3 Faixas: O otimismo humanizado de Zudizilla

O que três músicas diferentes de um artista podem falar sobre sua carreira? Confere aqui no primeiro 3 Faixas. Foto: Enio César

O ato de estabelecer uma identidade artística anda junto com a perigosa decisão de adotar uma fórmula. A linha tênue que separa esses dois aspectos pode direcionar um trabalho em diferentes direções que se relacionam muito com a intenção do artista. Obviamente que qualquer pessoa possui seus direcionamentos comuns, tornando identificável o trabalho de cada artista.

A problemática sempre se encontra quando o formulaico ocupa o espaço para a evolução de perspectivas e narrativas. E desde seu primeiro lançamento, Zudizilla constrói um trabalho biográfico facilmente relacionável a sua pessoa, seja pessoal ou artisticamente.

Apesar do recente lançamento de seu mais novo disco, “Zulu, Vol. 2: De César à Cristo”, esse texto vai destacar três faixas que compõem outros trabalhos do rapper: “Prefácio”, “Intro 11” e “Bom Senso”.

Mesmo não formando um ciclo definido, as faixas fazem parte de uma linha temporal específica. As três músicas são um retrato biográfico do MC onde ele lida com o otimismo e autocelebração. Tudo isso é feito de uma forma bastante humana, definindo bem onde ele quer chegar e deixando claro os seus conceitos criativos.

Apesar de pautar temas similares, as faixas estão em recortes temporais específicos que vão, de certa forma, de acordo com a data do seu lançamento. Porém, mesmo com o aspecto extremamente biográfico, esses registros também são altamente identificáveis.

Eles ocupam um lugar bem aproximado de uma narrativa emotiva sobre a trajetória do rapper. Além de descrever esses momentos, essas três faixas também ensinam bastante. Isso porque o Zud trabalha com diferentes acontecimentos e pontos de vista, mas sem deixar de lado a sobriedade e até um certo pragmatismo.

E essa é a tal da identidade do trabalho do artista, onde ele usa esses adjetivos como base e vai lapidando de diferentes formas o seu discurso musical através dos versos. Seja, falando de um ponto de vista mais íntimo ou de uma coletividade que está inscrita dentro da cultura hip-hop e da negritude como um todo.

 

“2018 é a guerra!”

 

É interessante pensar em qual lugar estava o MC em 2019, quando foi lançado “Prefácio”. Natural de Pelotas (RS) e, assim como outros artistas do underground do rap nacional, Zudizilla sempre esteve fora do grande eixo de consumo artístico do país. Com o aditivo de viver em uma cidade localizada numa região com um contexto bastante específico na formação social brasileira.

Entretanto, ele já havia despontado em direção à São Paulo, na clássica peregrinação de todos os artistas que conseguem uma ascensão no desleal mercado fonográfico do Brasil. Isso se deve bastante ao lançamento de “Faça a Coisa Certa”, um clássico do hip-hop do sul do país e de quem aprecia boas rimas.

Com o ponto de partida narrativo sendo essa época específica, “Prefácio” começa com um áudio bastante peculiar do Emicida dando alguns votos para Zudizilla. O legal de se perceber aqui é que a mensagem não se limita a um espectro artístico, mas também situacional e de convivência, indo além das personas de MC e encontrando-se como indivíduos dentro da lógica social a que pessoas pretas são expostas todos os dias.

Mesmo lançado em 2019, o áudio de Leandro parece ter sido gravado em 2018, um ano bastante decisivo para qualquer brasileiro pobre, preto e sujeito às torturas diárias do capitalismo e dos projetos mortíferos do Estado. E quando Emicida fala que esse ano foi guerra, um pouco mais do que os outros anos, conseguimos perceber o tom contextual a que ele se refere.

Sabemos que ele fala de um cotidiano no qual os dois artistas vivem pelas suas construções como pessoa e como isso reflete nos seus trabalhos artísticos. Tudo isso em uma reflexão conceitual que sai de um campo particular e entra numa esfera coletiva.

Indo de encontro a esse sentimento de conflito e implosão social, essa faixa (dentre as três citadas neste texto) talvez seja a que possui uma mensagem e comportamento mais imaginativo. Quase que com um ar de personificação e desejo, “Prefácio” é feita com aspirações materiais e relacionamento.

Sempre esperando que o melhor esteja no porvir, sem se preocupar com que esses sonhos pareçam irreais. Talvez essa falta de concretude e pé no chão seja um misto de esperança com os novos ares e contexto do MC, que agora vive em São Paulo. Mas também pode ser uma maneira de lidar com uma realidade tão voraz, seja dentro do meio artístico ou não.

Por isso, apesar de todas as afirmações e autoconfiança das rimas, elas ainda são permeadas de momentos de incerteza e vulnerabilidade, onde a força encontra-se não apenas na capacidade de encontrar sucesso na carreira musical, mas de compreender e ultrapassar alguns percalços que atravessam a vida artística e social.

É um discurso que valoriza bastante o aprendizado e é cercado daquela gostosa sensação de descobrimento e início de novas experiências. Um prefácio que anuncia uma grande obra que está por vir.

 

“Nascimento: Dia 11”

 

Dando continuidade direta ao que foi feito em “Prefácio”, a faixa “Intro 11” mostra uma construção mais sólida em conceito e personalidade. Mas isso não é nenhum demérito para a faixa anterior, pelo contrário, apenas demonstra a diferença temporal e evolutiva entre a pessoa e MC que é Zudizilla. A faixa faz parte de um projeto fechado, que é o disco “Zulu, Vol .1: De Onde Eu Possa Alcançar o Céu Sem Deixar o Chão”.

Essa solidez também é encontrada na postura de Zud e em seus versos. Tratando os temas com muita transparência e sobriedade, fazendo um relato claro e perceptível sobre suas aspirações e como elas se manifestam no seu psicológico.

Apesar de a faixa e o álbum terem sido concebidos como uma obra grandiosa (e realmente são), aqui o valor se encontra no minimalismo e nesse pé no chão. Algo que já é sugerido desde o título, pois o MC decide se despir de vaidades e de alguns recursos estilísticos, para justamente despejar com liberdade os discursos que envolvem sua mente.

Nesse movimento estão envolvidas questões que englobam seu entendimento como um ser social e, obviamente, como artista. Principalmente quando esses questionamentos se interpolam e começam a se desenvolver em conjunto. Suas ações aqui preferem ocupar um campo menos material e se estabelecer em lugar de referência para a posteridade, como um princípio de criação de uma imagem para futuros descendentes diretos ou indiretos.

Existe uma noção de sua responsabilidade como representante da cultura hip-hop, da sua família e de si mesmo. Por isso a preocupação aqui é justamente conseguir colocar sua música em um local de destaque, mas sem deixar vaidades subirem a cabeça. O importante é se manter leal, seja à sua disciplina, conceito ou identidade.

Aqui a gente consegue perceber um tratamento em prol das características que compõem Zudizilla. Mais do que a importante estabilidade material, a música fala muito de uma plenitude comportamental e ética, visando uma realização que é encontrada dentro de si.

Porém, nunca é tratada como fim, mas sempre como meio, um processo em constante acontecimento. O que ele é agora é sempre uma preparação para o que está por vir e sempre pensando em quem o som irá chegar. Trata-se de um diálogo muito interessante que chega aos ouvidos do público de forma bastante inspiradora, porque se preocupa com um aspecto humano de constante construção e que se sente confortável com o fato de nem sempre estar pronto.

 

“Universo que se paga caro no que eu crio”

 

Interessante pensar que o clímax dessa narrativa esteja fora do cânone próprio do trabalho de Zud. Porém, é bom pensar em como esse direcionamento está apontado e voraz para independente de quem seja o dono da faixa. Como é o caso de “Bom Senso”, presente no disco “Otra Fita”, do produtor Sono TWS.

Dessa vez o MC vai além de seus desejos e assume nominalmente o posto como representante de sua cultura. A materialidade dos versos representa o ponto de carreira e entendimento pessoal que se encontra Zudizilla. Um show de otimismo e satisfação com seu esforço e trabalho. Mas ainda assim cercado de pressão e de medo de dar errado, visto que o rap é arte e possibilidade de transformação de realidade.

É um relacionamento de quem está chegando (e chegou) onde sonhou, mas que precisa manter os olhos abertos, atento à sua responsabilidade e o bom senso. Uma ode a maturidade e de reconhecer seus limites, seja para saber seus méritos e seus limites.

Nos versos, Zudizilla aposta numa literalidade e em rimas mais diretas. Sem firulas, mas sem esquecer da profundidade conceitual e identitária de seu trabalho. Pensando em estabelecer um diálogo claro com público e cena, ele pensa em quem anda junto com ele e colabora no seu cotidiano.

Neste capítulo final da trilogia, a gente consegue se inspirar e ver um resultado dessa postura. Afinal, toda a caminhada histórica de Zudizilla corrobora e evidencia o que é falado.  O fruto de um bom trabalho e uma eternização de linhas que respeitam a cultura hip-hop. Zudizilla figura entre os maiores, pela sua preocupação musical, conceitual e histórica.

A Inverso é um coletivo dedicado a cultura Hip Hop e o seu lugar para ir além do comum.