Pele negra, bairro branco: J.Cole, racismo e paranoia

“Neighbors”, faixa lançada em 2016, inspirada em uma história verídica, traça o panorama e os desafios de ser um homem negro na América

 

                                  J.Cole e Scott Lazer nas gravações do documentário “4 Your Eyes Only”/ Foto: Anthony Supreme

 

Jermaine Lamarr Cole, ou mais conhecidamente só J.Cole, é um contador de histórias. E dos bons. Como um dos prospectos mais influentes do cenário lírico do Rap norte-americano na última década,  Cole desde muito cedo demonstrou em seus trabalhos que a arte e a vida andam lado a lado, ao ponto de se fundirem e se confundirem. A arte não é a realidade, mas se torna uma das ferramentas ou meio para se entendê-la. Porém, o que fazer quando a linha que divide a arte e os fatos parece tão fina?

 

Em março de 2016, durante o processo de construção do seu quarto álbum, “4 Your Eyes Only”,  J.Cole teve a casa que usava de estúdio, na Carolina do Norte, invadida pela SWAT. Após as denúncias de um vizinho, a força-tarefa norte-americana abriu uma investigação no local sob a suspeita de que a residência estaria funcionando como um ponto de venda de drogas. Para o azar dos policiais, J. Cole não estava presente no momento da invasão e tudo que encontraram foi uma casa vazia com alguns microfones no porão. O ocorrido foi gravado pelas câmeras de segurança da casa e a história narrada em forma de música na faixa “Neighbors”, lançada em dezembro do mesmo ano.

 

Em entrevista ao Complex, Elite, produtor executivo do disco, deu mais detalhes da situação. “A história de ‘Neighbors’ é louca. Basicamente, Cole alugou uma casa na Carolina do Norte.  É como um espaço de trabalho criativo para todos os artistas e produtores da Dreamville. Nós o chamamos de Sheltuh, e muito do álbum foi gravado lá. É basicamente um estúdio em um porão na floresta.  Também fica nos subúrbios de um bairro bem rico na Carolina do Norte. Então você tem, predominantemente, afro-americanos entrando e saindo desta casa. Ubers chegando, e de vez em quando você vê um grupo de nós do lado de fora na varanda fumando maconha. Então os vizinhos começaram a ficar realmente paranoicos”, explicou o produtor.

                                Foto: Kazmo Kida

 

No documentário do disco, disponibilizado no canal do YouTube da gravadora de Cole, Dreamville, é possível ter acesso às imagens das câmeras de segurança da casa durante a entrada dos policiais. Os vídeos da invasão também serviram de material para os visuais do clipe da canção.

 

O episódio tragicômico serve como ponto de partida para uma reflexão trazida por Cole na composição da música. Com ou sem poder financeiro, ser uma pessoa negra na América é, inevitavelmente, estar fadado a ser vigiado, vivendo em um território hostil. “Um homem negro em um território branco”.

 

Vizinhança maldita

                                                    Reprodução/ Dreamville – Youtube

 

O primeiro som que pode ser ouvido nos primeiros segundos de “Neighbors” é o sample da faixa “Forbidden Fruit”, do segundo disco de J. Cole, “Born Sinner”, lançado em 2013, sendo tocado ao contrário. O sample, como elemento indispensável da cultura Hip-Hop, nasce da possibilidade de reinterpretar algo que já existiu em outro tempo, mais atualizado, com mais nuances. Partindo desse ponto, é possível que Cole   revisite o próprio trabalho como forma de estabelecer uma relação de metalinguagem com o público. Cole agora parece entender, de forma mais complexa, as responsabilidades e desafios que a fama e o dinheiro tem sobre o corpo de um homem como ele.

 

Logo em seguida, a voz soturna e pesada de Cole preenche o espaço vazio, carente de versos, proferindo a frase “acho que meus vizinhos pensam que eu vendo drogas”. O tom de voz de Cole entrega o espírito de um homem exausto. E então, prossegue na estrofe exclamando: “estou voltando para o sul, mãe”.

 

O lugar a que o rapper se refere é o estado da Carolina do Norte,  na região sul dos Estados Unidos. Em seu início de carreira, quando foi apadrinhado por Jay-Z, J. Cole havia saído da cidade de Fayetteville, localizada no condado Cumberland,  onde cresceu e passou parte da sua adolescência, para tentar ter êxito no epicentro econômico de Nova York. Porém, ao retornar ao seu estado, Cole não voltou para sua cidade natal.

 

Fayetteville fica a mais de 90 quilômetros de distância de onde J. Cole comprou sua casa-estúdio, na região norte de Raleigh, capital da Carolina do Norte. Com 45 mil habitantes, o chamado North Raleigh, possui uma das áreas mais financeiramente abastadas do estado. Segundo o United States Census Bureau, em 2022, a renda familiar média da cidade de Raleigh era de 75  mil dólares, quase 10 mil dólares a mais do que a média inteira do estado da Carolina do Norte.

 

Raleigh, apesar da composição étnica diversificada, assim como a maioria dos estados da federação, apresenta uma forte predominância de indivíduos brancos em seu território na comparação com a presença de afro-americanos e demais etnias. De acordo com os dados coletados, em 2010, a população branca chegou a representar aproximadamente 57% do número de habitantes totais da cidade, 28% a mais do que a população negra da região na época.

 

“Um homem negro em território branco”, assim, de forma simples mas acertiva, J Cole pinta o panorama da sua volta a Carolina do Norte em “Neighbors”.

 

Nas primeiras estrofes da música, Cole apresenta os dilemas da situação, comenta sobre o caminho que percorreu com a mentalidade da vila, toda dor que passou longe de casa em busca da sobrevivência, pela busca de viver o sonho americano. Na posição em que se encontrava, antes da fama e do dinheiro, coisas como a possibilidade aterrorizante de estar morto aos 16 anos, pelas condições marginalizadas que se apresentavam para ele, passeavam sobre sua cabeça.

 

Essa mentalidade de ter que fazer as coisas acontecerem muito cedo, da pressão de ter que “vencer na vida”, era uma questão latente para Cole. Porém, também é algo que  reflete as experiências de vida de outros jovens negros oriundos de bairros periféricos dos Estados Unidos, que, assim como ele, se veêm desde muito novos assumindo responsabilidades de tamanho inversamente oposto a pouca idade que tem. A pobreza  faz com que esses adolescentes acabem entrando mais cedo no mercado de trabalho e, se assim não o fazem, pela falta de perspectiva, a criminalidade termina sendo o destino muitos desses meninos, longe de qualquer possibilidade de uma juventude normal.

 

Mas, Jermaine passou dos 16 anos, contrariou as estatísticas e driblou o destino programado pelas opressões que o cercavam, a música o permitiu prosperar. Não deveria esse ser o fim das suas lamúrias? Se toda a dor provocada pela falta, pela escassez, sumiu, o que o aflige? A busca pelo sonho americano, a busca pela humanidade subtraída e a possibilidade de encalça-la, traz consigo uma percepção inevitável. Mesmo com todo dinheiro e reconhecimento ao seu alcance, para a sociedade, Cole nunca será um homem branco. E então,  dessa vez, foi a polícia quem bateu à sua porta para alertá-lo disso.

 

Durante sua apresentação no festival Made in América, em 2017, Jermaine expressou seus sentimentos em relação à música, sobre os motivos que levaram a escrever-lá e esclareceu sua mudança para Raleigh.

 

“Há 2 anos atrás, eu terminei a tour – do álbum Forest Hills Drive –, eu olhei para minha vida, eu olhei para minha carreira e pensei ‘sabe o que?’. Eu cheguei num ponto que conquistei algumas coisas, estou feliz, é hora de voltar para casa. Estive por muito tempo em Nova York tentando fazer isso acontecer. E então eu fui. A primeira coisa que fiz quando voltei foi ir aos subúrbios comprar uma casa… E eu peguei essa casa por um motivo, apenas por um motivo. Sempre foi meu sonho ter uma casa com um estúdio dentro. E trazer pessoas para dentro dele sempre foi meu sonho”, comentou Cole, que logo em seguida projetou as imagens da invasão no telão.

 

“Eu acho que foi o vizinho que mora atrás. Porque toda vez que ele está lá cortando aquela grama, ele libera uma energia racista, eu posso sentir. A real é que lá de longe eu consigo ouvir ele sussurrando algo como ‘esses negros malditos na minha vizinhança’. Ele chamou a polícia e eles fizeram o que fizeram. Mas apesar dele estar errado, eu me responsabilizo um pouco. E eu digo o porquê. Toda vez que um cara preto ganha um dinheiro nesse país,  para qual lugar ele se muda? 9 em 10 vezes, ele vai morar do lado de alguém que não se sente confortável com a sua presença. Mas nós vamos assim mesmo, porque nos sentimos realizados. Mas o que a gente deveria fazer é comprar uma propriedade no bairro que viemos e construir uma comunidade melhor”, concluiu noutro trecho.

 

Paranoia

Trayvon Martin: 10 anos do assassinato que originou o Black Lives Matters - Revista Galileu | Sociedade

                        Foto: David Shankbone

 

Os efeitos do racismo na psique de uma pessoa negra são imensuráveis. E talvez, dentre as mazelas provocadas pela desumanização racial, seja aquela com maior escassez de pesquisas e dados, pela própria dificuldade de se documentar essas psico-agressões. J. Cole assume ter passado por uma espécie de stress pós-traumático que o impossibilitou de dormir tranquilamente desde o episódio da invasão da sua residência. Na música, o rapper utiliza a palavra “paranoia”, que no dicionário está relacionado ao conceito da psiquiatria a qual a pessoa diagnosticada apresenta casos de delírios e mania de perseguição.

 

O psiquiatra martinicano Frantz Fanon, apesar não utilizar da palavra “paranoia”,  mas sim “neuroses”, análisa que, diante das dinâmicas

raciais, “o negro se aproxima de um tipo neurótico obsessivo ou, melhor dizendo, ele se encontra em plena neurose situacional”[1]. A neurose, para a psicanálise freudiana, é vista como a expressão de  uma disputa ferrenha entre os desejos do inconsciente humano. O neurótico obsessivo se torna, por sua vez, o indivíduo que apresenta traços dessa ambivalência entre um sentimento intenso de afetividade e hostilidade por si próprio, e pelo mundo,

permanecendo em constante estado de ansiedade [2]. Fanon destaca que o indivíduo que passa pela alienação, ou seja, pelo estado de subtração da sua própria subjetividade, tratado como coisa, como ameaça, inferiorizado, pode apresentar quadros que vão desde uma insegurança humilhante, passando por uma autoincriminação ressentida e até mesmo desespero [3].

 

É imerso nesse contexto que Cole conclui que só há 3 coisas impossíveis de se escapar: a morte, os impostos e uma sociedade racista que faz toda pessoa negra se sentir candidata a ter um fim como o de Trayvon Martin, garoto de 17 anos morto a tiros no condomínio de sua namorada por um vigilante noturno na Flórida, no ano 2012.

 

A morte de Trayvon gerou imensa revolta entre a comunidade negra dos Estados Unidos na ocasião. Detido e interrogado, George Zimmer, o vigilante, foi solto sem que uma acusação formal fosse registrada, sem a abertura de um inquérito. O caso mobilizou protestos nas ruas e foi um dos principais pontos de início para a criação do movimento Black Lives Matter.

A “paranoia” citada por Cole anteriormente, após tantos argumentos, não é uma percepção infundada, é o resultado de algo material, de algo palpável, uma conclusão inevitável: ser uma pessoa negra na América é estar a todo momento em permanente estado de alerta. Como se nunca fosse permitido o privilégio de pacificamente ser, mesmo estando em sua casa no lago com cercas brancas, pastos verdejantes, “pegando as frutas do cacho” [4], basta um olhar, uma palavra ou uma ligação para transformar cenários de sonhos em pesadelos.

 

Voltando a Fanon, o filósofo define que: “no mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração do seu esquema corporal”[5]. Isto é, no mundo branco, o  corpo do homem negro existe pela ótica do homem branco, não pela sua própria definição. E a ótica do homem branco implica ao homem negro imagens e pré-conceitos sobre sua existência que não foram fabricados por ele.

 

Essas imagens e estereótipos de criminalidade criados sobre o homem negro a partir da visão do homem branco, estão diretamente ligadas e entranhadas nas camadas mais profundas da forma como as sociedades capitalistas, caucadas na escravidão, foram construídas.   Essas percepções de ordem racista, que desembocam nesse e em outros casos de descriminação racial, são reforçadas e naturalizadas diariamente por toda a cultura desses espaços. “Não se trata, portanto, de apenas um ato discriminatório ou mesmo de um conjunto de atos, mas de um processo em que condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas” [6].

 

Na sua ânsia por ser homem, por ser humano, o homem negro, invariavelmente, esbarra na barreira branca de ser negro. “O negro não tem consciência disso enquanto sua existência decorrer em meio aos seus; mas, ao primeiro olhar branco, ele sente o peso da sua melanina” [7]. O homem negro quer simplesmente ser um homem entre outros homens, mas é o branco quem não o deixa plenamente ser.

 

Notas

[1] –  FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Ubu Editora. São Paulo. Pág. 187.

[2] – SEDEU, Natalia Gonçalves Galucio. Neurose Obsessiva: Tabu do Contato X Pulsão de Morte. Estud. psicanal.,  Belo Horizonte ,  n. 36, p. 121-133,  dez.  2011 .   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372011000300012&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  02  ago.  2024.

[3] – FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Ubu Editora. São Paulo. Pág. 187.

[4] – Expressão utilizada pelo rapper Mano Brown do grupo Racionais Mcs em seu verso na canção Vida Loka part 2

[5] – FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Ubu Editora. São Paulo. Pág. 92.

[6] – ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. Pólen. São Paulo. 2019. Pág. 24.

[7]- FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Ubu Editora. São Paulo. Pág. 122.

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