Existem diversos artistas que se destacam por possuírem múltiplas facetas em suas vidas, e Tupac Shakur é um grande exemplo disso. Considerado um dos maiores artistas de todos os tempos, um dos melhores MCs e, talvez, a figura mais emblemática da história do hip-hop, Shakur viveu uma vida digna de cinema. De ter sido ‘preso’ enquanto ainda estava na barriga de sua mãe, à ser um tímido adolescente estudante de teatro, passando por uma tentativa frustrada de entrar para o tráfico até se tornar uma assistente de palco do Digital Underground e iniciar uma bem-sucedida carreira no cinema, Pac viveu muitas vidas em uma só. Contudo, sua versão menos citada – e propositalmente esquecida – é a de sua vida como militante e ativista político.
Como se sabe, Tupac foi o primeiro filho de Afeni Shakur, uma importante militante marxista do Partido dos Panteras Negras, ligada à filial do Harlem e mentora da juventude do partido. Em 1969, quando os EUA viviam o auge da Guerra do Vietnã e das lutas sociais pelos Direitos Civis, ela ganhou notoriedade por seu envolvimento no caso Panther 21, no qual 21 membros do partido foram presos e julgados sob acusações de planejarem atos terroristas em Nova York, como ataques armados à delegacias e escolas. Grávida e sem nunca ter ido à uma faculdade de direito, Afeni decidiu representar a si própria no julgamento, e lá, expôs três membros do partido que eram policiais infiltrados, fazendo com que admitissem que tinham planejado os atentados e outras ações ilegais sozinhos.
Após um longo julgamento e dois anos de prisão, todos os 21 panteras foram absolvidos das acusações e liberados pela justiça em 1971. Cerca de um mês depois, ela teve seu primogênito, Lesane Parish Crooks, que posteriormente ela iria rebatizá-lo de Tupac Amaru Shakur, em homenagem à Túpac Amaru II, último imperador Inca e líder da resistência de seu povo contra a colonização espanhola na região. Sem ter conhecido seu pai biológico na infância, Pac foi parcialmente criado por seu padrasto, Mutulu Shakur, um célebre revolucionário ligado à grupos como o Black Liberation Army (BLA) e o Republic of New Afrika, que defendiam a revolução armada das comunidades negras nos EUA.
Crescendo em meio à dificuldade consequente da vida de seus familiares, Pac era tido como uma criança pacífica, tímida e introvertida, com grande interesse pelas artes, especialmente a literatura, hábito estimulado por sua mãe desde cedo. Contudo, em 1982, Mutulu entrou para a lista dos 10 mais procurados do FBI, acusado de comandar um assalto a um carro-forte com outros membros do BLA, que resultou na morte de um segurança. O ativista foi condenado a cumprir 60 anos de pena, pela qual segue preso até hoje. Com uma família destruída, desempregada e com dois filhos para criar – ela teve sua segunda filha, Sekyiwa, com Mutulu – Afeni se mudou para Baltimore, onde sustentou as crianças através da assistência social e de bicos que fazia eventualmente.
Nesse contexto, Pac passou boa parte da infância e adolescência em situação de extrema pobreza, o que se agravou com as políticas de corte nos programas sociais do governo de Ronald Reagan. Além disso, sua família foi vítima de constantes perseguições e investigações do FBI, prática comum do governo norte-americano aos revolucionários e suas famílias durante a Guerra Fria. Como forma de ‘driblar’ as adversidades, Pac mergulhou nas atividades escolares, onde estudou teatro, balé, literatura clássica e passou a escrever textos e poesias. Foi na escola também que, através de amigos, ele conheceu a Liga Jovem do Partido Comunista dos EUA, onde se filiou oficialmente em 1988.
Tupac foi, como seu próprio nome sugere, um herdeiro da luta revolucionária popular. Desde pequeno ele acompanhava sua mãe em ações e plenárias do partido, além de ter crescido entre ícones de movimentos negros de esquerda dos EUA, como Geronimo Pratt, ex-militar e secretário de defesa dos Panteras, e Jamal Joseph, famoso escritor, professor e ex-militante do partido que, junto com Mutulu, ajudaram Pac para que ele pudesse se dedicar aos estudos. Foi com seu padrasto, inclusive, que ele escreveu o ‘código Thug Life’, que defendia a união e cooperação entre as gangues, o controle da violência dentro das comunidades e um forte discurso anti-drogas. Além disso, foi afilhado de Assata Shakur, famosa intelectual revolucionária que, após se tornar a primeira mulher na lista de mais procurados do FBI, vive em exílio político em Cuba até hoje.
Essa herança moldou a personalidade de Tupac e o acompanhou durante toda a sua carreira. No final dos anos 80, Pac se mudou com a família para Oakland, na Califórnia, berço dos Panteras Negras, onde começou a investir em suas rimas até se tornar um MC conhecido pelas ruas da cidade. Ao mesmo tempo, ele viu sua mãe lutar contra o vício em crack, um destino trágico que se tornou comum entre muitos ex-Panteras que se afundaram na pobreza após a dissolução do partido, o que gerou um impacto grande sobre suas ideias em relação às gangues e drogas. “Se não controlarmos o que acontece em nossas comunidades, iremos nos auto-destruir, e o governo irá marcar a juventude negra e latina como alvo principal para o uso de suas armas e presídios”, disse Pac em sua famosa entrevista de 1995 na prisão.
Nessa época, o rapper dividia seu tempo entre rimar nas ruas, participar de ações sociais e trabalhar em empregos que ele descreveu como ‘degradantes’. Quando foi descoberto e apresentado ao Digital Underground, Pac os mostrou uma demo da faixa Trapped, uma crítica ao sistema carcerário dos EUA que crescia de forma absurda na época. Por achar que a canção era ‘muito política’ para o perfil festivo da banda, Shock G prometeu ao jovem Shakur que ele iria tentar fazer a canção ser lançada. Por um golpe do destino, Pac estava prestes a aceitar o cargo de presidente dos New Afrikan Panthers, um grupo revolucionário disposto a seguir o caminho do partido original. Com isso, G o convidou para sair em turnê com a banda como roadie, na tentativa de inseri-lo no meio musical, que acabou aceitando por não saber se estaria vivo quando a banda retornasse. O que aconteceria em seguida é uma história que todos conhecemos.
Em seu início de carreira, Pac chamou atenção do público, da mídia e, inclusive, das autoridades, por suas letras que expunham a realidade crua das periferias negras e latinas do país. Suas canções, com destaque para “Brenda’s Got A Baby” e “Soulja’s Story” (1991), buscavam explicar a necessidade de conscientização, organização e construção do poder coletivo nas comunidades. Da mesma forma, ele incorporou diversas influências literárias e políticas em sua obra, desde a filosofia de Maquiavel até a figura de Fidel Castro, que também influenciaram seu discurso. No início de sua fama, ele também foi responsável por popularizar o termo Thug Life, que diferente da definição tradicional, é uma sigla reversa que expressa a importância da organização para cuidar das comunidades, em prol de alcançar o bem estar coletivo: The Hate U Gave Lil Infants Fucks Everyone (O ódio que você passa para as crianças fode todo mundo).
Como qualquer fã do Pac sabe, suas lendárias entrevistas são tão marcantes quanto suas músicas. Dono de uma retórica poderosa, herdada de seus tempos de militante, Shakur gerava polêmica sempre que defendia ideias consideradas ‘radicais’ na mídia tradicional. Em uma entrevista à MTV em 1992, que só foi lançada recentemente, Pac critica abertamente o acúmulo de riquezas dos milionários, alfinetando nomes que vão de Michael Jackson a Donald Trump. Em sua entrevista da cadeia, ele gerou controvérsia ao defender a organização armada das gangues: “Se você quer viver a vida de gangster, ok, então parem de ser covardes e organizem uma revolução. Mas eles só querem ser caricaturas e sugar nossas comunidades.”
No livro A Guerra do FBI contra Tupac Shakur e Líderes Negros, o escritor John Potash descreve o rapper como alguém que possuía “uma preciosa habilidade de comunicar, de forma plena, uma análise marxista do sistema de classes dos EUA”. Com o avanço da sua carreira, Pac se distanciou dos ideais que o alimentaram quando jovem, mas seu legado será eterno como o MC que levou a revolução das ruas para a mídia mainstream, no coração do capitalismo mundial. São muitos os registros que existem dele discursando em plenárias ou escolas, criticando a divisão dos oprimidos em pautas identitárias e diversas ideias que, vindo de um jovem preto influente, cria de uma linhagem de revolucionários, se tornavam o pior pesadelo da branquitude norte-americana.
Referências:
Entrevista MTV, 1992: https://www.youtube.com/watch?v=GL-ZoNhUFmc
Entrevista da cadeia, 1995: https://www.youtube.com/watch?v=nhpq0MEcYzg
Entrevista do 2paclypse Now, 1991: https://www.youtube.com/watch?v=kR6OKmD1oJM&t=1s
Discurso na plenária dos New Afrikan Panthers, 1989: https://www.youtube.com/watch?v=MW8JeFKEAxM
Livro ‘The FBI War on Tupac Shakur and Black Leaders’, John Potash, 2008.