“Um dia a gente tá vendendo coisa em um camelô e no outro a gente é a maior banda do Brasil”, um amigo me disse enquanto contava a história do Planet Hemp para ele. De algum jeito lembrei da introdução da biografia do Planet Hemp, escrita por Pedro de Luna, mais especificamente o trecho em que ele conta o desenrolar de uma prisão das seis pessoas parte da banda que ganharia um espaço especial no hall do Rap e também do Rock brasileiro, “No banco de trás do carro, mirando as luzes da capital federal, Marcelo D2 olhou para o céu estrelado e pensou: ‘Caralho, o que será que o Skunk pensaria se estivesse aqui?’”.
Parte 1 – A banda
Planet Hemp é, de fato, uma banda lendária e, muito além disso, uma das formas mais puras da representação da fervorosidade da juventude na música. A banda surgida na primeira metade dos anos 90 era muito mais fruto de seu contexto do que concebemos a princípio: o Planet era reflexo de todo um movimento que acontecia após a redemocratização do Brasil e a efervescência cultural e expressiva do Rio de Janeiro daquela época.
Oficialmente, o grupo dá início a sua atividade em junho de 1993 e sua formação difere um pouco ainda do que viria a ser considerada a formação clássica e que estamparia capas e mais capas de revistas – tendo por motivo tanto suas prisões quanto a repercussão de seus trabalhos.
Skunk, um dos grandes, senão o grande idealizador do projeto, desde os anos 80 aderia a diversos estilos como o Punk, Skinhead (e não falamos de sua vertente de extrema direita), Rockabilly, colava em shows do DeFalla e ouvia discos de pós-punk e rap, era como uma personificação do manifesto antropofágico em meio ao caos urbano. Conheceu Marcelo em uma história bastante conhecida ao começarem a conversar porque D2 utilizava uma camiseta do Dead Kennedys. No fim do encontro, emprestou uma fita da banda Dread Flimstone and The Modern Tone Age Family para um cara que nunca havia visto antes. Luís Antônio da Silva Machado, seu nome verdadeiro, infelizmente veio a falecer em 1994 em decorrência da Aids, tempos antes da banda gravar seu primeiro disco.
No momento do surgimento da banda, meados de 93, mesmo que diversas pessoas tenham passado pelos ensaios como por exemplo Jorge Brennand, eram cinco pessoas ao total: D2, Skunk, Rafael Crespo, Formigão e Bacalhau – logo depois, Bnegão se juntaria a banda, assumindo o outro vocal. Ainda em 1994, o grupo assinou um contrato com a gravadora Sony Music, o que garantiu a gravação de seu primeiro álbum.
“Após alguns desencontros, enfim todos conseguiram se reunir num mesmo dia no Groove. Rafael, Bacalhau e Formigão já estavam no estúdio quando Marcelo e Skunk chegaram. Eles já tinham algumas letras, como ‘Legalize já’ e ‘Puta Disfarçada’. A verdade é que os dois queriam mesmo era fazer uma dupla de rap, mas como não tinham o equipamento nem DJ, toparam tocar com uma banda de rock. Os ensaios do Planet eram uma grande festa, uma salada musical regada a drogas e álcool. Mas que funcionava muito bem. Em uma semana, com apenas dois ensaios, a banda tinha seis músicas prontas. No primeiro, saíram ‘Puta Disfarçada’, ‘Phunky Budda’ e ‘Terceiro Mundo’. No segundo, ‘Porcos fardados’, ‘A culpa é de quem’ e ‘Futuro do País’.”
(Planet Hemp: Mantenha o Respeito, Pedro de Luna, capítulo 8)
Parte 2 – Usuário
Em março de 95, foi lançado o polêmico álbum Usuário. Trazia em sua formação os mesmo nomes da formação da banda, mas agora BNegão assumiu o segundo vocal – ainda que tenha uma participação bem tímida em todo o álbum. Além disso, conta com participações de Marcos Suzano em algumas percussões ao longo do caminho, Black Alien (que viria a integrar a banda posteriormente) no vocal principal de duas faixas e de apoio em outras duas, Speed Freaks tocando baixo em duas músicas, Marcelo Lobato em umas linhas de teclado e uma programação de Chico Neves em três tracks.
Algumas faixas já eram conhecidas e foram criadas logo nos primeiros ensaios, mas ainda assim, tinham um longo caminho ainda para percorrer e criar um disco. Os jovens, que sempre viveram a vida ao máximo e estavam acostumados ao caos urbano das noites cariocas, tinham pouquíssima experiência em estúdio e tiveram de lidar com diversos desafios novos para criar faixas que costurassem as antigas músicas já conhecidas e criassem um trabalho que servisse como um cartão de visita para banda – Usuário, então, é um excelente nome já deixando claro de onde parte a voz, o discurso e o modo de olhar para a vida.
O Planet Hemp por si só, já é algo muito além de um produto sonoro apenas: se aproxima de um manifesto, de uma reivindicação, um grito de insatisfação. Não à toa, a primeira faixa, “Não Compre, Plante!” chega com os dois pés no peito gritando ao mundo “Nós somos o Planet Hemp!”. A intro no baixo e as frenéticas linhas de guitarra colocam em jogo tanto o estilo misturando Rock ao Rap, quanto a energia que o grupo trazia para as músicas. Além disso, ficava claro o nível da discussão que o grupo trazia, algo muito distante de uma simples apologia. Assim era dado o pontapé inicial ao trabalho de 17 faixas – sendo esta a mais longa.
O passo seguinte é dado ao gritar contra a polícia em “Porcos Fardados”, com seu refrão enfático “Porcos fardados, seus dias estão contados!”, enquanto D2 tece seus versos simples, políticos e eficazes. Está aberto então o caminho para o hit e single do disco, a histórica “Legalize Já” que dispensa apresentações. Esse é o primeiro ponto alto do grupo durante o disco, tanto no resultado de produzir um sonoro e enérgico grito político quanto em criar um verdadeiro momento de transe catártico, tirando o máximo proveito possível da mistura entre os estilos musicais.
“Deisdazseis” funciona como um interlúdio do álbum e uma intro para as duas faixas seguintes; mesmo assim, enche os olhos de qualquer um o quanto de valor o grupo consegue tirar dela ao estabelecer o duo D2 e Black Alien em uma percussão totalmente orgânica. “Phunky Budda” continua a saga do grupo em suas letras ativistas pró-maconha de rap, só que agora trazendo alguns espaçados elementos funky para o hardcore. O riff de guitarra ao final se prolonga, quase perdendo a divisória com a faixa seguinte, “Mary Jane”, muito mais elegante e dançante que a anterior. De bônus, vemos a performance dos cantores em um inglês nem sempre tão bem pronunciado, mas que consegue atingir momentos de carisma únicos e sendo algo que é a cara dos anos 90.
“Planet Hemp” é mais um interlúdio, como se marcasse a metade do álbum, ao menos conceitualmente. Literalmente, são encaixes de gritos “Planet Hemp” sobre um poluído e frenético instrumental, como se tivesse saído de uma gravação urbana oitentista, coroando o empenho da banda em trazer seu nome ao palco. O jogo ganha mais vida quando a linha do interlúdio se mistura com a primeira linha da faixa sucessora, “Fazendo sua Cabeça”, criando algo como “Planet Hemp fazendo sua cabeça” (coisa que foi aproveitada exemplarmente em apresentações ao vivo). Nesta, vemos uma belíssima atuação e um dos momentos em que os integrantes melhor se encaixam e se complementam, tanto instrumentalmente quanto na performance dos dois vocalistas. Outro ponto é que aqui o Planet Hemp faz o que fez de melhor até hoje nas letras, misturando o teor político a um grito de êxtase e prazer, como se propusesse um novo jeito de se rebelar.
“Futuro do País”, nona faixa, começa em um leve e sério samba, com uma guitarra que cresce aos poucos, até virar um exaltado e maluco hardcore, ganhando tons desesperadores e incomodativos, enquanto a letra mergulha num futuro violento do país, criando uma forte conjunção em que o instrumental intensifica tanto sua ansiosa energia quanto a força da letra. Seguindo a sequência avassaladora criada pelas duas faixas anteriores, a clássica “Mantenha o Respeito” é o auge disparado do disco: Planet Hemp misturando inúmeros elementos em uma levada cativante e uma letra que acompanha misturando com maestria estilo, críticas e um momento empolgante ao refrão.
“Enquanto uns choram, outros vêm e os devoram
O meu pensamento não é como o seu
Tabaco ou maconha, o que te envergonha?
Eu não sou menos digno porque fumo maconha
Me contem, me contem aonde eles se escondem
Atrás de leis que não favorecem vocês
Então por que não resolvem de uma vez
Ponham as cartas na mesa e discutam essas leis
Planet Hemp, meu irmão, os criminosos ?
Porque eu luto pelos direitos dos nossos, não
Pessoas inocentes morrem e vão pruma gelada
Eu ouço ” bang bang ” e não vou fazer nada ?
Tem que parar com isso, acabar com essa matança
Enquanto tem gente morrendo, tem outros enchendo a pança
Mas se você quer brigar, ponha a barba de molho
Comigo é dente por dente, meu irmão, olho por olho
Se você tem amor pelo que que tem no peito
D2, mas mantenha o respeito”
Logo após um momento tão alto, “P… Disfarçada”, vem para dar uma quebra ao ritmo, tanto na inconsistência temática, uma música falando sobre o fim de um relacionamento, quanto no desperdício de bons flows, boas levadas e algumas belas linhas instrumentais em uma letra perdida. Ela, com toda certeza, é inegavelmente fruto de seu tempo, e isso fica visível quando a problemática classista e do consumismo barato esbarra em alguma misoginia pelo caminho – mas isto não a torna isenta e se erra no discurso, erra também onde foi colocada.
“Speed Funk” é uma volta ao disco, quase como um concerto ao desvio feito na anterior, mesmo que siga alguma tendência sonora lógica da anterior. Ficando apenas no instrumental e recebendo o baixo do saudoso Speed Freaks, é o momento que começa a arrancada em direção ao final. Na sequência, “Muthafuckin’ Racists” com Black Alien é a mensagem, em inglês, nítida da banda contra o Racismo, enquanto é o momento também que mais se aproxima de um metalcore, mesmo que recebendo efeitos mais leves da pedaleira ao final. E como se, pelo clima da anterior, a banda tivesse ficado muito sisuda, “Dig Dig Dig (Hempa)” vem para dar uma quebrada no clima, tornando o ambiente mais animado, mesmo que ainda trate de temas sérios como a discriminação contra usuários de drogas.
“Skunk”, a décima quinta faixa do disco, homenageia o lendário fundador da banda. Um instrumental que apesar de ser emocionante pelo contexto não deixa o ânimo cair um segundo. A gravação meio crua dá uma ambientação muito forte, levando-nos direto para uma sessão da banda. O total, formado em conjunto com composição bem à la Planet Hemp que conclui com uma conversa (“Caralho, mermão, esse bagulho é muito bom”), é de fato como se fosse um cartão mostrando um lado mais rotineiro do que veio a se tornar o sonho de Luis Antonio.
Em “A Culpa É De Quem” resgata temas e letras de “Deisdazseis”, só que agora com um direcionamento maior para o encerramento. A track é do tipo que funciona melhor em apresentações ao vivo por seu tipo de estrutura, com conjunção som-silêncio dando muita intensidade para momentos chave. Ela também algumas linhas problemáticas perdidas no todo. E, para finalizar, “Bala Perdida”, um rápido apanhado em que vemos a performance mais gutural ao vocal, e que fecha a ideia do disco justamente ao tratar da realidade e colocar a própria banda inserida nesse contexto.
Parte 3 – Raprockandrollpsicodeliahardcoreragga … e liberdade
Os anos 90 foram muito duros para o brasileiro. Apenas em 85 a Ditadura Militar acabou e a redemocratização era um período complicado. O primeiro presidente eleito diretamente seria o Collor e somente em 89 (assumindo no início de 90). Era um tempo muito incerto, tanto pela insanidade econômica provocada pela alta inflação, acentuando gravemente os sintomas da desigualdade social, quanto pelos experimentos de comunicação que testavam a todo instante o direito de expressão.
O Planet Hemp nesse contexto era então muito mais que uma banda. Era um grito jovem contra muita coisa. Quando decidiram falar abertamente sobre Maconha e pedir a legalização, quase como um tese e um levante, a banda entrava no jogo para ver justamente até onde iria a liberdade de expressão. Não era só sobre Maconha, era sobre se expressar e, principalmente, ser livre – tanto socialmente quanto estilisticamente.
Usuário é esse álbum: Um cartão de apresentação da banda e que definitivamente coloca as bases do que é o estilo Planet Hemp; Um discurso com lado definido, que parte da voz do usuário, e narra o ambiente urbano a partir do ponto de vista do usuário e que tenta a todo instante vencer os estigmas criados sob a opressão; Um álbum sobre ser livre, para se expressar como quiser, ser como quiser. Desse jeito, o álbum em si é apenas a superfície do trabalho, ele de fato se concretiza profundamente na vida real como um discurso inegavelmente político na prática e que não consegue se esvaziar, já que todo seu conteúdo é a forma para uma discussão mais intrincada.
E se conceitualmente segue esse caminho, estilisticamente o faz também. A enorme mistureba de estilos diversos, tantas vertentes do Rock, elementos de Funk, Jazz, Soul, a psicodelia inerente ao arranjar tudo e finalmente o Rap era para além do retrato de influências da banda junto da enorme efervescência cultural e artística que surgia no Brasil e no mundo, um exercício de liberdade estética também. Desse jeito, Usuário é um álbum livre: vai e vem como quer, quebra tudo como quer, explode como quer, mas principalmente um álbum real, que não só se culmina de todas as circunstâncias da época, mas modifica a própria cena que o criou e está sempre falando, em seu conteúdo e forma, de maneira contundente sobre seu contexto.
Planet Hemp, então, foi e é uma das bandas mais livres que já subiu em um palco no Brasil.