridas e dificuldades que a energia da sua entrega não costuma transparecer. ‘Carta pra Lucas’ é o melhor exemplo disso, ao narrar vividamente sua infância e sua amizade com o falecido amigo, em apenas um verso orientado sob um sample de soul. Tal nível de introspecção aparece novamente no último som do disco (‘Luna’) – o que inclusive dá uma vibe cíclica ao mesmo- , mas é aqui onde o MC mais consegue impressionar e emocionar. 

De Fazer voado que nem uma flecha

Bateu numa pilastra e não caiu a ficha

Que ‘cê partiu na madrugada de uma sexta

Por quê que esse mundo tem que ser assim? Que porra é essa? Papo reto

Lembro de ter levantado a moto

Ter estalado o vacilão que quis bater a foto

Dele caído com a minha camisa e o fone de ouvido

Com a sensação de riso ou de ter dormido e descansado

Por ter geral por perto, mas não ter você do lado

É foda o fardo de saber que ‘cê não ia sair sozinho

Se eu ‘tivesse lá no portão acordado

Já nas faixas mais próximas do drill e do trap, é a fome de rima quem toma as rédeas. Isso também se dá nas inúmeras punchlines que vão além do típico -mas não menos divertido- braggadocio de iniciante (Só aceito falar que a favela venceu/ Quando geral ‘tiver no mesmo patamar), mas salta aos olhos pela forma que as rimas são conduzidas. Ao dividir e intercalar a maior parte das rimas perfeitas no meio e no final das barras, com pequenas acentuações e parônimas durante as mudanças de esquema de rima ou de flow, o andamento dos versos quase sempre soa orgânico.  Isso se destaca em ‘Troféu’ e ‘Carro Bicho’, onde são as rimas internas as verdadeiras condutoras do verso. O que não acontece em ‘60K (Remix)’, onde a métrica se mantém constante durante todas as barras do anfitrião, mas a presença de Azzy consegue preenchê-la com mais suavidade, graças a sua habilidade no canto. A track ainda é digna de nota se comparada com a versão original, pois evidencia o quanto RD tem trabalhado a sua voz e respiração de um modo que não arranhe a melodia do beat.

Quanto aos outros feats, o disco apresenta lacunas. Algumas se dão numa entrega pouco inventiva, como é o caso de Sain, cujo verso em ‘Deixa a Luz Baixa’ é basicamente um acúmulo de todos os maneirismos do rapper; mas em alguns casos, acabam sendo uma grande vírgula nos elogios ao projeto. É o caso de Young Ganni em ‘Rimo Igual Pac (Freestyle)’, que além de fazer pouco esforço na dicção ainda pesa a mão nas linhas sexistas e referências de uma linha só. Raffé ainda faz um bom trabalho para manter a estética do som até a chegada de RD em ‘Carro Bicho 2’, mas o fato de suas linhas abordarem ideias já desenvolvidas anteriormente faz com que ele também não chame a atenção.

Quem mais se destaca no microfone é Sant que, novamente, apresenta um verso extremamente descritivo para complementar o que é entregue pelo anfitrião, em ‘Luna’. Se, em ‘Mídio’, a trajetória do rapper é narrada com a urgência de quem não teria uma segunda opção, aqui há uma profunda autoanálise dos efeitos que esse modo de pensar tem causado em sua arte e em suas relações.  Apesar do loop no boombpap ser desinteressante, até pela constância no flow dos 2 MCs, a honestidade das reflexões de cada um consegue manter o ouvinte interessado até a chegada dos scratches de Erick Jay, que finalizam o disco. Considerando o quão incomum tem sido terminar um trabalho com a mesma qualidade que o inicia, já é possível afirmar que Major é, no mínimo, um vencedor.

Outra taça de vinho, lá fora sopra o vento

Escrevo num papel o que sinto no momento

Tento falar de amor e só sai ódio

Sempre acho que isso tudo é fruto do sofrimento

De ter tudo por perto, ser o mais popular do bairro

Rodeado, e ainda assim, se sentir num deserto

Bem melhor ser feliz do que ser rei 

Errei em ter duvidado, o Emicida ‘tava certo.

Troféu é, sem sombra de dúvidas, um dos grandes lançamentos do ano. Sua sonoridade abraça as particularidades que fizeram o nome do MC, e ainda busca formas de potencializá-las, seja as colocando em evidência, ou exigindo que elas dialoguem com as abordagens de outros talentos. Há derrapadas aqui e ali, mas é impossível terminar a audição sem sentir o quanto RD já tem a oferecer em rima e flow. Talvez o pódio ainda seja bem disputado esse ano.

Melhores Músicas: Carta para Lucas, Como É Que Tá, Mídio e Luna

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