Para o fã de rap, talvez Juçara Marçal não seja um nome muito conhecido. Apesar de feats icônicos, como em ‘Samba do Fim do Mundo’ de Emicida ou ‘4ª às 20h’ de Marcelo D2, sua música raramente adentrou no hip-hop. Dito isso, a artista é um ícone da música brasileira da última década, amada por todo fã que se se aprofunda no que é produzido no país para além do mainstream ou de um gênero favorito. E a prisão de gênero é o principal rival para Juçara em Delta Estácio Blues: a cantora se recusa a ficar em qualquer caixa, trazendo elementos de tudo o que for válido para montar um dos álbuns mais ecléticos e interessantes que ouvimos nos últimos anos.
Embora seja somente o segundo álbum solo da artista, ela já tem uma vasta discografia. Mais conhecida por seu trabalho como vocalista do grupo Metá Metá, são alguns álbuns colaborativos, geralmente apoiados em belos arranjos voltados para o acústico, e geralmente com a presença de Kiko Dinucci, que além de também fazer parte do grupo que deu maior notoriedade à cantora, é o produtor executivo deste disco. Se Kiko se destacava por sua habilidade no violão, neste disco ele e Juçara toparam fazer seu álbum sonoramente mais desafiador. E é também desafiador para os ouvintes, que certamente não estão acostumados à musicalidades que puxam influências tanto de sonoridades intrinsecamente negras, como o samba, o rap ou o maracatu, com sons agressivamente eletrônicos, com sintetizadores e graves quebrando atmosferas calmas a todo instante.
Quem aceita o desafio de mente aberta certamente é recompensado com música de muita qualidade. O disco já começa com sintetizadores graves e “cintilantes” se sobrepondo com maestria, tudo isso por trás dum refrão cantado em tom de celebração pela cantora em ‘Vi De Relance A Coroa’. Os recortes de sons de tiros em meio a uma guerra dão uma dimensão cinematográfica à bela intro do disco, criando imagens de uma criança que se alegra em meio ao caos (com um quê do filme A Vida É Bela (1997)). O álbum segue para ‘Sem Cais’, música com instrumentais dramáticos e com múltiplas camadas, com vocais de fundo, cortes de violão e diversos – diversos mesmo – sons e instrumentos compondo a faixa que brilha pela belíssima escrita, que, com tons de ironia, critica a modernidade e o ódio desta era atual.
A sequência inicial segue sem falhas por mais tempo, mesmo ao reduzir um pouco a energia. Mais baseada no samba, a faixa-título traz o exercício imaginário de mistura de ritmos (majoritariamente negros) que é feito como exercício prático para a criação deste disco. A letra brevemente imagina Robert Johnson – um homem medíocre tocando violão – se encontrando com três pais do samba no Estácio, no Rio, o que mudaria a história do Delta Blues, vertente de Mississipi do blues que tem Robert como expoente. A outro é explosiva, trazendo elementos do blues e do samba, além do reverb que dá uma dimensão extra ao instrumental. ‘Ladra’, letra da incrível Tulipa Ruiz, é frenética por seu instrumental, baseado em diversas notas graves de diversos instrumentos diferentes, mudanças de ritmo de instrumental, com bateria, baixo, guitarra e sintetizador cada um tendo seu momento de brilho. Nesta, Juçara brilha na bela interpretação, que é o que ela faz de incrível o disco inteiro, até se assemelhando às técnicas vocais de Tulipa, com tons de docilidade e sensualidade ao mesmo tempo, tão fascinante quanto aparenta ser a pessoa que a letra descreve.
O álbum finalmente esbarra no rap na potente ‘Crash’, single que o precedeu. Baterias puxadas do industrial tomam conta da track, que tem baixa ocupando muito bem a camada de fundo e a potente performance de Marçal, com trocas de voz e de cadência que nem todo rapper é capaz de fazer. A letra, e até certo ponto a temática, soam extremamente características de um determinado MC, e não é a toa: Rodrigo Ogi assinou a escrita aqui, o que qualquer bom entendedor de rap já teria percebido ao ouvir as linhas do terceiro verso com esta métrica. A letra poderia facilmente parar num dos álbuns anteriores do Vovô.
Beatrix Kiddo, liquido
Com golpes de aikido acerto o pé do ouvido
Ouvindo o seu gemido sofrido, decido
Parar de te bater pra não sujar o meu vestido
Venham com fé conferir
A derrota de quem com ferro feriu
Acha que dá pé, vem na fé me ferir
Venha conferir, venha conferir
‘Baleia’ é uma volta ao que Juçara já está acostumada a trabalhar, com o violão de Kiko tomando o lugar de frente do instrumental e melodias mais singelas por toda a track, com tons novamente industriais entrando na segunda parte. A faixa é seguida por outro momento muito interessante: a interpretação da cantora de ‘La Femme à Barbe’, canção da parisiense Brigitte Fontaine, colocando leves alterações nas melodias e no instrumental, tornando a faixa ainda mais dramática e dinâmica que a original, se aproveitando da subtração de três minutos da canção original. A outra releitura, no entanto, é o primeiro deslize do disco. ‘Oi, Cat’ (Tantão) destoa muito sonoramente do resto, além da distrativa voz editada para o grave tomar muito tempo do disco. Um interlúdio de um minuto desta ideia talvez fosse mais interessante para o extremamente dinâmico e interessante disco. São raros três minutos em que pouco chama a atenção.
O álbum volta a subir de nível para sua reta final. Fernando Catatau entrega uma carismática única participação do disco na voz em ‘Lembranças Que Guardei’. A letra mais fácil de se assimilar do disco é uma bela viagem interna, onde o eu-lírico enfrenta sua própria ansiedade e o medo de enfrentar traumas do passado, em um raro instrumental mais minimalista, que tem na maior parte da canção apenas um 808 e discretas cordas, deixando a letra tomar mais a atenção do ouvinte. ‘Corpus Christi’ é um passeio pelos bairro da Baixada Santista até que seja aproveitado uma boa ida à praia, com melodias cativantes e instrumental composto majoritariamente por baterias e notas espaçadas de sintetizadores. ‘Iyalode Mbé Mbé’ é uma faixa que evoca a ancestralidade africana, usando falas esprituais do candomblé (ya lodè significa mãe sagrada, por exemplo) e colocando nos batuques a energia que uniu diversas sonoridades para dar esse álbum.
Se ancorando na experimentalidade natural à música negra, Juçara Marçal coloca esse álbum ao mundo como um trator, pronto para derrubar qualquer limite de gênero musical. Não é um disco de rap, nem de samba, nem de delta blues, mas é ao mesmo tempo, é todas as coisas anteriores. Embora a coesão acabe sendo atropelada em alguns momentos, é um preço pequeno a se pagar para ter uma obra de arte tão criativa, trazida principalmente por dois dos mais talentosos artístas que a nossa música tem atualmente. Delta Estácio Blues não é só um exercício teórico, mas também prático, onde qualquer um aberto a sair de sua zona de conforto vai encontrar novos caminhos para a música de qualidade.
Melhores faixas: Vi De Relance A Coroa, Delta Estácio Blues, Crash, Lembranças Que Guardei.