Classic Review: The Notorious Big – Life After Death

Com performance e consistência impecáveis ― qualidades difíceis de se conquistar para um projeto de quase duas horas ― “Life After Death” perpassa por sua miríade de temáticas e objetivos cumprindo-os de forma satisfatória.

Ascencio em sua primeira Classic Review aqui. “Life After Death” é o título do segundo álbum, sendo o primeiro lançado ― embora não produzido ― postumamente de Christopher George Latore Wallace, The Notorious Big, para muitos, o melhor MC que já existiu. Trata-se de um CD duplo, lançado em 25 de março de 1997, apenas dezesseis dias após sua morte. Big vinha de seu aclamadíssimo e revolucionário debut, intitulado “Ready To Die”, e almejava, parafraseando o próprio, retomar o seu lugar no jogo, após dois anos “descansando”. LAD é um clássico maiúsculo da história do Hip Hop, vendendo 690 mil cópias em sua primeira semana e, apenas três anos depois, realizando um feito conquistado por um seleto grupo de obras com seu certificado de Disco de Diamante.

 

 

Bem recebido tanto por crítica quando por ouvintes, foi considerado um dos mais influentes discos de Rap de todos os tempos. Com performance e consistência impecáveis ― qualidades difíceis de se conquistar para um projeto de quase duas horas ― “Life After Death” perpassa por sua miríade de temáticas e objetivos cumprindo-os de forma satisfatória, ao mesmo tempo que estabelece e oficializa matrizes que fecundaram o Rap como é entendido hoje. Além de ser creditado como fator fundamental para a popularização do Gangsta Rap, colocando-o de uma vez por todas no mainstream, Big faz escola faixa após faixa, lapidando pedras angulares e vigas mestras fundamentais para a história do gênero, e isso, mais do que o contexto externo de conflitos entre as Costas, é o que verdadeiramente imortaliza essa obra.

Em 1997, com uma base consolidada graças a Golden Era, o Hip Hop procurava crescer cada vez mais, no intento, dentre outros, de se tornar a sólida indústria conhecida hoje. Com isso, grandes tomadas de fôlego foram dadas para a execução de projetos visionários e, sem dúvida, uma das mentes mais ativas nesse sentido, era a de Sean Combs, Diddy, fundador e CEO da Bad Boy Records (gravadora de Biggie), o estrategista por detrás dos passos de B.I.G. Puff Daddy, mais um de seus muitos vulgos, almejava fincar raízes na cultura pop da época, e para isso precisava, além de manter as características que fizeram o seu MC conquistar o alto escalão do gênero, flertar de forma mais massiva com o Pop e R&B clássicos em suas sonoridades, dando ares cinematográficos para seus clipes e músicas, enquanto explorava ao máximo a versatilidade do artista completo que foi Notorious. Esse era o plano.

“Life After Death” começa onde “Ready to Die” termina. A morte metafórica reiterada nos dois títulos representa a urgência de uma vida no limite, a eminência por mudança que faz alguém não se importar com mais absolutamente nada. Sendo assim, enquanto o primeiro álbum representa todo um ódio desesperador sendo liberado, o segundo é a vida após isso, em sua existência mais consolidada. Big não rimaria mais sobre ser pobre, ou sobre estar na rua fazendo seu dinheiro no mundo do tráfico ― apesar de dar dicas sobre em “Ten Crack Commandments”―, porque essa não é mais sua realidade, trata-se de um novo começo. A track inicial, “Life After Death Intro”, tem seu amigo e confidente, Diddy, o levando ao hospital após sua tentativa de suicídio, não medindo esforços para salvar a vida do parceiro. Esta ressurgirá, mesmo após a “flatline”, da forma como o MC se eterniza, por meio de sua música, representada pela segunda track.

A transição, caracterizando perfeitamente esta ressurreição, é feita de forma extremamente fluida para “Somebody’s Gotta Die”, primeira das storytellings do projeto. Conta uma história de retaliação movida pela vingança, onde Big e um antigo conhecido planejam e executam a morte do algoz de um amigo em comum deles. Além desta narrativa, o disco apresenta ainda a violenta “Niggas Bleed”, mais imersa no mundo das drogas, e, talvez a mais famosa de todas devido à sua provável proximidade maior com a factualidade, “I Got a Story to Tell”, uma empreitada amorosa que acaba de forma inesperada, onde BIG mantém relações com a mulher de um jogador de basquete do Knicks, popular time de NY. Em todas as execuções deste recurso, o qual Notorious era um exímio escritor de histórias complexas dignas de plot twists de cinema, é surpreendente como o MC tem habilidade suficiente para mesclar discursos diretos e indiretos de seus personagens, ora narrando, ora dando voz a estes, criando diálogos de forma tão fluida sem nunca perder ritmo e qualidade, enquanto ainda encontra tempo para contextualizar as cenas, descrevendo-as por meio de falas. A produção, por sua vez, é sempre bem trabalhada acrescentando elementos sonoros das ações e se intensificando em momentos críticos da narrativa.

Aclamado liricamente deste a sua contemporaneidade, Biggie Smalls sabia que este era um de seus maiores diferenciais diante da concorrência, por isso, explora-o como ninguém e “Kick in the Door” é o maior e melhor exemplo disso. Premier entrega uma de suas batidas mais icônicas para o MC novaiorquino cuspir o que pode ser considerado uma performance técnica perfeita e única na história do Rap. Visceral, Notorious literalmente dedica barras aos opositores de sua mesma cidade. Dentre eles, Nas ― na disputa pelo trono de NY ―, Raekwon, Ghostface e Jeru The Damaja que acabou até puxando o próprio Primo para a confusão. B.I.G. entrega uma capacidade técnica não alcançada até hoje de, mais do que quebrar palavras, quebrar sua própria métrica com explorações sintáticas a seu bel prazer, seja para introduzir um novo assunto, um novo recurso lírico ou simplesmente para transformar rimas internas em externas, este último, recurso extremamente mal utilizado pelos ditos liricistas atuais. O rapper estabelece, principalmente em seu primeiro verso, o equilíbrio utópico entre técnica lírica e preservação de sentido, buscado por MCs até hoje.

Get in that ass quick, fast like Ramadan

It’s that rap phenomenon Don Dada, fuck Poppa

You got to call me Francis M.H

White, intake light tokes, tote iron

Was told in shootouts, stay low and keep firin’

Keep extra clips for extra shit, who’s next to

Flip on that cat with that grip on rap?

The most shady, (Tell Em!) Frankie baby

Outras tracks de temáticas próximas, que fazem parecer fácil rimar nesse nível de performance, são “What’s Beef”, em mais uma produção histórica de bateria desacelerada e melodia mafiosa e sombria feita por outro grande nome da indústria, Carlos 6 July Broady, onde Big, em um olhar à frente do sem tempo, profetiza a banalização, ainda inicial na época, dos duelos musicais entre MC’s visando propósitos comerciais. Ou “My Downfall” e “Long Kiss Goodninght”, duas integrantes de uma sequência final que abusa de produções sombrias com pianos melancólicos e letras que parecem premeditar o futuro, ao passo que refletem sobre o passado. Na primeira, tem-se talvez as linhas mais lúcidas do MC sobre sua situação atual, estando no topo do rapgame e, por isso, sendo alvo de vários que buscam sua queda. A segunda divide opiniões sobre alvos, Lil’ Cease, primo e protegido de Biggie enquanto integrante da Junior M.A.F.I.A., afirmar que a track possui linhas atacando um Tupac já morto, o que P. Daddy discorda quando diz não haver um opositor em específico para quem o MC rimasse nessa ocasião. De qualquer forma, as subliminares ― Notorious preferia estas ao “name dropping”― estão ali, e foram gravadas após a morte de Shakur, dadas as referências temporais presentes no som. Todas estas faixas são provas exemplares que demonstram a multifuncionalidade técnica do rapper, não existindo desperdício de linhas em uma época onde raps de três versos eram o padrão. Ao mesmo tempo em que cria metáforas, B.I.G. distribui rimas internas, multissilábicas e variações para todos os cantos, esbanjando versatilidade.

Ser versátil não era algo que Big demonstrava apenas em sua caneta ― se é que esta existia de fato, já que dizem não haver nenhum registro escrito das composições deste álbum ―, o MC também possuía um ótimo domínio de entrega. Quando não está em sua excelente estética padrão, onde imposta sua forte e marcada voz com um flow de extrema classe fria e contida, B.I.G. adere à proposta musical da faixa da vez, adaptando-se sem nunca perder suas características principais. Como na fúnebre trilogia final já mencionada em que, principalmente nos refrões, mantém sua voz em tons mais brandos e prolongados, contribuindo para o suspense; ou quando diminui suas linhas para apostar em um flow que acompanhe o swing de “Nasty Boy”, ou ainda, na transição para o R&B de “Fuck You Tonight”.

Mas sem dúvida, tratando-se de versatilidade, nada é comparado ao feito de “Notorious Thug” com participação do hoje consagrado, mas, na época, em ascensão, grupo de Cleveland Bone Thugs-N-Harmony. BTNH trata-se de um coletivo extremamente característico no último elemento de seu nome, os harmônicos, com uma ousada proposta, para aqueles tempos, em fazer com que a melodia de seus vocais ultrapassasse o limite ao qual estavam relegadas normalmente, tomando também os versos de um rap. Algo difícil para uma época onde predominavam formatos fixos de entregas fortes e sem variações de notas, tendo o canto sido destinado apenas aos refrões, realizados majoritariamente por mulheres. Big optou por estudar a estética dos vocais do coletivo, gravados previamente, e entregar mais um verso singular em sua carreira e memorável para o Hip Hop, seguindo a assinatura do grupo convidado. O rapper de Nova Iorque enxuga suas linhas partindo para a abordagem melódica com mudanças de tonalidade e variações de flow, tudo isso em uma única mão, para na outra manter suas sílabas perfeitamente combinadas. Além disso, ao aderir a essa atmosfera, consolida de uma vez por todas a proposta harmônica do coletivo.

Bone Thugs-N-Harmony foi um grupo que, apesar de se localizar na Costa Leste, manteve-se neutro em todo o conflito, tendo colaborado também com 2pac, que, na ocasião do feat, ficou em sua zona de conforto ao entregar seus versos. Não seria muito distante pensar que, ao mesmo tempo, Big pretendia demonstrar seu diferencial diante do antigo rival, enquanto também partia para um estado mais neutro, após a morte de Pac. Mas, talvez o que deixe mais clara essa mudança, é sua carta de amor a California na track “Going Back to Cali”, inspirada em LL Cool J. A produção é caracteristicamente West Coast, criando uma atmosfera electro dos anos 80 feita por Easy Mo Bee. Biggie Smalls deixa de lado sua caneta para apostar a qualidade de sua performance em sonoridade e ritmo, com um refrão chiclete com direito a voz robótico e tudo, enquanto rima sobre as maravilhas de Cali. É uma pena que esse amor não tenha sido retribuído e as coisas tiveram o fim que levaram.

Sua música em honra a Costa Oeste é uma das várias apostas para a noite. “I Love The Dought”, com participação de Jay Z e os singles de sucesso “Mo’ Money Mo’ Problems”, com seu sample clássico de Diana Ross, e “Hypnotize”, referenciando Slick Rick, são outros exemplos de músicas para as pistas. Ambas as últimas consagradas e que, assim como “Sky’s The Limit”, ecoam até hoje dentro e fora do Hip Hop graças à proposta de Diddy em aproximar-se de uma vertente mais Pop.

Essa fixação da produção executiva em adaptar clássicos musicais da década de 80 é mais direta nas paródias de “Play Hater” e “You’re Nobody (Till Somebody Kills You)”, duas releituras paralelísticas de Big para, respectivamente, “Hey Love” do clássico grupo de R&B da Filadélfia, The Delfonics, e “You’re Nobody Till Somebody Loves You” consagrada nas vozes de Dean Martin e Sinatra. Notorious, em ambos os casos, trabalha em cima de uma matéria amorosa, reescrevendo-as de forma a soarem propositalmente idênticas no âmbito sonoro, onde demonstra mais dinamismos de entrega, mas completamente deturpadas enquanto temática, trazendo esta para o universo do Gangsta Rap.

“Life After Death” é um clássico também por isso. Por não apenas se aproveitar de uma sonoridade mais popular e comercial para expressar o sonoro grito de vitória de Christopher Wallace, um jovem que venceu vindo da periferia de Nova Iorque, contra todas as expectativas, mas também, por pegar esta mesma estética musical tão elevada e bem quista e arrastá-la para o Brooklyn, sem esquecer dos amigos que se foram e das vidas e carreiras que poderia inspirar, como de fato inspirou. Além disso, foi “apenas” o projeto mais ambicioso do melhor MC de todos os tempos, mantendo seu alto nível em vinte e quatro faixas enquanto firmava tradições que mantêm o Hip Hop vivo. E ainda fez tudo isso com uma perna quebrada, acreditam?

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