WHATS BEEF? Kendrick Lamar vs Drake

 "Como a era digital mudou completamente uma das maiores disputas do rap, transformando-a em um espetáculo das redes sociais."

Os conflitos entre MCs no cenário do rap definitivamente não são novidade. Essa “tradição” remonta a gerações, desde os primeiros relatos lá em 1981 envolvendo os rappers Kool Moe Dee e Busy Bee, e outras rivalidades emblemáticas atravessando os anos 90 com Tupac e Notorious B.I.G, os anos 2000 com Nas e Jay-Z, até a última década envolvendo Drake e Pusha-T. Algumas terminaram tragicamente, outras de forma pacífica, mas essa cultura, oriunda das batalhas de rima, invadiu a indústria musical, tornando-a algo visto por alguns como necessário para manter a competitividade entre os rappers e afiar a caneta dos envolvidos.

Mas o que torna o duelo entre Kendrick Lamar e Drake um dos momentos mais significativos do rap? A resposta é simples: estamos falando dos dois maiores nomes desta geração, em termos de sucesso, carreira e longevidade. São dois artistas que permanecerão para sempre na cena do rap. Também é importante considerar a era digital em que vivemos. Esta é uma disputa que jamais vimos em tal escala, com o público acompanhando e opinando em tempo real, defendendo seu rapper favorito, atacando o adversário ou apenas analisando a situação de forma imparcial. Mas antes de explorar esse tema, vamos entender como e quando tudo começou.

Contrariando a crença popular, não foi o verso de Kendrick em “Like That” que iniciou tudo. As provocações subliminares entre ele e Drake já vinham sendo percebidas há muito tempo, e embora ambos tenham negado que existia uma rixa, muitos versos no período de 2013 a 2014 deixaram no ar que algo estava acontecendo. Muitos apontam que foi o verso de “Control” que iniciou o confronto, onde Kendrick cita o nome de Drake e outros rappers, dizendo coisas como: “Estou tentando matar todos vocês (liricamente)” e “Isso é uma competição, estou erguendo a barra”. É claro que a maioria dos MCs citados se sentiram ofendidos e até responderam em algum momento, mas foi Drake, de forma subliminar, que instaurou uma espécie de guerra fria entre os dois. A faixa “The Language” do álbum “Nothing Was The Same” de 2013 é apontada como um ataque ao MC de Compton, que respondeu – também de forma subliminar – em seu freestyle no BET Awards daquele mesmo ano. Dentro deste período, as coisas se acalmaram até que, em 2017, antes do lançamento de “DAMN”, Kendrick Lamar lançou a faixa “The Heart Part IV”, uma longa faixa onde ele faz novos ataques em direção a Drake, mas mais uma vez, sem citá-lo diretamente. A partir daí, passaram-se anos sem nenhum ataque de nenhum dos lados e o conflito parecia ter de fato esfriado.

First Person Shooter – Drake Ft. J. Cole

Em 2023, outro capítulo crucial se desenrolou nessa história. Depois de anos sem colaborarem, apesar de sempre serem bons amigos, Drizzy convidou J. Cole para participar da faixa “First Person Shooter” em seu mais recente álbum “For All The Dogs”. E, como era de se esperar, a música foi um sucesso, não só por ser incrível em sua totalidade, mas também por contar com um verso fenomenal de Cole. O que mais chamou a atenção, porém, foi que em seu verso, Cole abordou uma disputa que estava surgindo entre ele e o rapper YoungBoy, devido a um mal-entendido entre os dois. O que ele não sabia era que outra parte de suas rimas acabaria gerando confusão. Em uma parte do verso, Cole diz: “Eu amo quando eles discutem sobre quem é o melhor MC, É o K. Dot, o Aubrey ou eu? Somos os três maiores começando uma liga, mas no momento eu me sinto o Muhammad Ali”. E essas poucas linhas foram o suficiente para atrair a atenção de Kendrick mais uma vez.

Like That – Future & Metro Boomin Ft. Kendrick Lamar

Durante esse período, muitos rumores circulavam sobre o afastamento de Drake de boa parte de seu conhecido círculo social, abrindo espaço para novos rostos no cenário do rap. Dois desses novos jogadores foram Future e o produtor Metro Boomin, que se juntaram e trouxeram K. Dot para a faixa “Like That” em seu álbum mais recente, “We Don’t Trust You”. Foi aí que a situação esquentou de vez. No seu verso, Kendrick deixou bem claro que não há “os três maiores”, como citado em “First Person Shooter”, afirmando que ele é o único verdadeiramente grande nesse jogo. Ele também mencionou o álbum “For All The Dogs”, trazendo de volta uma vibe de competição que parecia estar em segundo plano. Lamar ainda comparou sua abordagem à de Drake, usando Prince e Michael Jackson como exemplos, sugerindo que se identifica mais com Prince, cuja discografia é considerada mais profunda e artística, enquanto Jackson sempre teve um lado mais pop. A faixa causou um grande alvoroço na internet e, do dia para a noite, Drake e J. Cole se viram pressionados a responder para protegerem suas reputações.

7 Minute Drill – J. Cole

Para J. Cole, que se encontrava diante de um grande dilema ao ser desafiado por um rapper estabelecido como Kendrick, a situação era complexa devido à sua relação de amizade com o mesmo. No entanto, isso não o impediu de ter uma epifania e lançar a diss “7 Minute Drill”, como parte de seu projeto “Might Delete Later”. Na faixa, Cole lança vários ataques a K. Dot, alguns efetivos e outros nem tanto. Ele critica a discografia, a estatura, a consistência e até mesmo o caráter de Kendrick, porém, percebe-se uma insegurança disfarçada de “aviso” que Cole não consegue ocultar. Posteriormente, durante o festival de sua gravadora, o “Dreamville Festival”, ele subiu ao palco e se desculpou pela diss, uma atitude que desagradou a todos que estavam acompanhando, incluindo seus fãs, críticos e até mesmo os outros rappers que estavam de perto acompanhando toda a situação, ficaram desapontados com a desculpa. Poucos dias depois, J. Cole removeu a faixa das plataformas de streaming e encerrou sua participação na treta, transferindo toda a responsabilidade para Drake assumir.

Push Ups – Drake

E não demorou muito para Drake soltar a faixa “Push Ups”, que vazou na internet antes do lançamento, e foi uma ótima resposta. Apesar de não ser uma diss focada em Kendrick, pois também tem ataques a Future, Metro, Rick Ross e The Weeknd, ele refuta algumas linhas de “Like That” com boas punchlines como por exemplo:

 

 

(Drake aponta que os envolvidos dependem de seus sucessos para alcançar o êxito, e ainda questiona como Kendrick poderia roubar suas correntes sendo alguém de pequeno porte. Isso claramente referencia o verso de “Like That” onde ele alega estar “roubando correntes e queimando tatuagens”. “Big-steppin” é uma expressão utilizada para alguém que se envolve em atividades ilícitas nas ruas, mas também pode ser interpretada como um “grande passo”, relacionado ao tamanho do sapato, sacou? Além disso, há uma menção direta ao último álbum de K. Dot.)

 

(Drake se questiona “que diabos é isso, 20 contra 1?” ao lidar com os múltiplos ataques vindos de diversos rappers. Em seguida, ele vira o jogo contra Kendrick, que declarou em “Like That”: “Prince outlive Mike Jack” ou “Príncipe sobrevive a Michael Jackson”, com Drake retorcendo: “O que é um príncipe para um rei? Ele é apenas um filho”, em uma clara alusão às comparações entre Drake e o Rei do Pop.)

 

Além de lançar alguns golpes relacionados à conexão entre Kendrick e Top, o dono da TDE (sua antiga gravadora), que segundo Drake seria uma relação de extorsão na qual Top receberia 50% dos lucros envolvendo as músicas do rapper, ele também aponta a hipocrisia de Kendrick ao colaborar com Taylor Swift e Maroon 5, se adaptando ao público pop. O ataque pessoal mais duro acontece quando Drake faz uma linha de duplo sentido usando o nome da esposa de Kendrick, Whitney, insinuando que ela poderia estar se envolvendo com alguém próximo a Lamar.

Ao levar suas palavras para o lado pessoal, Drake abre novamente um precedente perigoso, repetindo a mesma estratégia que o levou à derrota contra Pusha-T. No entanto, parece que ele está preparado para lidar com as consequências dessa vez. A batida é excepcional, produzida principalmente por Boi-1da e Tay Keith, com um sample icônico de “Whats Beef” de Notorious B.I.G.

O ponto negativo da diss é a falta de foco no seu adversário principal. A decisão de delegar muitos ataques para outros artistas faz com que a faixa pareça mais como “um soco inicial para iniciar a briga” do que qualquer outra coisa.

Taylor Made Freestyle – Drake

Dias se passaram e sem obter resposta, Drake decidiu lançar a controversa faixa “Taylor Made Freestyle” em suas redes sociais, na tentativa de engajar seu oponente. Na música, o rapper utilizou inteligência artificial para emular as vozes de Tupac e Snoop Dogg, duas lendas da costa oeste, fazendo “ataques” a si mesmo. Essa estratégia lembra o filme “8 Mile”, onde Eminem se auto deprecia durante uma batalha de rap, tornando os ataques de seu oponente previsíveis.

Um momento de destaque na faixa é quando Drake menciona ter mais uma diss pronta para lançar, sugerindo que ela traria à tona aspectos covardes de Kendrick. No entanto, a comunidade não recebeu bem a introdução da inteligência artificial na batalha, além de considerar desrespeitoso com Tupac, que já faleceu. Drake também aproveita para brincar com a demora de Kendrick em responder, ligando o lançamento do disco de Taylor Swift na mesma semana à falta de resposta, insinuando que Kendrick não teria atenção do público. O ponto fraco, fica por conta da péssima mixagem e da introdução de I.A no rap, que culturalmente não agrega nada de positivo.

Algum tempo depois, a família de Tupac solicitou a remoção da música devido a violações de direitos autorais, resultando na exclusão do post e da música das redes sociais de Drake.

Euphoria – Kendrick Lamar

No dia 30 de abril, onze dias depois, Kendrick Lamar finalmente lançou sua tão aguardada diss “Euphoria”. Era a primeira vez que o rapper dedicava abertamente uma faixa a Drake, sem subliminares, sem rodeios, era hora de partir para a briga. A faixa começa de forma impressionante com um belo sample de Teddy Pendergrass, e calmamente Kendrick aborda a paranoia de Drake nas redes sociais, questionando seu verdadeiro lugar na cultura hip-hop e reivindicando a importância de sua própria música em comparação com a de seu adversário. Ele também se defende de possíveis mentiras que Drake possa contar em futuras diss tracks, distorcendo histórias que ouviu em “Mr. Morale & The Big Steppers”, um álbum que revela muito sobre seus traumas e personalidade.

Conforme a batida muda e a voz de Kendrick se torna mais imponente, a diss fica mais agressiva. Ele preenche a letra com punchlines habilmente trabalhadas, mas que não são tão devastadoras a ponto de destruir seu oponente. Os ataques mais incisivos são:

(Nesse ponto, Kendrick joga com a insegurança de Drake, que já confessou abertamente que não se sente reconhecido pelo público como um homem negro, algo que o incomoda profundamente.)

(Kendrick o acusa de tentar derrubar a faixa “Like That” das rádios por conta dos ataques, algo que a cultura hip-hop não aprova.)

(Uma longa sentença onde Kendrick também toca num assunto pessoal, o filho de Drake. Basicamente dizendo que Aubrey não é um bom pai e não o ensina coisas básicas como moralidade, integridade, disciplina e etc.)

 

(Kendrick devolve a narrativa “20 contra 1” de “Push Ups” dizendo que na verdade é “1 contra 20” se ele precisar bater em todos que escrevem para Drake, trazendo de volta a questão dos ghostwriters.)

(E na melhor linha de todas, ele usa referências dos filmes “I.A” e “Sexto Sentido” para criar uma punchline incrível sobre ghostwriters e inteligência artificial, coisas negativas que Drake já usou abertamente em suas músicas.)

Mas a diss também tem momentos ruins, que mostram uma certa imaturidade de K. Dot e que jogam contra ele, como por exemplo:

(Kendrick afirma que não quer transformar a disputa em algo pessoal, referindo-se ao fato de Drake ter mencionado Whitney, esposa de Kendrick, em sua última diss. No entanto, mais tarde na faixa, ele aborda o filho do rapper, o que contradiz essa declaração inicial.)

(Neste trecho, Kendrick critica a maneira como Drake faz ataques subliminares, expressando seu ódio por essa abordagem. Ele afirma ser mais direto em suas próprias diss tracks. No entanto, essa afirmação contradiz o fato de que, como mencionado anteriormente, Kendrick também fez vários ataques subliminares ao longo da disputa.)

(Em um dos momentos, Kendrick menciona uma situação infantil, sugerindo que quando vê Drake junto à rapper Sexxy Red, ele imagina que o rapper não tem interesse em mulheres e que, na verdade, está competindo com ela para ver quem rebola mais.)

Por fim, é uma diss que apesar de tocar em assuntos reciclados de maneira renovada e cirúrgica, não eliminam Drake da batalha, especialmente por ele ter ganhado experiência em conflitos anteriores, algo ali dizia que “Euphoria” não era o suficiente para enterra-lo de vez. Mas a sensação era de que sim, Kendrick estava na liderança.

6:16 in L.A – Kendrick Lamar

Após alguns dias sem obter uma resposta imediata, Kendrick adota a mesma estratégia de Drake e lança “6:16 in L.A”, como uma maneira de provocar seu adversário. O título faz referência à tradição de Drake de lançar faixas com títulos usando “hora e local” em seus discos, onde ele geralmente apresenta rimas excepcionais. Esta é, sem dúvida, uma das melhores produções boom-bap que K. Dot entregou em um bom tempo. É uma composição sólida, introspectiva até certo ponto, e nos dá um vislumbre de seu estado mental e sentimentos em relação à disputa em que está envolvido.

No entanto, como diss track, mais uma vez ela falha em entregar ataques eficazes. Talvez o destaque seja quando ele menciona possíveis traidores dentro da OVO (gravadora de Drake) e sugere que um deles estaria passando informações para Kendrick. A capa da diss faz alusão a isso, mostrando uma luva que supostamente pertence a Aubrey, claramente uma tentativa de ameaça. O sample de Al Green na batida produzida por Sounwave é um dos pontos altos da faixa. Vale mencionar que o co-produtor é Jack Antonoff, conhecido por seu trabalho no universo pop, incluindo colaborações com Taylor Swift, o que pode ser uma referência à “Taylor Made Freestyle”.

Infelizmente, “6:16 in L.A” não foi lançada oficialmente e ficou restrita apenas às redes sociais do rapper.

Family Matters – Drake

Drake respondeu rapidamente com “Family Matters”, uma faixa que transformou uma batalha de rimas em uma batalha de acusações sérias. Antes de mergulharmos na letra, é crucial deixar claro que todas as acusações feitas por ele e Kendrick Lamar a partir de agora NÃO SÃO VERDADEIRAS até que sejam comprovadas. Por enquanto, são apenas estratégias que os rappers escolheram usar a seu favor. Vamos analisar as narrativas mantendo isso em mente, certo? Seguimos em frente.

 Drake optou por lançar uma enxurrada de acusações com “Family Matters”, uma faixa com mais de sete minutos de duração, dividida em três partes. A primeira parte começa de onde “Push Ups” parou, com um refrão cativante e uma batida poderosa. No primeiro verso, Drake lança ataques sérios, questionando a credibilidade de Lamar nas ruas, acusando-o de ser uma espécie de falso profeta que não segue seus próprios “mandamentos” e revelando que um dos filhos de Kendrick seria do seu atual braço direito, Dave Free.

No segundo verso, ele muda o foco para Rick Ross, A$AP Rocky e The Weeknd novamente. Apesar de ser um verso afiado com uma cadência impressionante, para sua desventura, ninguém, exceto ele, parecia se importar com isso naquele momento. Se fosse uma faixa separada, teria uma percepção melhor, mas a falta de foco em Kendrick nessa parte é um ponto fraco da faixa.

No terceiro verso, ele volta a mirar em K. Dot, e é aqui que suas maiores acusações surgem. Começando com uma queixa sobre Kendrick supostamente solicitar à família de Tupac que entrasse com um processo para retirar “Taylor Made Freestyle” do ar, apontando para a hipocrisia. No entanto, a mais séria é quando Drake sugere que Lamar teria agredido sua esposa, Whitney, e que teria contratado um grupo de “gerenciamento de crise” para esconder o caso. Mais uma vez, é crucial reforçar que nada do que é dito na faixa foi comprovado, o que tira o peso das acusações.

As melhores linhas são:

(Drake sugere que Kendrick é apenas um ativista de fachada, nunca retornando à sua comunidade para semear “árvores de dinheiro”, fazendo referência à música “Money Trees” de seu álbum “Good Kid, M.A.A.D City”.)

(Aqui, Drake relembra a história contada por Kendrick na faixa “Duckworth” do álbum “DAMN”, onde ele menciona que Top (o dono da TDE, seu antigo selo) esteve prestes a roubar um estabelecimento onde o pai de Kendrick trabalhava. Drake conecta a punchline sugerindo que Top roubou o pai e agora está roubando o filho. “Stunna” e “Wayne” referem-se a Birdman e Lil Wayne, que têm um álbum chamado “Like Father, Like Son”. Ambos também estiveram envolvidos em uma situação semelhante à mencionada por Drake)

(Drake monta um esquema complexo, referenciando as linhas de “Like That”, onde Kendrick se autoproclama o Prince do rap. Ele inverte os papéis e sugere que está lançando luz sobre os segredos obscuros de Lamar, assim como a pele de Michael Jackson, que foi se tornando branca devido ao vitiligo. Há outra alusão a Michael rezar para que suas características mudassem para que as pessoas acreditassem que ele era branco, e Kendrick fazendo versos para um público majoritariamente branco (Taylor, Maroon 5, Lonely Island) para ser aceito. A palavra-chave que conecta tudo é “feature”, que significa participação em músicas e também características físicas ou pessoais, tornando a punchline extremamente bem elaborada.)

Mas assim como “Euphoria”, ela também tem momentos desagradáveis como:

(“Sempre rimando como se você fosse libertar os escravos”, sim Drake, qual o problema nisso!?)

(Apenas Drake dizendo que realmente não existe “3 maiores”, que apenas seu órgão sexual é grande e que existe um vídeo provando. Essa linha já seria ruim se estivéssemos presenciando uma briga entre dois moleques da quinta série, numa batalha de rap então… não tem defesa.)

No geral, a diss atende às expectativas, pois apresenta ataques que colocam Kendrick em uma situação inédita em sua carreira. Claro, sem provas, as acusações perdem relevância, mas geram discussões que nunca foram consideradas anteriormente em sua trajetória. Certamente, a confirmação dos fatos prejudicaria significativamente sua imagem, mas por enquanto, isso joga mais contra do que a favor. A faixa é sólida, com três ótimas batidas e versos excelentes. Poderia ser ainda melhor se o foco estivesse totalmente no adversário principal, mas ainda assim é uma resposta robusta. Neste momento, não havia um vencedor claro, e Kendrick tinha mais uma chance de encerrar seu oponente.

Meet The Graham’s – Kendrick Lamar  

Com o objetivo de ofuscar “Family Matters”, K. Dot lançou “Meet The Grahams” poucos minutos depois. E se havia alguma dúvida se ele levaria para o lado pessoal, o título da faixa praticamente removeu qualquer incerteza. A letra basicamente se apresenta como uma carta para os membros próximos da família de Drake, onde o objetivo é expor seu adversário como uma pessoa negativa. No primeiro verso, ele é incrivelmente desrespeitoso ao se dirigir ao filho, Adonis. Constrói o verso como alguém que está ensinando boas maneiras ao garoto, essencialmente transmitindo a mensagem de “se você não consegue criar seu filho corretamente, deixe que eu faça isso por você”. No segundo verso, direciona suas palavras para Sandra e Dennis Graham, mãe e pai de Drake. Este verso é, sem dúvida, o mais violento da faixa, com sérias acusações contra o rapper. Ele começa falando para a mãe que seu filho usa mulheres para preencher seu vazio, alega que Aubrey usa o pai como prova de sua negritude, ao mesmo tempo que o culpa por seu vitimismo, vício em apostas e psicopatia. Diz que seu filho é um homem doente com pensamentos doentios, que usa mulheres negras para satisfazer seus fetiches sexuais, entre outras acusações. A lista de ofensas é extensa, mas uma das mais graves é a alegação de que ele estaria mantendo abusadores sexuais em sua folha de pagamento (trabalhando na OVO), o que prejudicaria muito sua carreira se fosse comprovado.

No terceiro verso, o clímax da diss começa com Kendrick revelando novamente ao mundo uma segunda filha de onze anos que Drizzy estaria escondendo, repetindo os mesmos passos de Pusha-T em “Story Of Adidon”, que fez o mesmo com relação ao filho, Adonis. O último verso é uma conversa direta com Aubrey, chamando-o de falso, viciado, imaturo, entre outras ofensas.

A diss possui várias falhas, e aqui estão algumas delas: a música é fraca, apesar de ter contado com a produção de The Alchemist, Lamar não se preocupou em criar uma faixa que as pessoas teriam vontade de ouvir repetidamente. As notas de piano criam uma atmosfera sombria, mas o loop se torna cansativo nos primeiros dois minutos. A composição é muito superficial para um rapper de seu calibre, e quase não há metáforas, punchlines ou duplos sentidos; é apenas uma carta aberta que, se não fossem as acusações graves, ninguém teria paciência para ouvir mais de uma vez. Entendo que seja um conceito que o MC adotou para atacar seu oponente, mas conceito não significa qualidade. E não vamos nem entrar na questão da falta de provas para sustentar as acusações, o que torna a faixa ainda mais prejudicada. Ela serviu apenas para ofuscar a resposta de Drake, e nesse aspecto, ela cumpriu muito bem seu papel.

Not Like Us – Kendrick Lamar

Sem descanso, Kendrick alimenta a batalha com outra faixa em menos de 24 horas após o lançamento da última. “Not Like Us” veio para colocar Drake contra a parede com as mãos para o alto. Ao perceber a repercussão negativa de suas acusações contra o rapper de Toronto, ele fez o que todos os seus fãs esperavam: misturou suas denúncias a um excelente ritmo, um flow envolvente e muitas linhas ferozes. Aqui, além de mencionar novamente parceiros da OVO envolvidos em casos de abuso sexual, agora adiciona a acusação de pedofilia como um dos crimes cometidos tanto por eles quanto por Drake. Além disso, ele aponta que o rapper tem muitos inimigos e que não deveria ter se envolvido em uma briga que sabia que ia perder. Ele também cita o desrespeito com Tupac, chamando Drake de colonizador por ter se apropriado da cultura de Atlanta para benefício próprio, entre outros insultos.

Neste momento, não havia como negar: Kendrick Lamar estava dominando seu adversário no ringue. Ele não apenas fez uma música melhor, mas também colocou a internet inteira para dançar enquanto acusava Drake de pedofilia. Além de estar sendo ridicularizado e hostilizado, Drake estava perdendo também nos números, algo em que ele geralmente se destacava mais, pois “Not Like Us” teve a maior estreia de uma música de rap na história dos streamings. A música não é perfeita, apresentando seus defeitos como rimas básicas para preencher espaço, e o fato de Lamar ainda não ter respondido a nenhuma das acusações é um ponto negativo. Dito isso, vamos destacar algumas das boas linhas da faixa:

(Dot diz que bateu os pregos do caixão de Drake e que vai fazer ele andar por aí como Teezo. Teezo Touchdown é um rapper/cantor que possui um estilo muito peculiar, um dos acessórios que ele usa, são inúmeros pregos amarrados ao cabelo, resumindo: ele vai fazer Drake andar por aí como um morto-vivo.)

(Ele usa duplo sentido quando diz que Drake está tentando acertar uma nota musical, e que provavelmente é LÁ-MENOR. Além da nota musical, é claro que ele está se referindo a meninas menores de idade, reforçando a narrativa de pedofilia.)

(Um pedido para Drake parar de se esconder através de posts em redes sociais e responde-lo, aqui ele usa a expressão “hands-on” que significa: pôr as mãos em alguém, no sentido violento, dizendo que está disposto na briga, mas que seu adversário só anda colocando as mãos na manicure, já que Drake começou a pintar as unhas recentemente.)

(Expõe Drake dizendo que ele teve um caso com uma ex-namorada de Lil Wayne enquanto ele ainda estava na cadeia, e ele diz que Drake tatuou Wayne no braço como pedido de desculpas, o que é no mínimo constrangedor, visto que os dois sempre foram muito amigos. Não se sabe a linha do tempo dos acontecimentos, mas Kendrick usa isso a seu favor.)

A batida também é boa parte do porque a faixa é um acerto e tanto, o estilo resgatado da era de ouro no norte-californiano por Dj Mustard ajuda a carregar os ataques de forma eficiente, Drake estava nas cordas e precisava se mexer pois estava sendo varrido neste momento.

The Heart Part 6 – Drake

Chegamos ao desfecho iminente deste confronto, onde lamentavelmente para Drake, sua última resposta não alcançou o mesmo êxito das anteriores, encerrando assim a disputa. As habilidosas linhas e esquemas de rimas não foram capazes de superar os ângulos controversos que ele optou por explorar. Momentaneamente, mudaremos a dinâmica do texto para analisar essa diss em particular. Vamos às linhas:

O grande plot-twist, que prometia ser decisivo na determinação do vencedor, surge logo nas primeiras linhas, quando Aubrey alega que a revelação bombástica feita por Kendrick em “Meet The Grahams” sobre a suposta filha foi na verdade fabricada por ele mesmo. Se essa alegação fosse provada, sua vitória seria incontestável. Imaginar seu adversário criando uma música em torno de um conceito que seria usado para revelar algo inexistente seria genial. Contudo, como a maioria das acusações feitas por ambos os lados, não há provas disso. Na imaginação popular, seria fácil confirmar com um print, um áudio… Mas infelizmente isso não ocorreu.

Ao invés disso, Drake preferiu focar em outro print, o de um like que Dave Free largou em uma das fotos de Whitney com seus filhos no Instagram, que inclusive é a capa da diss.

Ele questiona por que Whitney não refutou as acusações até agora e por que ela segue Dave e não Kendrick nas redes sociais. Além disso, ele aponta que o MC não tem visto os filhos há seis meses. O que Drake não consegue entender é que ninguém se importou com essa denúncia, porque, se for verdade, isso não vai manchar sua reputação. Problemas conjugais, separações e distância dos filhos são comuns na vida adulta. No entanto, violência doméstica seria capaz de arruinar uma carreira, mas ele parece não se preocupar em provar isso.

As próximas duas sentenças, são usadas para tentar entender o por que Kendrick está acusando cegamente o rapper de pedofilia e abuso sexual e se defender. Ele começa com:

Ele começa alegando que Kendrick usou vídeos do TikTok para se informar sobre os possíveis crimes sexuais envolvendo Drake e afirma que agora entende por que há tanta obsessão em torno do assunto. Segundo ele, isso ocorre porque Lamar teria sido molestado quando criança, baseando-se na faixa “Mother I Sober” de seu último disco. Claramente, ao fazer essa conexão, o rapper mostra que não fez a lição de casa corretamente, pois, ao contrário do que ele diz aqui, na letra Kendrick não menciona em momento algum ter sido molestado. O que ele diz é que sua mãe foi vítima disso, o que o traumatizou para sempre. Mais uma falha grave de composição.

Já nessa, ele tenta se defender das acusações:

 “Apenas para deixar claro, me sinto enojado, sou muito respeitado, se eu estivesse fodendo menores de idade eu juro que já estaria preso, eu sou muito famoso para essas merdas que você está sugerindo, mas essa não é a lição, claramente, há uma mensagem mais profunda”

Embora seja algo muito difícil de se defender, pois é complicado se provar inocência num caso desses, essa é disparada uma das piores maneiras de fazê-lo.

Mas há momentos em que ele dá invertidas muito mais criativas e mostra que tem capacidade de bloquear os ataques de Kendrick, como por exemplo:

Fazendo referência à linha “LÁ MENOR” de “Not Like Us”, aqui Drake monta sua punchline também em volta de notas musicais, ele diz: “Você mencionou menores, mas precisa ser mais esperto e falar para os fãs “quem era? ”, você pensou ter matado o maior”. Para traduzir de uma maneira mais fácil de entender, A MINOR (menor) = LÁ MENOR, B SHARP (seja esperto)  = SI SUSTENIDO, D FLAT (flat pode ser usado para dizer que alguém morreu, está deitado ou na horizontal)  = RÉ BEMOL e D MAJOR (o maior, o brabo, o rei) = RÉ MAIOR.

Um novo golpe que traz à tona um episódio do passado, Drake recorda que em 2018 Top e Kendrick Lamar teriam saído em defesa de XXXTentacion e R. Kelly quando o Spotify anunciou que removeria suas músicas após serem acusados de crimes, X de violência doméstica e Kelly de pedofilia, fatos que foram confirmados mais tarde. E é provável que essa intervenção tenha surtido efeito, já que o catálogo dos dois artistas permanece disponível na plataforma. Este é um dos raros ataques que possui base sólida, evidência concreta e atinge em cheio seu oponente. No entanto, é importante ressaltar que apesar de Drake demonstrar repúdio a homens envolvidos em violência doméstica, ele defendeu Tory Lanez quando este foi acusado de atirar em Megan Thee Stallion, Megan que inclusive também fez vários ataques semelhantes à Kendrick na sua faixa “Hiss”. Além disso, colaborou em músicas e deu um salve no Chris Brown em “Family Matters”, o qual também tem histórico de agressão contra sua ex-esposa, Rihanna. Neste caso, a hipocrisia é compartilhada.

Desse modo, após todas a ponderações, Drake sucumbiu aos poderes da internet e não teve chance de retornar para a luta, sua diss continuou ofuscada pelo sucesso de “Not Like Us” e naturalmente a batalha chegou ao fim.

Considerações finais

Acompanhar toda essa situação online gerou uma mistura de sentimentos para os fãs do hip-hop e suas vertentes. Apesar da empolgação em torno da batalha entre dois grandes nomes do rap atual, à medida que as coisas avançavam, ficava claro como a era digital moldou não só a qualidade, mas também o conteúdo das músicas lançadas até agora. Parece que a cada novo verso, havia uma tentativa evidente de arrastar o adversário para o caos das redes sociais, onde qualquer assunto se transforma em motivo de cancelamento ou piada online. Não é coincidência que ambos os artistas tenham recorrido a argumentos vazios e acusações infundadas para compensar a falta de ideias e criar polêmicas superficiais e inconsequentes.

Por isso, acredito que até “Euphoria”, estávamos diante de uma batalha focada mais nas habilidades e na competição saudável do que em quem conseguia gerar mais controvérsias para entreter a internet. Claro, houve momentos marcantes depois, como mencionamos, mas raramente o destaque era para as melhores rimas ou as metáforas mais profundas. Era mais sobre quem conseguia alimentar melhor suas narrativas e descaracterizar seu oponente, assim como Pusha fez em “Story Of Adidon”, só que de uma maneira bem menos infundada e impactante.

Apesar de toda a diversão momentânea, ao refletir sobre como esse conflito evoluiu, é triste considerar que, se as acusações de ambos se mostrarem verdadeiras, isso poderia significar o fim da linha para suas carreiras. Por outro lado, se tudo não passar de falsas polêmicas, testemunhamos uma das disputas mais vazias dos últimos tempos. No fim das contas, quem realmente saiu ganhando foram os fãs, que receberam bastante material dos mcs, e as gravadoras, que lucraram milhões com as reproduções e acessos, enquanto os rappers viram suas imagens serem prejudicadas.

 

A Inverso é um coletivo dedicado a cultura Hip Hop e o seu lugar para ir além do comum.