Review: Zudizilla – Zulu, Vol. 1

Cerca de dois anos atrás, Júlio César, conhecido no rap como Zudizilla, deu um grande salto em sua carreira: deixou Pelotas (RS), cidade onde sempre viveu, para ir sozinho a São Paulo, maior polo comercial do país e também o grande centro do hip-hop brasileiro. Essa mudança dá o pano de fundo para o segundo álbum de estúdio do MC e primeiro ato da trilogia Zulu, intitulado “De Onde Eu Possa Alcançar O Céu Sem Deixar O Chão”, palavras essas que não só se mostram no título do disco e refrão da primeira track, mas também dão o tom para os conflitos e dualidades que o MC enfrenta ao longo de todo projeto.

Embora não seja tão falado como tal, “Vol. 1” é um álbum sobre experiência negra, e uma que toca bastante a mim, JH, em particular. Vindo de Pelotas, cidade onde cerca de 10% das pessoas são pretas, Zudizilla vai ao longo do disco tocar em seus conflitos internos e experiências como negro em meios brancos, o que o faz questionar – como o próprio disse em entrevista – se não estaria agindo como um homem branco em pele preta. Ouvintes desatentos não lhe dão esse crédito pois o álbum não expõe essas reflexões em sua superfície, como fazem a maioria dos MCs que tratam deste assunto. Aqui, o debate se dá de forma mais subjetiva: termos específicos à raça ou etnia são ouvidos apenas seis vezes em 4 das 12 faixas; em comparação com o último disco de Djonga, “Histórias Da Minha Área”, essas palavras aparecem 21 vezes em 8 das 10 faixas (e esse é o número mais baixo da sua carreira). O talento de Zudizilla como escritor está, além da técnica muito apurada, na capacidade de mostrar, não só dizer. Ele conta suas histórias e o bom entendedor entenderá, com falas como a de “Sintonize” que dizem: “Uns vão nas regras do jogo, eu faço o dobro do que já esperam de mim”.

Essa profundidade foi uma grande evolução de Júlio para este projeto. Sua estreia, “Faça Sempre A Coisa Certa”, mostrou um grande potencial como artista e rimador, mas ainda deixou a desejar no acabamento, mesmo que a proposta fosse de um álbum sincero e cru ao extremo, feito em cima da história do filme homônimo de Spike Lee. O segundo disco, por sua vez, trouxe uma evolução em basicamente todas as áreas, com o rapper tendo flows muito mais marcados e característicos, uma maturidade muito maior na escrita e na abordagem dos tópicos, além de uma seleção de beats mais coesa. Enquanto antes seguia em uma estética bem mais oldschool, reverenciando a era com a qual cresceu em seus cerca de quinze anos na cultura hip-hop (entre rap e graffiti), aqui ele traz uma obra mais autêntica, imprimindo sua marca em todo o projeto.

O disco, sob produção executiva de DJ Nyack, tem seus beats majoritariamente usando influências do jazzhop e lo-fi, embora apareça em raros momentos marcas do bom e velho boombap. Com exceção de “Steez”, produzida por Coyote com scratches de Nyack, em todo o disco a produção assume um papel de fundo no projeto, dando o palco para que o rapper dance com seus flows. Entre beats suaves e minimalistas se encontram instrumentais belíssimos, como na melancólica “Não Sei Se Me Ouvem”, onde o baixo e o piano contribuem para a forte carga emocional da track; outro destaque vai para a produção na última faixa, “Foco Nos Planos”.

O álbum soa como se fossem recortes de conversas de Júlio Cesar, às vezes com o ouvinte onde ele mostra seu caminho, inspira e aconselha; às vezes consigo mesmo, onde ele se questiona, explora suas incertezas e reflete sobre sua caminhada. “Intro 11” atua perfeitamente no início por ser praticamente um sumário: tudo o que o disco dirá é assunto nessa abertura que, mesmo na primeira faixa, já é um dos pontos mais altos do projeto. Além da temática, a track mostra como se dará a estética, demonstra a escrita ímpar do artista e apresenta a voz carismática que se faz forte no projeto todo, com deliverys que sempre indicam a emoção de cada momento.

Como já mencionado, os conflitos evidenciados no refrão da primeira track e no título do disco aparecem por toda a obra, em momentos com uma tática interessantíssima: uma boa fração das faixas do álbum é apresentada por meio de duplas, como se tivessem parte 1 e 2, em que o artista apresenta abordagens diferentes para as mesmas situações. “Não Sei Se Me Ouvem” apresenta as incertezas sobre sua chegada ao topo, em que se reafirma mas ao mesmo tempo tem dúvidas sobre o sucesso. Na sequência vem “Sintonize” que mantém uma sonoridade próxima, porém, neste caso, a entrega do MC mostra o otimismo da letra que basicamente diz que “vai dar certo no fim”; enquanto o refrão da primeira questiona: “não sei se me ouvem lá”, na segunda afirma: “pra quem tá no corre existe chance”. O mesmo se dá com “STEEZ” e “RSPCT”, as duas faixas de boombap mais clássico, com a primeira mostrando um espírito combatente e a segunda uma autoafirmação muito mais segura.

Em todo o projeto a caneta é o principal destaque, sendo o que mais chamou a atenção anteriormente no MC. O avanço técnico se dá neste álbum pela excelente combinação entre técnica e capacidade de transmitir mensagens do começo ao fim, colocando sua cara e emoção em cada linha. A track mais emocional do disco, “Resposta”, começa e termina com duas mensagens de voz bem sinceras de Júlio em meio à angústia frente às dificuldades na sua mudança para SP, tendo no meio disso os versos com letra e entrega que ilustram com perfeição esses conflitos.

A cidade brilha sim
Ansiedade grita aqui
Sem grana a cidade irrita
A verdade é que a cidade brilha, mas a cidade é fria sim
Quem sabe seja só por mim, só me sobra ir sem sorte vim mas forte que os problemas todos
E que todos que me foram parte grande de um problema ou de outro
Dos problemas sou outro apenas
Entre tantos em busca na cena, eu optei
Por não seguir os passos de ninguém
Peço calma pra seguir, nos versos botei alma
Pra entregar essa aqui procês
Pode pá que é o melhor de mim
Pra que eu possa deitar e dormir bem antes das seis

Embora o flow do MC impressione logo de cara, ele se torna um pouco cansativo devido às variações serem pequenas, com a discrição da maioria dos beats não ajudando muito nessa área. Mesmo que o rapper tenha sido inteligente em por três quebras nos dois terços finais, as duas faixas de boombap e a mais comercial “Smooth Operator” (que é uma excelente canção que mostra o amor como ato revolucionário), ainda não consegue salvar seu álbum de ter seus momentos de estagnação. “Benedito” e “Paciente Zero”, embora sejam importantes pra história do disco, são passagens um tanto redundantes do ponto de vista sonoro. Há momentos em que seria interessante ver beats mais inventivos e feats que pudessem colaborar no contexto do projeto, principalmente colocando em perspectiva a excelente participação de Manoela Fortuna em “Sem Distração”. Esses convidados seriam bem vindos especialmente em refrões, que às vezes impedem as faixas de se tornarem melhores, tendo nas duas pontas os melhores do disco e alguns que deixam um pouco a desejar no meio da audição, como “Erro” e “Resposta”.

Esses pontos baixos nem de longe impedem que “Zulu, Vol. 1” seja um excelente projeto e uma amostra do porquê Zudizilla ser um dos poucos rappers do Sul que consegue atrair a atenção a nível nacional. Em “Erro” o rapper diz “Foda-se o hype, eles odeia nóis”. Embora seja uma excelente frase com muito significado, cada vez mais vem se tornando impossível para o meio do hip-hop odiar o artista que traz hinos, reflexões e olhares com a profundidade apresentada aqui. O caminho é brilhante tanto para Zudizilla quanto para Júlio César.

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