A temporada 24 do hip-hop “anos dois mil” chegou ao fim de um jeito marcante. Num ano em que o gênero cravou mais uma página histórica, quebrando recordes, dominando a mídia e sendo comandado pelos maiores nomes da cena, era mais do que justo que o encerramento viesse pelas mãos de ninguém menos que mr. Kendrick Lamar. Embora se ouvisse um burburinho sobre o rapper aproveitar sua apresentação no Super Bowl 2025 para lançar mais um trabalho, era difícil de imaginar que ele viria sem um anúncio, ou até mesmo um pequeno rollout para apresentar o novo projeto ao público. Mas se você ouviu “Watch the party die”, acho que ficou bem claro o que Kendrick pensa da indústria e seus novos costumes desagradáveis e antiquados, né? Foi partindo daí, que do mais absoluto nada, “GNX” foi lançado.
Ao revisitar a recente batalha entre Kendrick Lamar e Drake, fica evidente que o confronto foi muito além de uma simples disputa por supremacia no rap. Kendrick não estava enfrentando apenas um rival, mas o que Drake passou a representar dentro da cultura hip-hop. Mais do que um artista em busca de sucesso e lucro, Drake se tornou o símbolo de um problema maior: a apropriação cultural sistemática promovida pela indústria. Esse tema, ignorado por anos, foi colocado novamente em evidência por Kendrick, transformando o embate em um marco necessário e uma discussão urgente que o hip-hop precisava ter. Mais do que uma diss ou um hit, esse momento pedia uma obra que capturasse toda essa discussão e a transformasse em um marco, uma obra que não apenas registrasse impacto cultural, mas que também funcionasse como uma virada de chave, buscando redefinir a mentalidade da nova geração dentro do hip-hop.
E é exatamente aí que entra GNX. “Kendrick é excelente em criar momentos” — declara DJ Akademiks, de forma não irônica em algum podcast. E “momento” é a palavra-chave, não apenas para descrever este disco, mas também para definir essa nova fase do rapper que parece ter decidido reunir dezenas de momentos marcantes e transformá-los em faixas, onde cada uma carrega seu próprio clímax, pensado para impactar e satisfazer o ouvinte ao mesmo tempo. A começar com faixas como “squabble up” e “peekaboo”, que goste ou não, é impossível ignorar o humor com o qual ele trata esse tipo de música. Apesar de abusar de refrãos repetitivos, os versos se destacam junto ao flow afiado e as batidas incrivelmente dançantes feitas por seu fiel escudeiro Sounwave, que deixa sua assinatura em todas batidas ao lado de colaboradores. Já em faixas mais introspectivas, como “luther” e “gloria”, ele e SZA mostram suas emoções mais vulneráveis e sensíveis, explorando recortes mais profundos. O carisma de “gnx” e “dodger blue”, que são o puro suco de costa oeste, é outro destaque, mostrando Kendrick com mais liberdade do que nunca. Pela primeira vez, ele parece se despir das pressões, e está se divertindo nas faixas sem perder a relevância que o consolidou no topo.
Mas quando ele decide trazer seriedade, ele o faz com uma naturalidade impressionante. Na abertura com a intensa e dramática “wacced out murals”, Lamar parece rimar com a fúria de quem enxerga seu legado ser exposto e atacado, até mesmo por nomes pelo qual ele possui certa consideração, citando por exemplo: a frustração de Lil Wayne por não ter sido escolhido para performar no Super Bowl e até mesmo do Snoop Dogg, por ter compartilhado a diss “Taylor Made Freestyle” em suas redes sociais. Isso deixa claro que Kendrick se manteve antenado na internet pelos últimos meses. O beat, com sua pegada cinematográfica e agressiva, amplifica essa atmosfera, tornando a faixa ainda mais imersiva.
Em “man at the garden”, que eu já considero uma das faixas mais autênticas e reflexivas de sua carreira, ele dá uma verdadeira aula ao interpolar “One Mic” de Nas. Na música, ele repete a frase “Eu mereço tudo”, não só para reafirmar suas conquistas, mas também os sacrifícios que fez para alcançá-las. Mais do que um simples relato pessoal, a canção se transforma em um manifesto filosófico, onde ele não apenas reafirma seus valores, mas compartilha suas experiências como um guia, uma inspiração para sua família e fãs, incitando-os a também alcançar o sucesso que ele conquistou. O segundo e o terceiro verso são um espetáculo à parte, dignos de ficar entre os melhores que ele já escreveu ao longo de sua carreira.
Outra habilidade que Kendrick se preocupa em adicionar em suas músicas é o storytelling, a arte de transportar o ouvinte para um lugar específico, rico em detalhes e narrativas vívidas. Em “heart part. 6”, ele nos leva a uma viagem de volta aos primeiros dias de sua antiga gravadora, TDE. Ver Jay Rock assinando seu primeiro contrato, aprender com a escrita de Ab-Soul, ou o acolhimento de Schoolboy Q, são apenas algumas das situações que ele faz questão de compartilhar. Essas histórias não são apenas uma retrospectiva; elas servem para nos mostrar como tudo começou, criando uma conexão mais profunda entre o passado do rapper e seus fãs, enquanto nos coloca no epicentro do movimento que ele ajudou a moldar. E para mostrar como o disco todo é versátil e transita por várias sonoridades, “tv off” aparece como uma versão light de “Not Like Us”. É uma porrada com vários ápices, sendo o mais icônico na virada do beat, onde o rapper grita em plenos pulmões o nome do Dj Mustard, que foi basicamente o engenheiro por trás de toda essa recente fase do rapper e também por boa parte da sonoridade Bay Area do projeto.
Mas que unifica as faixas do álbum é a essência inconfundível da West Coast, presente em quase todas as produções. E falar de Costa Oeste sem mencionar Tupac Shakur é impossível. Conhecido como a maior influência de Kendrick, era inevitável que esse legado se manifestasse de forma intensa neste trabalho. É assim que surge “reincarnated”. Desde o início, a faixa já se torna especial por trazer Kendrick rimando sobre um dos beats mais icônicos de Pac, “Made Niggaz”, além de usar um flow bem semelhante. Mas ele não para por aí. Assim como o título sugere, o MC nos transporta para a vida de artistas negros que, ao alcançar o sucesso, viram seus traumas potencializados, tornando-os mais vulneráveis aos próprios vícios — uma trajetória que frequentemente termina de forma trágica. A faixa culmina em um clímax de tirar o fôlego, digno de um roteiro cinematográfico, consolidando-se como uma das mais impactantes de sua carreira. Assim como em “The Heart Pt. 5”, que parece ser uma obra-irmã, Kendrick utiliza a ideia de “reencarnação” para dar voz a figuras emblemáticas, como Nipsey Hussle, transmitindo mensagens profundas por meio deles.
E ao ouvir a crueza e intensidade de “GNX”, é impossível não remeter outra semelhança entre os dois rappers: o disco “The Don Killuminati: The 7 Day Theory”, de Tupac, sob o alter ego Makaveli. Com sua persona estrategista e revolucionária, Makaveli representava uma faceta mais sombria e provocativa de Pac, que acreditava na reencarnação e usava o misticismo como ferramenta de expressão. Gravado com uma urgência quase que profética, o álbum foi lançado postumamente, meses após a icônica diss “Hit’Em Up” (assim como “GNX”), e poucas semanas antes da morte trágica de Tupac. Curiosamente, The Don Killuminati também foi lançado em novembro e também possui 12 faixas, coincidências que fazem deste álbum, uma espécie de sucessor espiritual. Ambos compartilham não apenas uma sonoridade crua e visceral, mas também uma carga menos emocional e mais simbólica, que reflete um momento de transição e autossuperação dos rappers.
“GNX” é com certeza um dos discos mais acessíveis da carreira de Kendrick Lamar, pois ele soube aproveitar um momento histórico do rap para fazer dele o seu próprio. E eu compreendo o fã mais hardcore do rapper, que não venha a recepcionar tão bem esse álbum, por estar acostumado a ver o rapper carregar conceitos e estética em seus trabalhos; mas este foi o Kendrick Lamar de 2024, aquele que dominou os holofotes, que retomou o trono e que chacoalhou novamente a cena. Esse álbum é uma cápsula de tudo que ele representou ao longo do ano, e se você vibrou com tudo que ele produziu até aqui, o disco é a volta da vitória, uma celebração. Em relação ao seu lugar dentro da discografia do rapper, ainda é cedo demais para fazer uma avaliação definitiva. No entanto, o tempo, como sempre, será seu aliado. À medida que se ouve o álbum repetidamente, ele se revela mais divertido, cresce e se solidifica, mostrando que sua importância vai além do presente e que, com o passar dos anos, se consolidará como mais uma peça essencial no legado de Kendrick. Pois ele acertou não só no timing, mas na escolha das batidas e participações, e provavelmente, vai acertar mais uma penca de prêmios no próximo ano. E por mais que isso doa em alguns, ele definitivamente não precisará da ajuda da Universal Music Group para isso.